Multidões que tomaram as ruas do país levaram o povo chileno à conquista da Constituinte para substituir a carta pinochetista
Nesta segunda-feira, 25 de outubro, os chilenos comemoraram o segundo aniversário da histórica marcha de um milhão de pessoas em Santiago durante o levante social e ainda o primeiro ano do plebiscito em que mais de 78% dos votantes decidiram mudar a Constituição herdada da ditadura de Pinochet (1973-1990).
Conforme os organizadores, duas demonstrações de força que de forma pacífica e institucional conseguiram iniciar transformações profundas na sociedade. Um povo que tomou as ruas de Norte a Sul para condenar o neoliberalismo, a entrega do patrimônio público ao grande capital nacional e estrangeiro, o arrocho salarial e a anulação de direitos sociais e trabalhistas conquistados antes da ditadura.
No marco desta data histórica para os chilenos, a Organização das Nações Unidas (ONU) denunciou que continuam as violações aos direitos humanos – que deixaram cerca de 500 manifestantes cegos ou com perda de visão devido a tiros com balas de aço cobertas com borracha – com vários presos políticos, e que o resultado da prestação de contas pelo governo de Sebastián Piñera continua sendo “incerto”.
De certo mesmo, como confirmaram os Pandora Papers, são as contas de Piñera em paraísos fiscais e de que a quarta maior fortuna do Chile construiu sua riqueza às custas de negociatas com o patrimônio público e de crimes ambientais.
O candidato à presidência pelo Aprovo a Dignidade, Gabriel Boric lançou, ao lado dos candidatos ao parlamento, um “Manifesto para as transformações”, comemorando a data como uma conquista do povo chileno. No documento, a frente oposicionista destacou que “o processo constituinte nos permitirá construir as bases de uma ordem distinta, que ponha fim ao neoliberalismo e abra caminho para uma sociedade que supere a desigualdade, garanta direitos sociais, integre todas as identidades, culturas e povos, proteja nossos bens comuns naturais, distribua a riqueza e o poder de maneira justa e que democratize e descentralize o país”.
NÃO AOS “CHICAGO BOYS”
Em 18 de outubro de 2019, os chilenos tomaram as ruas para exigir saúde universal, educação pública de qualidade e aposentadorias dignas, em um país devastado pela lógica do “Consenso de Washington”, onde os economistas portadores das teorias importadas, os “Chicago boys” aprofundavam dia após dia, com a desnacionalização da economia, as desigualdades sociais.
Após semanas de gigantescas marchas em todo o país, marcadas por uma forte repressão policial dos carabineiros, no 25 de outubro de 2019, cerca de 1,2 milhão de pessoas tomaram o centro da capital para participar do maior protesto desde o retorno da democracia.
As mobilizações daquele ano deixaram mais de 30 mortos e inúmeras acusações internacionais de organizações de direitos humanos contra a violência e a covardia das forças de segurança. O plebiscito para mudar a Constituição, saída institucional para os protestos, foi realizado exatamente um ano depois da grande marcha, em 25 de outubro de 2020
Após realizar uma missão técnica, em novembro, o Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos (ACNUDH), enfatizou que, embora sejam notados avanços, “persistem obstáculos no acesso das vítimas à justiça, reparação e garantias de não repetição, entre outros direitos fundamentais”. Além disso, condenou, o direito de reunião pacífica segue sendo regulado por um decreto supremo que remonta à época da ditadura.
Entre outros abusos, denunciaram as Nações Unidos, está o “uso inadequado de bombas de gás lacrimogêneo e de caminhões com jatos de água contra pessoas”, ressaltando casos em que os membros do questionado corpo policial de Carabineiros “não prestaram assistências às pessoas feridas”.
Também foi constatado “perseguição e violência contra brigadistas da saúde, observadores de direitos humanos e jornalistas” durante as marchas, que foram retomadas em razão do segundo aniversário do levante social e que foram suspensas durante os meses mais graves da pandemia. “Há uma falta de reconhecimento da responsabilidade do Estado e uma ambivalência no discurso público” sobre os abusos das forças de segurança. “Observamos nas vítimas uma sensação generalizada de desamparo”, apontou o relatório.
“Há dois anos, mais de um milhão de pessoas marcharam pacificamente para exigir o fim da desigualdade. Há um ano, pela primeira vez em nossa história, se perguntou à cidadania se queria ou não uma nova Constituição. Hoje estamos mudando o rumo do Chile”, enfatizou o escritor chileno Jorge Baradit, um dos 155 membros da Convenção Constituinte.
Desde quatro de julho, a Constituinte debate por nove meses – prorrogáveis por três mais – o texto fundamental que recolhe as reivindicações que ecoaram das ruas.
Este texto terá que ser validado novamente por outro ato democrático por meio de um plebiscito de voto obrigatório. “Há um ano votamos por uma nova Constituição, hoje a estamos escrevendo”, ressaltou a bióloga e constituinte Cristina Dorador.