A era Bouteflika agoniza. Na 6ª sexta-feira consecutiva de protestos (29), multidões bradaram repetidamente “Renuncia Bouteflika e leva Gaid Salah com você”, em resposta ao palpite do vice-ministro da Defesa e chefe do Estado Maior, general Ahmed Gaid Salah, sobre impeachment pela Corte Constitucional do octogenário e enfermo presidente, pelo artigo 102 – incapacitação para exercer o cargo -, para uma troca de nomes no palácio sem que nada realmente mude.
Contra o “artigo 102”, proposto pelo general, as ruas contrapõem o artigo 107 – “todo o poder emana do povo” – e chamam o atual regime de “governo dos mortos-vivos”, pela decrepitude e corrupção que o envolve.
Oposicionistas desancaram Salah por se meter a dar pitaco sobre questões constitucionais. Ele é aquele general que a revista ‘Jeune Afrique’ considerava “o sabre que sustenta Bouteflika”.
Por si só, a proposição revela que os dias de Bouteflika estão contados: até o exército argelino desembarcou da sua malsinada “transição”. Como exigem as ruas, “nem um minuto a mais com Bouteflika”, que cancelou sumariamente as eleições marcadas para 18 de abril a pretexto de sua tardia “transição”.
BASTA
A paciência dos argelinos acabou no dia 22 de fevereiro, quando o palácio anunciou a candidatura de Bouteflika ao quinto mandato, aos 82 anos, enquanto este era internado em hospital suíço. Um presidente há seis anos entrevado após um derrame e sem falar em público.
Já o entorno palaciano, que seu irmão caçula Said encabeça e que de fato é quem governa, tornou-se notório como “el issaba” (a gangue) – assim o chamam os manifestantes – pelas propinas nas transações com empreiteiros, apelidados de “oligarcas” por parasitarem os cofres públicos.
Em menos de um mês de protestos, o quinto mandato foi barrado e ao idoso mandatário restou apostar na transição sob seu controle – isto é, da “el issaba” -, com uma meia-constituinte de notáveis, nomeada, seguida de referendo e eleições, em paralelo a um governo de tecnocratas encabeçado pelo novo primeiro-ministro, Noureddine Bedoui.
“ÚLTIMO DEVER”
Transição repelida pelas ruas com o “pedimos eleições sem Bouteflika e nos dão Bouteflika sem eleições” da semana anterior. Pela constituição, o mandato dele acaba impreterivelmente no dia 28 de abril.
A transição, asseverou Bouteflika, seria “seu último dever” para com “o povo argelino”. Dez dias depois, sua ‘Conferência Nacional’ parece natimorta, assim como o gabinete de Bedoui.
O impeachment de Bouteflika – ou sua renúncia – sob o artigo 102 também foi endossado pelo ex-primeiro-ministro Ahmed Ouyahia.
Greves em várias áreas – petroleiros, portuários, servidores, transportes – levaram setores da UGTA, a principal central, ligada desde a fundação à luta de libertação e à nacionalização do petróleo, a declararem “que estão com os manifestantes”, enquanto o secretário-geral Abdelmadjid Sidi Said, que sempre anda a tiracolo de um oligarca, aderiu ao artigo 102.
“PACÍFICA, PACÍFICA”
Enquanto twitters afirmavam que a manifestação em Argel era “provavelmente a maior depois da independência”, a Jeune Afrique registrava “difícil avaliar com precisão na ausência de números oficiais” – assim como a RT-français – mas reconhecendo que a mobilização “parecia muito forte”.
Como nos protestos anteriores, a polícia só interveio com gás lacrimogêneo para impedir que os mais exaltados marchassem nas vias que dão acesso ao Palácio Presidencial.
“Silmiya, silmiya” (Pacífica, pacífica), é a conclamação que em geral resolve qualquer contratempo. A questão é que, sem declaração da vacância da presidência, em menos de um mês não haverá como escapar da evidente ilegalidade da prorrogação de mandato de Bouteflika, o que acirrará os ânimos na Argélia.
Também acaba de ser anunciada a formação de uma “Coordenação Nacional para a Mudança”, que pediu a remoção de Bouteflika, a dissolução do parlamento, uma transição com uma ‘presidência colegiada’ e um governo de salvação nacional. O documento foi assinado por Samir Bouakir, líder da Frente de Forças Socialistas, bem como dois conhecidos membros da Frente Islâmica de Salvação, Mourad Dhina e Kamel Guemazi.
PETRÓLEO
No plano internacional, o governo Macron segue apelando a que os protestos na Argélia conduzam a uma transição “ordenada”, enquanto a Rússia recebeu a visita do novo chanceler, Ramtane Lamamra, e o governo Trump se expressou curiosamente “a favor do povo”. A China tem aprofundado seu intercâmbio com Argel.
Com tanto petróleo – a Argélia é o maior produtor de petróleo e gás da África e grande abastecedor de gás da França, Espanha e Itália – sempre gera a apreensão o súbito entusiasmo de Wall Street com protestos em Argel.
DOMINÓS
Mais alguns dominós estão tombando. O oligarca, empreiteiro e dono de canal de televisão e de time de futebol, Ali Haddad, considerado um dos mais íntimos do caçula Bouteflika, renunciou à presidência da principal entidade empresarial, a FCE, dois dias antes da reunião convocada para depô-lo.
Fora o “livrem-se de todos”, e “julgamento para os ladrões”, pouco está claro sobre os objetivos das mobilizações que, como outras que eclodiram pelas redes sociais, têm aversão por partidos políticos – além de elevado custo para fazer impulsionamentos.
Caso ocorra a aplicação do artigo 102, Bouteflika seria substituído pelo presidente do senado, Abdelkader Bensalah, que atuará como presidente interino entre 45 e 90 dias, e que terá que convocar eleição em 90 dias. A decisão final teria de ser por sessão conjunta do parlamento, por maioria de dois terços.
Bouteflika se apresenta como uma das principais figuras da Frente de Libertação Nacional (FLN), o partido que encabeçou a conquista da independência da Argélia. E como o estadista que reconciliou os argelinos após a ‘década negra’ – a tentativa de extremistas islâmicos, apadrinhados por Washington, Londres e as monarquias do Golfo, de instaurar no país uma teocracia medieval, que causou 150 mil mortes.
JUVENTUDE
Nas manifestações, há uma enorme participação dos jovens, o que reflete a falta de perspectivas diante do impasse na transformação da Argélia, cuja industrialização emperrou, e continuou basicamente sendo um país que vive da exportação do petróleo, sujeito aos altos e baixos da cotação da commodity.
Com o petróleo responsável por 95% das exportações e 60% do orçamento público, sob o colapso do preço desencadeado em 2014 e só parcialmente contido, o desemprego entre os jovens chega quase a 30% em um país em que 54% da população tem até 30 anos, e com a França logo ali na outra margem do Mediterrâneo. Também a desigualdade exacerbada pela expansão ao país do neoliberalismo aguça essas contradições.
O economista e analista francês Jacques Sapir destacou como o sistema de ensino público e gratuito argelino, uma das conquistas da sua revolução, criou uma massa de jovens de bom nível de educação e cujos anseios não estão sendo atendidos.
SENILIDADE
Se as lembranças da ‘década negra’ e o fortalecimento das políticas sociais evitaram que a Argélia fosse arrastadas para os confrontos vistos na Líbia, Tunísia e Egito, e depois na Síria, a incapacidade da liderança da FLN de romper com o rentismo do petróleo e de lidar com a troca de gerações serviu de estopim para a atual crise.
A simples enumeração das idades de alguns dos mais proeminentes protagonistas serve para avaliar essa quase recusa à mudança de guarda. Bouteflika, 82. General Salah, 79. Presidente do Senado, 76. Possível presidente da ‘Conferência Nacional’, 85. Como notou Sapir, a insistência em impor uma candidatura inteiramente senil em um país em que mais da metade da população é jovem, era “odienta e ridícula”.
No ano passado, o crescimento da economia ficou em 2,3%, depois de ter sido de 1,4% no ano anterior. Com o colapso do preço do petróleo, o FMI pressionou nos últimos anos pela “consolidação fiscal” – isto é, arrocho, contenção dos gastos sociais, benesses ao capital estrangeiro, desregulamentação – e elogiou os “resultados”: o pavio estava aceso.
ANTONIO PIMENTA