“O segmento comercial representa a viga mestra da Embraer. Vendê-lo significa inviabilizar a existência do que restar da Companhia”, argumenta o ex-governador
O Partido Democrático Trabalhista (PDT), através de seu vice-presidente nacional, o ex-governador do Ceará e ex-ministro da Fazenda, Ciro Gomes, entrou no Supremo Tribunal Federal (STF) com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental com pedido de Medida Liminar de Urgência contra a decisão do Poder Executivo de não utilizar o poder de veto da “golden share” na Assembleia Geral Extraordinária de acionistas da Embraer S/A.
A assembleia, que deveria ser invalidada pela golden share, foi realizada em 26 de fevereiro de 2019 e decidiu transferir o controle acionário da Embraer para a norte-americana Boeing.
Documentos obtidos pelo HP mostram que o PDT está empenhado em impedir a transferência do controle acionário da empresa brasileira pela companhia dos EUA.
“A transferência do controle acionário, conforme demonstrado, consubstancia-se em nítida ameaça de lesão ao o princípio da soberania nacional (art. 1o, inciso I, e art. 170, inciso I, da CF/88), dos valores sociais do trabalho, da valorização do trabalho humano e da busca do pleno emprego (art. 1o, inciso IV, e art. 170, caput, inciso VIII, da CF/88), do desenvolvimento nacional (art. 3o, inciso II, e artigos 219 e seguintes da CF/88) e da independência nacional (art. 4o, inciso I, da CF/88)”, diz um trecho da ação.
“É que mesmo detendo o poder de veto, a União permitiu a transferência de uma atividade estratégica nacional para a iniciativa privada, de modo a perder a garantia que o resultado dessas atividades permaneçam subordinadas aos interesses do país”, argumenta o PDT.
CONTROLE PELO CAPITAL ESTRANGEIRO
“Vê-se, por esse prisma, que por se tratar de nítida aquisição do controle acionário por capital estrangeiro, está-se diante da atuação premente do poder de veto que detém a União Federal, em razão da golden share, nos moldes estabelecidos pelo artigo 17, §7º da Lei nº 6.404/76 e pelo artigo 8º, da Lei nº 9.491/2000”, prossegue a arguição de inconstitucionalidade.
A Embraer é campeã mundial em vendas de aviões com até 150 lugares e desbancou todas as concorrentes, inclusive a Boeing. Ciro Gomes e o PDT lembram a trajetória vitoriosa da empresa de aviação brasileira.
“A Embraer S/A nasceu como fruto de vários fatores, a saber: a existência de uma base qualificada de técnicos e engenheiros, formados no ITA ou que trabalharam no CTA, com bom trânsito pela FAB; um contexto econômico favorável; um mecanismo de renúncia de Imposto de Renda, que poderia ser revertido para investimento em ações; o poderio dos militares durante a Ditadura de 1964; e a existência de base industrial apta a dar-lhe o devido suporte”, diz ele.
Os proponentes do questionamento ao STF alertam também para o risco de que os projetos de defesa do país sejam prejudicados com a desnacionalização da Embraer. A empresa brasileira produz o cargueiro KC-390, a maior aeronave militar do hemisfério Sul.
SETOR DE DEFESA AMEAÇADO
“Cite-se, no ponto, que a existência do setor de defesa da Embraer resta ameaçado com a negociação em curso, ante a inexistência de uma ligação inquebrantável entre os segmentos civil e militar, na medida em que não se consegue manter o setor de defesa e desenvolvimento tecnológico sem os recursos gerados pelo setor de aviação comercial”, dizem os advogados.
Ciro Gomes argumenta na ação, que é assinada também pelo advogado Walber de Moura Agra, que “trata-se, no caso posto, de verdadeira transferência do controle acionário da Embraer S/A, devendo ser, portanto, matéria objeto de veto por meio da golden share, nos termos do artigo 9o, inciso VI, do Estatuto da Companhia”.
Diz o ex-governador que “a golden share em poder da União representa um elemento tradutor da soberania nacional, cujo alcance vai muito além dos interesses de um simples acionista, como se intenta transformá-lo. Exatamente por a Embraer S/A se tratar de uma empresa estratégica para o Brasil, o exercício da golden share representa a defesa do patrimônio público de titularidade do país, traduzido, por isso mesmo, em um exercício de soberania”.
Os responsáveis pela ação apontam que “não obstante a Embraer/SA tenha sido objeto de privatização no ano de 1994, a União ainda detém, em função da defesa da soberania nacional e dos interesses estratégicos do país, a posse de golden shares, que lhe permitem continuar a assegurar que a Companhia, embora atuante em um mercado de aviação extremamente competitivo com nítido enfoque de auferir lucros, possa atender aos interesse estratégicos do Brasil”.
“É bem verdade”, prossegue a interpelação de Ciro Gomes, “que além de transferir o controle acionário e a gestão da Companhia para a Boeing, a negociação anunciada ostenta o escopo de fragmentar a parte lucrativa da Embraer S/A, transferindo-a para a NewCo, que para além de absorver 100% (cem por cento) das operações e serviços da aviação comercial, ficará sob o controle acionário, operacional e administrativo da Boeing, cabendo à Embraer S/A o ínfimo percentual de 20% (vinte por cento) das ações”.
Sobre a transferência do setor comercial da Embraer para a Boeing, o documento é incisivo: “o segmento comercial representa a viga mestra da Embraer S/A. Vendê-lo significa inviabilizar a existência do que restar da Companhia”.
CRIME DE LESA-PÁTRIA
Em entrevista recente ao HP, Ciro Gomes já nos informava da decisão de questionar na Justiça a venda da Embraer à Boeing e destacava que “o Brasil é um dos poucos países do mundo que tem capacidade de construir aeronaves. No entanto, a Embraer representa muito mais do que só a construção de aviões. Ela gera inteligência, tecnologia e desenvolvimento. A entrega da Embraer para a Boeing pode não só fechar fábricas no Brasil, como fazer o Brasil perder seu protagonismo na área”.
Na ocasião, Ciro classificou a operação como crime de lesa-pátria. “É criminosa essa entrega para a Boeing”, disse ele. O candidato do PDT a presidente em 2018 informou também que o parlamento brasileiro deve se posicionar sobre essa negociação que fere os interesses nacionais. Ele sugeriu a realização de audiências públicas para debater a questão.
A ação, que é dirigida ao presidente do STF, argumenta ainda que “as negociações, se firmarem, será o fim dos resquícios de controle nacional sobre a Embraer, no que colocará definitivamente em xeque seu caráter de empresa de controle nacional”.
Ciro acrescenta que “o caráter nacional de uma empresa vai além do controle por brasileiros e pelas fontes de financiamento. Diz respeito aos vínculos das suas forças produtivas e das suas bases financeiras com a economia nacional, à sua presença no país como um polo de integração de atividades no território nacional e da existência de centros internos de decisão capazes de orientar este capital em torno do horizonte econômico e social determinado por um projeto de nação”.
“É de bom alvitre registrar”, segue o documento, “que a efetivação do princípio da soberania nacional, respeitada a sua densidade mínima, é necessária para que um país caminhe sem fincar laços de dependência indissociável com outras nações”.
“O desenrolar do desenvolvimento econômico de um país somente pode ser concretizado se fixadas balizas seguras no que tange à salvaguarda de sua independência econômica e tecnológica. A negociação posta sob análise, nos termos em que entabulada, retirará da Embraer S/A a potencialidade para implementar produtos e tecnologias de interesse nacional e a criação de fornecedores e empregos no país, que voltará a ser vassalo dos Estados Unidos”, denuncia Ciro Gomes.
AERONÁUTICA ALERTOU PARA OS RISCOS DA VENDA
O documento cita parecer da Aeronáutica alertando para os riscos da operação.
“A Força Aérea Brasileira (FAB) emitiu parecer técnico sobre a negociação entre as Companhias, no qual sustenta que a proposta de separar a área comercial da defesa irá eliminar o processo de investimento público brasileiro na Embraer Defesa, pois não será coerente investir recursos para novas tecnologias que serão transferidas para a Embraer Comercial, que na verdade será a Boeing. Desta forma, a área de Defesa estaria condenada a não ter todas as possibilidades de investimento nas áreas de pesquisa e inovação”, lembram o advogados.
Ciro Gomes aponta também os argumentos de acadêmicos como Marcos José Barbieri Ferreira, professor de economia da Unicamp, para quem “há risco efetivo da Embraer tornar-se apenas uma parte da atividade produtiva e comercial da Boeing, sem, com isso, desenvolver as atividades inovativas, de modo a esmorecer o desenvolvimento tecnológico”.
O ex-governador falou também da audiência pública realizada no STF, em 28 de setembro de 2018, para oferecer subsídios ao julgamento da ADI 5.624.
Nesta oportunidade, lembra Ciro, o professor do ITA, engenheiro aeronáutico e aviador, Wagner Farias da Rocha, afirmou que “a transferência de controle da Embraer para a Boeing está sendo apresentada ao público de forma irregular e alertou que se a transferência ocorrer dessa forma o Brasil vai perder a capacidade de projetar aviões, retroagindo ao estágio tecnológico que tinha na década de 1950. É preciso que, nesse processo, não se repita o “complexo de vira-lata” brasileiro, segundo o qual tudo que vem de fora é melhor”.
CATILINA CONSPIRA
Por fim, a arguição apresenta um texto de rara ironia, de 2001, mas bastante atual, do jurista e cientista político brasileiro, professor emérito da Universidade Federal do Ceará, Paulo Bonavides, tomando como referência as famosas catilinárias de Marco Túlio Cícero, cônsul romano, pronunciados em 63 a.C:
“Catilina conspira, desnacionaliza, privatiza, desfederaliza e Cícero não ressuscita para ocupar as tribunas do Senado e da Câmara, e dali irradiar a luz e o verbo da sua eloquência em momento tão grave e a delicado para a conservação da República, a salvaguarda da independência, a guarda dos bens públicos e a integridade da Amazônia. Catilina conjura pois contra a nação, mina a República, violenta a soberania, quebranta a Constituição e rompe o pacto social. Breve no país de Santos Dumont virão linhas estrangeiras de navegação aérea ocupar, dominar e explorar aquele espaço. Catilina faz enfim as instituições retrogradarem à época colonial”, diz o professor emérito.
SÉRGIO CRUZ
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