CARLOS LOPES
(HP, 26/09/2003)
Em meados dos anos 60, a CIA procedeu a uma destruição em massa dos seus papéis sobre o golpe de 1953, no Irã, que derrubou o primeiro-ministro Morramed Mossadegh e o governo da Frente Nacional. Segundo disse depois o então diretor da CIA, James Woolsey, a destruição dos documentos foi “rotina”. Mas um inquérito conduzido pelo Arquivo Nacional dos EUA concluiu que a destruição tinha sido ilegal: “a destruição dos registros relacionados ao Irã não foi autorizada”, assim como a de “nenhum documento oficial com efetividade no período 1959-1963, relacionado a ações encobertas”. Segundo disse a CIA, tinham sobrado somente 1.000 páginas sobre o golpe em seus arquivos (somente a pequena parte já desclassificada sobre o golpe do Chile constitui-se em 16.000 documentos, com uma quantidade descomunal de páginas).
O rabo do que a CIA queria esconder apareceu no ano de 2.000. Nesse ano, um “ex-agente” passou ao “The New York Times” um documento secreto da CIA, um relato de 200 páginas (“Overthrow of Premier Mossadeq of Iran, November 1952-August 1953”) da ação contra o Irã, escrito em março de 1954 – sete meses após o golpe – por um dos chefes da operação, Donald Wilber.
NYT: RELATO PASTEURIZADO
O “The New York Times” publicou, do material, apenas um sumário e quatro anexos. Depois, publicou um pouco mais, porém censurando nomes e trechos. Simplesmente, os trechos mais comprometedores sumiram da versão do “Times”. Trata-se de uma versão pasteurizada, expurgada e censurada. Mesmo assim, o jornal foi processado pela CIA, sob a alegação de que a publicação “causaria sérios danos à segurança nacional dos EUA”.
O HP pesquisou o documento completo. Em relação à “segurança nacional” dos EUA, nesse documento divulgado 47 anos depois dos fatos que relata, não há nada que a afete. Mas em relação à “segurança” da canalha terrorista ianque, realmente, não se pode dizer a mesma coisa. O documento é uma descrição detalhada, minuciosa e cínica dos seus crimes. A destruição em massa de documentos referentes ao golpe contra um dos homens mais notáveis do século XX, Morramed Mossadegh, foi, evidentemente, para escondê-los.
Nas páginas do relato, é cristalino que a CIA fabricou, do início ao fim, o golpe contra o Irã. Ela não apoiou os golpistas. Ela fabricou-os, até mesmo escolheu-os – evidentemente, dentre a ralé de ressentidos com a revolução popular e democrática encabeçada por Mossadegh.
Por ele se sabe que, em abril de 1953, a CIA e o SIS (serviço secreto inglês) numa reunião em Nicósia, Chipre, resolveram derrubar Mossadegh porque “desde o fim de 1952 tornou-se claro que o governo de Mossadegh no Irã era incapaz de estabelecer um arranjo com os interesses petrolíferos dos países do Ocidente (Summary, pág. III). (….) Nenhum outro remédio pode ser achado, senão o plano de uma operação encoberta. Especificamente, o objetivo era colocar no poder um governo que alcance um arranjo petrolífero” (pág. IV).
O plano foi concluído em junho de 1953 e, no dia 11 de julho, Eisenhower o aprovou. Dez dias antes, já havia sido aprovado pelo primeiro-ministro inglês, Winston Churchill, de volta ao poder desde 1951. No documento, Eisenhower, seu secretário de Estado, John Foster Dulles, e outros baluartes da democracia, aparecem perfeitamente integrados com a CIA e agindo de acordo com o plano dela. Não somente o aprovaram – e, provavelmente, o encomendaram. São partícipes entusiasmados.
A sofreguidão dos colonialistas ingleses era devida à nacionalização, dois anos antes, da indústria do petróleo iraniana – antes principalmente na mão de companhias inglesas. Quanto aos imperialistas americanos, esses queriam se apossar do petróleo do Irã, como, aliás, se apossaram depois do golpe, até a eclosão da revolução islâmica.
No plano, já estava escolhido o capacho para colocar no lugar de Mossadegh, um corrupto, sanguinário, estúpido e rufião de nome Zahedi, demitido do Ministério da Guerra pelo primeiro-ministro.
Somente para “comprar a cooperação de membros do parlamento iraniano” (Parte IV, págs. 18 e 19) , foi alocada a verba de um milhão em moeda do país (riais). Para as despesas iniciais da “estação da CIA” no Irã, foram destinados 1 milhão de dólares. Ás vésperas do golpe, Zahedi e outros traidores receberam diretamente em sua conta US$ 50 mil, quantia que representava, ao valor do dólar em 1953, magnitude muito maior do que hoje.
BOMBAS E DINHEIRO FALSO
Havia um obstáculo: Mossadegh tinha o apoio de uma das principais autoridades xiitas do país, o aiatolá Kashani, adversário do Xá. Portanto, segundo o relato da CIA, “os agentes da CIA deram séria atenção em alarmar os líderes religiosos de Teerã despejando ‘propaganda negra´ [isto é, falsa] em nome do Partido Comunista [Tudeh], ameaçando esses líderes com selvagem punição se fizessem oposição a Mossadegh. Chamadas telefônicas ameaçadoras eram também feitas para eles em nome do Partido Comunista, e uma das várias fraudes planejadas, de atacar com bombas as casas desses líderes, foi levado a efeito” (Parte V, pág. 37).
O atentado foi realizado diretamente por agentes da CIA. Não há no relato nenhuma menção ao uso dos renegados que a CIA comprou a peso de dólar no Irã (os terroristas da chamada “rede Bedamn”, descrita pelo historiador norte-americano Mark Gasiorowski, em “The 1953 Coup d’Etat in Iran”, 1987).
Esses últimos se encarregaram de assassinar o leal chefe de polícia, general Ashfar-Toos.
Além disso, a CIA espalhou dinheiro iraniano falso para arruinar – e culpar Mossadegh por isso – a economia iraniana.
No relato, há também uma descrição de como o xá Reza Pahlevi foi “convencido” a participar do golpe contra Mossadegh. Pahlevi estava vacilante a respeito da trama da CIA, pois na última vez que tentara afastar Mossadegh, no ano anterior, 1952, isso resultara numa revolta popular que em quatro dias quebrou a sangrenta repressão e o reconduzira ao poder.
A CIA, então, enviou para “convencer” o Xá, o general Norman Schwarzkopf – o pai daquele da primeira agressão ao Iraque. E, quando, apesar da pressão, o Xá continuou vacilando, a CIA esclareceu que o golpe seria dado com ele ou sem ele. Ou seja, com ele, ou contra ele e Mossadegh, ameaça irresistível para um imprestável. Além disso, a CIA tornou sua agente a irmã gêmea do Xá, uma histérica de nome Ashraf, que odiava Mossadegh. Por quê? Porque apesar de Mossadegh ser de ascendência nobre – o pai foi ministro real e a mãe era neta de uma princesa da Pérsia – ele gostava e defendia o povo, aquela gentinha que a jararaca detestava.
Mossadegh, com seus 70 anos, estava decidido a defender os interesses nacionais do Irã – e assim permaneceu até a morte, preso, em 1967. Em 1979, após a revolução islâmica, um milhão de iranianos reuniram-se em torno ao seu mausoléu, em Ahmad Abad, para prestar sua homenagem ao herói.