
A proposta de Constituição que deveria “enterrar o neoliberalismo”, estranhamente, consagrou o arrocho sob a máscara de “responsabilidade fiscal” e petrificou a “autonomia” do Banco Central, com mandato de 10 anos para sua diretoria. Temas polêmicos como eutanásia e aborto, entre outros, que poderiam ser objeto de legislação regular, ajudaram a extrema-direita – com suas infames fakenews – a rejeitar a Carta pelos avanços que continha
Não apenas o rechaço mas também sua amplitude continuam alimentando o debate sobre a derrota acachapante por 62% a 38% sofrida pelo texto constitucional saído da constituinte exclusiva chilena, que fora arrancada em 2020, no maior levante popular desde os anos Pinochet, o ‘estallido social’, para revogar de vez o diktat neoliberal imposto a ferro e fogo e em vigor há 40 anos.
Um revés incontestável: o sim não emplacou sequer uma das 16 regiões do Chile. Só venceu em 8 dos 360 municípios do país – inclusive perdeu, surpreendentemente, na periferia de Santiago, que tradicionalmente vota com o progresso. A votação da rejeição foi mais do dobro da do candidato de extrema direita derrotado pelo presidente Gabriel Boric no segundo turno em dezembro passado.
Que contraste com a energia liberada pelas multidinárias manifestações em 2019/20, repletas de bandeiras chilenas, canções libertárias e coros de “Chi-le!”. Na raiz desses protestos, estava tanto a indignação dos jovens sem a educação gratuita, quanto dos idosos, sem aposentadoria, ou com aposentadoria privada ínfima, e a presença feminina.
Depois, no plebiscito de outubro de 2020, que aprovou a constituinte, o sim saiu vencedor por quase 80%. E, no segundo turno, em dezembro passado, Boric suplantou o neofascista Kast por 56% [a 44%]. Em março deste ano, véspera da sua posse, o sim ainda estava na frente, embora já claudicando.
“NÃO SÃO 30 PESOS, SÃO 30 ANOS”
O que coloca a pergunta indiscreta: teriam os chilenos feito meia volta, volver, e caído no canto de sereia e fake news das viúvas de Pinochet?
Ou o próprio texto, à parte as virtudes, se provou inadequado para atender aos anseios do que se tornou o mote de campanha de Boric “o governo que vai enterrar o neoliberalismo”? Como diziam os milhões nas ruas: “não são 30 pesos, são 30 anos”.
Ter uma proposta derrotada num referendo não significa automaticamente que a proposta estava errada – está aí o referendo de 2021 na Colômbia pelo acordo de paz com as FARCS, em que o sim foi derrotado, mas o oposicionista Gustavo Petro hoje é o presidente.
Mais difícil é apreender o que aconteceu quando a derrota foi por placar tão dilatado. Não são as fake news, as provocações, o dinheiro a rodo, ou os esquemas Cambridge Analytical, que determinaram a rejeição – isso faz parte do manual do império&fascistas – mas sim por que tais fake news e manipulações emplacaram.
Sem dúvida a proposição de Boric de que seu governo iria “enterrar de vez o neoliberalismo” foi chave para derrotar Kast. Mas, contraditoriamente, a rejeição na periferia de Santiago chegou a 55%!
Por que a grande maioria dos chilenos chegou à conclusão de que o texto proposto “não nos representa”? – como, aliás, apontou Boric. Sim, há méritos no texto aprovado, mas não será o caso dessa grande maioria, pelo menos parte dela, ter visto a nova constituição proposta como “por fora, bela viola, por dentro, pão bolorento”?
NEOLIBERALISMO ENTERRADO?
Quanto a isso, pode uma constituição que supostamente irá “enterrar o neoliberalismo” ter a “responsabilidade fiscal” como artigo (183)?
O que é a “responsabilidade fiscal” senão a fórmula sob a qual governos ficam proibidos de gastar com o povo, é proibido déficit, e sem ele, sem investir na produção, para puxar o investimento privado que não se move na crise, não há crescimento.
Como cansou de mostrar John Maynard Keynes, quando da crise de 1929, e praticaram Roosevelt e Getúlio, entre outros tantos. Estimular a demanda, a renda, a produção, o emprego.
“Responsabilidade fiscal”, antes do Consenso de Washington, era a economia ao estilo ditador Salazar: só se gasta o que se tem. Princípio que nos últimos anos voltou a imperar no Brasil, sob o teto de gastos.
“Responsabilidade fiscal” para garantir dinheiro para os que especulam com a dívida pública, e o resto que se exploda.
Também como pode um texto constitucional voltado a “enterrar o neoliberalismo” ter oito artigos sobre o Banco Central, o primeiro, determinando sua ‘autonomia’? Teria 14 diretores com mandato de 10 anos, com a única limitação de estarem fora do sistema financeiro há “dozes meses”.
A população pode não ser versada nos detalhes, mas percebe que as garantias de saúde e educação gratuitas têm pés de barro quando é a “responsabilidade fiscal” que vai dimensionar os recursos para que se tornem – ou não – realidade.
Para o cientista político Jaime Bordel, com exceção da nacionalização da água (o Chile é o único país do mundo com água privatizada), não havia propostas econômicas fora da curva, como nacionalizações de outros setores. Outros temas – acrescentou -, como sistema de saúde público ou mudanças na Previdência, já eram demandados pela população.
Mesma posição do Morgan Stanley, o banco de ‘investimento’ norte-americano, segundo o qual a aprovação “não afetaria” o desempenho macroeconômico do país. Aliás, para o banco, seria a rejeição que geraria mais incerteza e instabilidade, o que diminuiria a “atratividade para os investidores”.
O Estatuto Constitucional da Mineração apresentado, e deixado para regulamentar no parlamento, era, segundo a Bloomberg, um “texto razoável”, sem aspectos negativos para o investimento em mineração. O setor é responsável por 15% do PIB nacional e representa 60% das exportações do país (principalmente cobre e lítio).
QUEM SEMEIA CONFUSÃO …
À primeira vista, a incapacidade da Convenção Constitucional exclusiva de perceber a questão nacional tal como se dá no Chile, o fervor patriótico e, porque não, certa dose de conservadorismo, acabou sendo o fruto envenenado que gerou uma enorme desconfiança na população sobre o texto em discussão.
Registra o próprio prólogo do texto vetado nas urnas, divulgado aos milhões no Chile: “nosotras y nosotros, o povo do Chile, conformado por diversas nações, nos outorgamos livremente esta Constituição, acordada em um processo participativo, paritário e democrático”.
“Conformado por diversas nações”: quando se discutem questões dessa ordem, as palavras não podem ser largadas ao vento, independentes de como serão interpretadas – e menos ainda no prólogo, que numa carta magna busca sintetizar as conquistas daquele período histórico.
No Chile, há uma questão dos povos originários, mas não se pode tirar mecanicamente uma conclusão como a que se chegou na Bolívia, de um país plurinacional, apenas por apreço pelo termo e pela diversidade.
No Chile, a parte da população nessas condições é da ordem de 12%, contra 62% na Bolívia. No primeiro caso, trata-se de criar mecanismos de inclusão e democratização.
No segundo, é impossível falar na própria nação se se deixa mais da metade de fora. É por isso que o governo Evo, e agora, Arce, implica num fortalecimento da nação boliviana, ao reconhecer seu caráter plurinacional.
Então, um prólogo de constituição que não se presta a unir os chilenos, acaba por ser um tiro no pé, o que foi manipulado pela extrema direita com a costumeira canalhice.
Assim, de acordo com a última pesquisa Feedback divulgada em meados de julho, havia duas questões de extrema importância para aqueles que não apoiavam o texto: a ideia de que “nem todos serão iguais perante a lei” (39%) ― ou seja, chilenos e os povos originários [hoje, virtualmente destituídos de direitos!] ―, e a premissa de que “com sua plurinacionalidade, o Chile corre o risco de se dividir” (31%). Outro mote da desinformação é que a constituição daria aos indígenas o poder de decidir onde haverá ou não mineração e agricultura (isto é, desmatamento…).
PERFORMÁTICOS
Pior, certo tipo de constituinte performático, resultante da exaltação à não-política, se prestou a cometer ofensas à bandeira chilena, jogando água no moinho da extrema-direita.
Na instalação da Convenção Constitucional em 4 de julho do ano passado, alguns desses convencionais interromperam aos gritos a execução do hino chileno, para exigir a “libertação dos presos nos protestos”. Elsa Labraña, uma das desrespeitadoras do hino, defendeu em entrevista à TV sua agressão, dizendo que “o hino nacional gera muita divisão no país”.
Indagada pelo jornalista sobre os dois símbolos nacionais chilenos, ela asseverou que o hino e a bandeira “representam você, não os povos nativos e é justamente a Constituição que nós vamos mudar”. “Estamos em um processo de refundação do país”, acrescentou, assinalando que alguém pode “pensar em fazer um novo hino, por que não, ou outra bandeira”.
O analista político, Axel Callís, registrou que, sob as ações performáticas que pulularam na Convenção constitucional, apareceu todo tipo de proposta e, quando começou o processo de afunilamento, a opinião pública não conseguia distinguir “entre o que era uma norma sancionada, uma apresentada ou uma simples moção. Tudo lhes veio igual, desde a dissolução do Estado até a mudança do hino, e isso afetou a reputação da Convenção”.
PROVOCAÇÃO À BANDEIRA
Outra provocação mais grave ocorreu na reta final da campanha pelo “Aprovo”, no dia 30 de agosto, em um comício em Valparaíso, com a performance do grupo “Las indetectáveis”, que se define como uma “comunidade de criação afetiva e resistência anarco-travesti dissidente”, como registrou Wevergton Brito, no Vermelho.
“No evento da noite de sábado em Valparaíso, cerca de 3.000 pessoas viram como um dos integrantes do grupo puxou uma bandeira chilena do ânus de outro, simulando um aborto. ‘Este buraco é aprovado?’ Um membro do grupo se perguntava enquanto outro mostrava seu ânus ao público”, registrou o jornal espanhol El Mundo.
O governo Boric foi a público anunciar ter denunciado ao Ministério Público o desrespeito à bandeira do Chile, mas o estrago já estava feito.
Também episódios menores, mas que contribuíram para atrair desconfiança. Como um constituinte que votou durante o banho, com a câmera ligada, até ser alertado. E outro que se elegera dizendo falsamente que sofria de câncer.
Por sua vez a grande mídia fazia campanha pela rejeição dia e noite. Foi nesse quadro que os bots foram acionados em massa nas redes sociais, para espalhar as mentiras mais deslavadas, que o Chile “se dividiria em muitas nações”, as pessoas teriam “suas casas tomadas” e os cultos “seriam proibidos aos cristãos”.
Em outras questões abordadas pelo texto constituinte estava-se muito distante de haver um consenso entre os chilenos – como aborto, neurodivergentes e até eutanásia – e sua explicitação apenas serviu para gerar divisão e, entre certos setores, uma rejeição total à constituição por causa de um único ponto específico.
FRENTE AMPLA ÀS AVESSAS
Talvez possa se dizer que, ao não conseguir formalizar uma frente ampla pela aprovação do texto constitucional, o governo Boric e as forças majoritárias na Convenção constitucional acabaram obtendo uma ‘frente ampla’ contra, expressa nesse placar de 62% a 38%.
O que é quase o resultado invertido do que ficou marcado na Convenção constitucional, com 75% de “progressistas”, quando, como visto na disputa à presidência do país no ano passado, a correlação de forças real é bastante diferente disso.
De certa forma, prevaleceu uma concepção de catarse na Convenção constitucional, ao invés de um difícil e complexo processo de síntese das várias compreensões, até se chegar a uma carta capaz de representar o conjunto dos chilenos e ser a mais progressista, soberana e ampla possível.
Por exemplo, o processo constituinte no Brasil foi presidido por Ulysses Guimarães, exatamente pelo papel que desempenhou no processo democrático, bem quanto pela autoridade política e moral que tinha perante as mais diversas forças políticas.
No Chile, o nome escolhido foi o de uma intelectual mapuche, por esse enfoque identitário, e não pela autoridade para coesionar a Convenção constitucional.
Por outro lado, a confusa proposta de eliminação do Senado e sua substituição por uma câmara das regiões, de menor peso político, só serviu para empurrar políticos de centro-esquerda para a campanha da rejeição.
No início de julho, o ex-presidente socialista Ricardo Lagos, que se dirigiu à classe política instando à continuação do processo constituinte após o plebiscito, afirmou que as constituições “precisam de aceitação geral e recorremos às suas regras para salvar nossas diferenças. Uma constituição não pode ser partidária”.
Também Eduardo Frei, o líder da democracia cristã que integrava a Concertación, a frente de centro-esquerda que governou o maior tempo pós-Pinochet, se pronunciou pela rejeição. A ex-presidente Michelle Bachelet fez campanha pelo “aprovo”.
Nesse quadro, a ampliação da participação no referendo, sob o voto obrigatório, levou à ida às urnas de mais 4 milhões de pessoas, as mais pobres e com menos experiência política, e que acabaram se tornando alvos para as manipulações e fake news.
Segundo Carmen Le Foulon, do Centro de Estudos Públicos, “quanto mais interessado em política e quanto maior o nível educacional, mais voto pela aprovação. A votação que está preocupada com o seu futuro econômico é mais pela rejeição”.
Como complicantes, o principal índice inflacionário chileno bateu 13% ao ano em julho e a aprovação de Boric despencou, chegando perto de 40% – mesmo patamar do “aprovo”.
“ERRARAM O ALVO”
Para Miguel Ángel López, doutor em Ciência Política e acadêmico do Instituto de Estudos Internacionais da Universidade do Chile, o problema exposto pela rejeição é de que “grande parte dos constituintes orientou-se para determinadas áreas que não eram as mais importantes para o povo”.
“Os principais elementos dos protestos [de 2019] estavam ligados a reformas do sistema previdenciário, melhor saúde, educação e fim das injustiças sociais. Grande parte da [proposta] de nova Constituição se concentrou muito em fazer uma série de reformas de cunho político, muitas delas de execução complexa, multinacionalismo etc. Havia uma percepção de grande parte da população de que os constituintes convencionais erraram o alvo”, destacou.
Enquanto que, para a cabeça da Convenção constitucional, o grande avanço seria a “democracia paritária” – pela primeira vez no mundo -, o “plurinacionalismo” e os direitos da diversidade.
Agora, trata-se de consolidar pontos de avanços muito importantes constantes do texto recém rejeitado – o ensino público, sistema nacional de saúde, desprivatização da água e direito à aposentadoria, para preservá-los nas negociações no parlamento, palco mais complexo no qual se desenvolverá de agora em diante a luta política pela nova carta.
BORIC CONVOCA RETOMADA DO PROCESSO CONSTITUINTE
As urnas falaram e agora é preciso tirar as consequências. O povo “não estava satisfeito com a proposta de Constituição oferecida ao Chile”, afirmou em cadeia de rádio e tevê o presidente Boric, que acrescentou aceitar “com muita humildade” essa decisão e chamando as instituições a trabalharem “com mais esforço, diálogo, respeito e carinho até chegarmos a uma proposta que nos represente”.
“Peço a todas as forças políticas que coloquem o Chile à frente e concordem o quanto antes com um novo processo constitucional. O Congresso Nacional deve ser o principal protagonista”, acrescentou, anunciando mudanças em seu governo, para ampliar sua base de sustentação, já iniciadas.
Boric já se reuniu com os presidentes das duas casas do Congresso, para definir os passos iniciais para convocar todos os partidos movimentos sociais e a sociedade civil para o diálogo que se faz urgente e imprescindível.
Como afirmou o presidente do Senado, o socialista Álvaro Elizalde, trata-se de transmitir ao povo chileno “a certeza de que será honrado o compromisso de avançar para uma Constituição”.
Por sua vez uma representante da campanha pela aprovação instou retomar as mobilizações e fazer, das propostas já existentes do texto constituinte, um ponto de partida para a luta. “A tarefa de pôr abaixo a Constituição de Pinochet e o modelo neoliberal segue na ordem do dia”, sublinhou.
ANTONIO PIMENTA