Nesta entrevista exclusiva, Amália Pereira, presidente em exercício da Central Unitária de Trabalhadores (CUT) do Chile, fala sobre a eleição dos convencionais que escreverão a nova Constituição, marcada para o próximo 11 de abril; resgata o exemplo do presidente Salvador Allende (1970-1973), “o presidente mártir”, assassinado pelo golpe de Augusto Pinochet e afirma a importância de escrever na lei maior “o interesse público, da valorização do mundo do trabalho e dos direitos”. “A água, a saúde, a moradia, a educação e a seguridade social precisam estar presentes como direitos consagrados. Esta é a mudança que precisa haver. Acreditamos que este é o primeiro passo: abolir a Constituição em ditadura de Pinochet”, sublinhou. A definição para a nova Constituição foi aprovada em plebiscito realizado em 25 de outubro, quando 78% dos chilenos apoiaram a convocação da Constituinte. Ainda em abril ocorrerão as eleições para governos, prefeitos e vereadores, e em 21 de novembro para presidente, senadores e deputados.
LEONARDO WEXELL SEVERO
Como avalias no atual quadro da Constituinte o protagonismo dos movimentos sociais?
No dia 18 de outubro de 2019 houve um movimento que não foi pelo aumento da passagem do metrô, foi um levante social contra mais de 40 anos de uma enorme desigualdade imposta por uma ditadura que nos custou muitas vidas, contra um modelo neoliberal incrustado no mundo do trabalho. Neste contexto, para nós, se este é um modelo que iniciou no Chile, acreditamos que deve terminar no Chile.
Com a volta da democracia, as expectativas foram grandes em todos os sentidos: econômico, social, sindical… Na ditadura nos tiraram 54 artigos do Código do Trabalho – isso foi feito pelo irmão do atual presidente Sebastián Piñera. Tivemos uma atomização do mundo sindical e uma perseguição de dirigentes, o que fez com que esse levante popular viesse para dizer basta!
“Na ditadura nos tiraram 54 artigos do Código do Trabalho – isso foi feito pelo irmão do atual presidente Sebastián Piñera. Tivemos uma atomização do mundo sindical e uma perseguição de dirigentes que fez com que o levante popular viesse para dizer basta!”
Todo esse processo se deu a um custo altíssimo, inclusive de vidas humanas, de vidas de dirigentes sindicais, e foi pago pelos trabalhadores e trabalhadoras. Esse foi um processo intenso, que ativou os partidos políticos. Porque de nada adiantaria toda aquela aversão ao modelo, toda aquela raiva acumulada, se não a tivéssemos organizada. E os partidos tiveram a capacidade de se unir para requisitar uma nova Constituição. Uma Constituição que inclusive foi proposta pelo nosso presidente mártir, Salvador Allende. Frente a tudo isso, precisamos de uma nova Constituição que seja sujeita de direitos, que estejamos em condições de igualdade, que valorize as etnias, que inclua a educação, que inclua a moradia, que consagre a saúde universal, que reconheça as minorias sexuais. Que aquilo que se plante pelos chilenos possa ser comido aqui mesmo; que o cobre não seja entregue por um preço miserável e se compre por um valor industrializado, muito mais caro.
Se conseguiu um acordo para uma nova Constituição. Talvez não seja o melhor diante da expectativa que tínhamos, mas é um primeiro passo. Porque seguem havendo castas políticas, castas religiosas e castas nas Forças Armadas que querem que o modelo permaneça intocável. E uma direita combativa, com sentido de classe, que quer que os seus interesses continuem prevalecendo sobre os dos demais.
Ao mundo do trabalho e à sociedade em seu conjunto nos custa muito, é um grande desafio, para que estejam incorporados todos e todas. Sabemos que haverá dificuldades, mas as pessoas têm tomado consciência das limitações e têm corrido para comprar livros sobre a Constituição, para informar-se do que tínhamos e do que poderemos vir a ter. O povo está buscando se educar para fazer o país avançar.
No processo de eleição dos convencionais que elegerão a nova Constituição estão disputando lideranças do movimento social.
Haverá candidaturas independentes e este é um aporte. Por outro lado, as pessoas estão cansadas dos mesmos partidos de sempre, de desigualdade, do aproveitamento. Isso explica por que a bandeira que tomou as ruas nos protestos não foi a dos partidos, mas a do povo mapuche, dos que não estão incluídos, dos que estão à margem, por fora do modelo. Esta é a questão. Por que se popularizou a imagem de Allende, do nosso presidente mártir nas manifestações? Pelo mesmo objetivo. Porque as pessoas querem um novo modelo econômico e social de direitos, para todos e todas, que combata e ponha fim a esta enorme desigualdade. Porque o Chile é o país com maior desigualdade da América Latina. E, por que não dizer, do mundo? Em sua curta permanência no governo Allende conseguiu muitas coisas, isso após ter disputado três eleições como candidato. Foi na última que conquistou, a partir da luta. E por que se visibilizou o processo com Allende? Porque tínhamos um projeto de vida, de garantir e melhorar o que é nosso. Que a água fosse nossa, que a educação fosse gratuita. Hoje o que está valendo neste modelo econômico é o de cada um por si, do salve-se quem puder, e é isso que precisamos dar um fim.
“O primeiro que precisamos fazer é consagrar os direitos. A água, a saúde, a moradia, a educação e a seguridade social precisam estar presentes como direitos consagrados”.
Quais devem ser as prioridades?
O primeiro que precisamos fazer é consagrar os direitos: incluir a água, que hoje é privada, garantir a saúde pública, consagrar os direitos humanos. A água, a saúde, a moradia, a educação e a seguridade social precisam estar presentes como direitos consagrados. Esta é a mudança que precisa haver. Acreditamos que este é o primeiro passo: abolir a Constituição em ditadura de Pinochet, isso é o relevante, pois se deu à custa de vidas, de nossos olhos, de nossos filhos e da nossa juventude. Vamos dar este passo. E seguir em frente.
Como Central Unitária de Trabalhadores temos afirmado que é preciso unidade para fazer mais. A valorização do trabalho é uma questão central que está sendo defendida pelos companheiros sindicalistas em suas candidaturas. O sindicalismo tem que ser sócio-político, sendo atores preponderantes, agindo como protagonistas em nosso país, a fim de que tenha peso na hora de sentar frente ao empregador ou ao Estado.
E como está a questão do enfrentamento ao problema da capitalização individual no processo das aposentadorias?
Temos um modelo de seguridade privada que é aterrorizante, um sistema criado durante a ditadura que é de capitalização individual, que achata pensões e aposentadorias. Na realidade, com a privatização da Seguridade Social, um consórcio de capitais passou a monopolizar a Previdência chilena e hoje os trabalhadores se aposentam com tão somente 1/3 do último salário. Para receber o valor integral da aposentadoria, pela qual contribuíram com 13,5% do salário ao longo de três décadas, precisariam estar na ativa até os 120 anos. Mais do que desumano, isso é diabólico. A Seguridade precisa ter todo o seu entorno: saúde, educação, habitação. Mas a capitalização individual fez criar esse sistema de Associação de Fundos de Pensão, as AFP, em que você coloca, você tem. Antes tínhamos um sistema triparte, Estado, empregador, trabalhador, o que fazia com que nossas pensões e aposentadorias fossem dignas. Era algo relevante. Hoje isso se acabou e tudo é lucro de alguns. São empresas privadas que administram, cobram e lucram, obviamente, com lucros estratosféricos. São empresas transnacionais e há também milionários chilenos, como no setor financeiro, com ganhos siderais. Como é a lógica das AFP? Quando ganham, ganham eles, quando perdemos, perdemos nós.