Vice-chanceler russo Sergei Rabyakov considera situação “desafio sem precedentes”
Uma semana após o Boletim dos Cientistas Atômicos ter adiantado para dois minutos para a meia-noite o “Relógio do Juízo Final”, advertindo sobre o agravamento do risco de guerra nuclear e da piora da ameaça climática, conferência em Pequim das cinco potências nucleares – EUA, Rússia, China, Grã-Bretanha e França – terminou sem declaração final conjunta nesta quarta-feira (30). Dois minutos para a meia-noite é o mesmo “horário” de 1953, no auge da Guerra Fria, quando norte-americanos e soviéticos testavam bombas de Hidrogênio.
Como advertiu o vice-chanceler russo, Sergei Rabyakov, as relações entre os membros do ‘clube nuclear’ se deterioraram, o que chamou de “desafio sem precedentes”. As divergências, salientou, são “profundas” e “complexas”. Um dos objetivos da reunião era chamar a atenção de que, a menos que sejam tomadas medidas urgentes para sua extensão, o tratado New Start de 2010, que limita as ogivas estratégicas e os sistemas lançadores dos EUA e da Rússia, irá terminar em fevereiro de 2021. Também há premência em salvar o Tratado INF, que proíbe desde 1987 mísseis terrestres nucleares de alcance intermediário, e do qual Trump anunciou a saída no próximo sábado (2)
“Não podemos deixar de nos preocupar que todos estes eventos estejam acontecendo no contexto de um profundo déficit de confiança mútua entre os membros dos “cinco nucleares”, o que constitui um desafio sem precedentes. A situação é tão séria que desta vez tivemos que recusar concordar com a declaração final”, assinalou Ryabkov.
O “Relógio” foi criado em 1947, por cientistas que ajudaram os EUA a criar suas primeiras armas atômicas, em face da devastação causada em Hiroxima e Nagazaki e da ameaça que passava a pairar sobre a Humanidade com o advento das bombas nucleares, e se tornou um poderoso símbolo do risco de a Humanidade chegar à sua destruição total.
Hoje, o comitê do Boletim dos Cientistas Atômicos inclui 15 laureados com o Prêmio Nobel. A partir de 2007, incorporou novos riscos percebidos para a Humanidade, como a questão ambiental e o advento de outras tecnologias de difícil controle. É a segunda vez que o relógio é adiantado desde a posse de Trump.
Como vem denunciando o presidente Vladimir Putin, ações unilaterais de Washington têm desmantelado a arquitetura de segurança internacional. Os EUA abandonaram unilateralmente em 2001 o tratado antimíssil ABM, de 1972, pedra angular da détente, e o que repete agora com o INF. O governo Obama iniciou programa de intensificação do arsenal nuclear dos EUA de US$ 1 trilhão, que Trump herdou e está vitaminando.
A ameaça nuclear assume novos contornos, desde que círculos nos EUA abraçaram a insana proposição da ‘vitória na guerra nuclear com primeiro ataque’, desde que haja antimísseis a postos para destruir o que restar de resposta, em substituição à destruição mútua assegurada que, no limite do terror, manteve o mundo livre dos Dr. Strangeloves por décadas.
Na sua “Revisão da Postura Nuclear” o governo Trump borrou a fronteira entre o uso de armas convencionais e o de armas nucleares, ao autorizar a utilização de bombas nucleares de “potência menor”. As primeiras ogivas já estão saindo da linha de produção no Texas, conforme a Administração Nacional de Segurança Nuclear dos EUA.
A nova arma, o W76-2, é uma modificação da ogiva Trident existente. Segundo Stephen Young, da União de Cientistas Engajados, sua potência provavelmente foi reduzida tirando um estágio do dispositivo termonuclear W76 original de dois estágios. Sua potência explosiva de 100 quilotons de TNT cai para cerca de cinco – o que é aproximadamente um terço da força da bomba lançada sobre Hiroshima. Os EUA também estão introduzindo na Europa uma versão atualizada de suas bombas atômicas, a B61-12.
Quanto ao tratado INF, o governo Trump tenta jogar a culpa sobre a Rússia e chantageia os países europeus para que se atrelem à provocação, quando é do interesse deles evitar o retorno ao quadro de quase guerra nuclear que existiu no teatro europeu. Ao proibir mísseis nucleares de 500 km de alcance até 5.000 Km, o acordo possibilitou a destruição de mais de dois mil mísseis no total, dos dois lados.
A Rússia realizou no dia 23 uma apresentação a adidos militares estrangeiros do míssil que vem sendo usado de pretexto por Washington para deixar o INF, o sistema 9M729, e revelou seus principais parâmetros – o alcance, de 480 km, está dentro do que o acordo permite. Os países da Otan não compareceram. “Nosso sistema 9M729 nunca foi testado para uma faixa proibida pelo tratado. Não vemos outras razões pelas quais os EUA possam reclamar de nós”, afirmou Ryabkov. Até agora Washington “não forneceu qualquer informação específica” sobre o motivo pelo qual concluíram que o míssil “não atende” ao tratado.
A entrada em operação das novas bombas nucleares de “baixa potência” [supostamente um terço da que destruiu Hiroxima e matou 140 mil pessoas] está sendo questionada. “Até que ponto isso sinaliza uma nova disposição por parte dos EUA de começar a usar armas nucleares estratégicas de maneira tática e muito limitada no início de um conflito em potencial?”, destacou Hans Kristensen, da Federação de Cientistas Americanos.
Ou, pior ainda. “Há muitos outros cenários, especialmente com um presidente que se orgulha de sua imprevisibilidade e que perguntou literalmente: ‘Por que não podemos usar nossas armas nucleares?’”, alertou Young,
O recentemente nomeado vice-conselheiro de Segurança Nacional de Trump, Charles Kupperman, um ex-Lockheed-boy, já chegou a asseverar que uma guerra nuclear poderia ser vencida “no sentido clássico” se um dos lados emergisse mais forte, mesmo com dezenas de milhões de baixas. Esses fanáticos falam abertamente em tornar as bombas atômicas “mais usáveis”.
“A crença de que pode haver vantagem tática usando armas nucleares – que eu não ouvi ser abertamente discutida nos Estados Unidos ou na Rússia por muitos anos – está acontecendo agora”, afirmou o ex-secretário de defesa dos EUA do governo Clinton, William Perry, que tem propugnado pelo controle de armas. Ele se disse menos preocupado com o número de ogivas nucleares no mundo do que com o retorno da guerra fria sobre o uso dessas armas. “Essa é uma crença muito perigosa”, acrescentou, considerando tal situação “extremamente angustiante”.
ANTONIO PIMENTA