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2.800 lideranças camponesas, indígenas e afrodescendentes apontaram caminho à transformação do campo, priorizando “a redistribuição equitativa de terras, bens produtivos e recuperação de territórios saqueados, justiça agrária, restituição e reparação de dívidas históricas com as comunidades”. No final do evento, após dois dias de debates, o presidente Gustavo Petro se comprometeu com os 12 pontos aprovados, assinalando que representam “a construção coletiva do plano decenal que fará da Colômbia uma potência mundial de vida” e conclamou a todos a irem às ruas para derrotar a oligarquia e garantir sua efetivação
LEONARDO WEXELL SEVERO – Chicoral, Colômbia
Após dois dias de calorosos debates, 2.800 dirigentes camponeses, indígenas e afrodescendentes colombianos construíram um projeto para enfrentar o câncer do latifúndio – tomado pela oligarquia, as transnacionais e o narcotráfico -, que concentra mais de 70% das propriedades rurais, domina e corrói o poder político e econômico do país de Gabriel García Márquez.
O “Pacto pela Terra e pela Vida para acelerar a Reforma Agrária”, assinado neste sábado (22) entre as organizações do campo e o governo de Gustavo Petro no distrito de Chicoral, no município de Espinal, departamento (estado) de Colima, é de transcendência histórica. Afinal, como bem descrevem os estudiosos, “quem tem o poder tem a terra e quem tem a terra tem o poder”. No ano de 1972, em Chicoral, denunciaram as entidades, ocorreu um encontro de congressistas a mando da oligarquia, sob o respaldo do então presidente Misael Pastrana, “para devastar as comunidades rurais, barrar a possibilidade de expropriar latifúndios improdutivos ocupados pelas comunidades camponesas e manter intacta a concentração de terras”.
Uma das três lideranças nomeadas para apresentar as deliberações do evento, Nury Martínez, presidenta da Federação Sindical Agrícola Unitária Nacional (Fensuagro), assinalou que a prioridade agora é a aplicação de uma política de “redistribuição equitativa de terras, bens produtivos e recuperação de territórios saqueados, realizando justiça agrária, restituição e reparação de dívidas históricas com as comunidades”.
Secretária das Américas da Via Campesina, Nury avalia que se o desejo coletivo pela Reforma Agrária foi freado há mais de cinco décadas em Chicoral, agora é potencializado com a vibração dos delegados junto à determinação da comunidade em respaldo à iniciativa.
INCLUIR POVOS E COMUNIDADES NAS POLÍTICAS PÚBLICAS E PROMOVER SOBERANIA ALIMENTAR
Os demais pontos contemplados no Pacto, explicou Nury, são a “restauração, recuperação e proteção de solos rurais, conectividade de corpos hídricos e ecossistemas; representação, autonomia e inclusão efetiva das comunidades e dos povos nas políticas públicas; transformação do modelo de produção agrícola para garantia dos direitos individuais, coletivos e da natureza, e promoção da soberania alimentar; proteção das conquistas históricas resultantes da luta social e da busca pela paz; reorganização e fortalecimento da institucionalidade agrária; garantias para a vida e fortalecimento das organizações populares e comunitárias; e o reconhecimento e inclusão das mulheres, das diversidades e da juventude rural”. Além disso, defendemos a “proteção da água e fortalecimento das territorialidades das cidades e comunidades; recomposição e garantias para o exercício dos sistemas de conhecimento dos povos e comunidades e transformação de economias onde existem cultivos para uso ilícito de coca, cannabis [maconha] e papoula [heroína]”.
Representado os afrodescendentes, Bárbara Machado apontou que o objetivo do Pacto é “promover uma aliança popular-institucional que vise respeitar e dignificar as comunidades, os povos e os trabalhadores agrícolas que lutam pela terra, pela água e pelos ecossistemas”.
Em nome dos povos indígenas, Herminson Vega destacou que “o sucesso da Reforma Agrária e do Plano Decenal para sua implementação depende da colaboração ativa de todos os setores da sociedade, bem como das coalizões estratégicas e práticas estabelecidas”.
O debate tem extrema relevância, demarca o Jornal Voz, citando o Departamento Administrativo Nacional de Estatística, pois nos últimos três anos o Índice de Preços ao Consumidor (IPC) correspondente aos alimentos passou de 27,1% em 2022 para somente 3,3% em 2024, graças à adoção de políticas públicas para a agricultura e o desenvolvimento rural, como o apoio do Banco Agrário a diversos projetos produtivos. É também a segunda atividade econômica que mais gera emprego no país: 4,9 milhões, um aumento de 89 mil postos de trabalho em relação a 2023.
Ao mesmo tempo, como questionaram as lideranças, é grave a informalidade que afeta 84,1% do setor, com os agricultores ainda submetidos a condições de vida e trabalho degradantes, herança dos terratenientes (proprietários de terra) escravocratas, que seguiram cavalgando e puxando as rédeas de governos neoliberais.
“MOMENTO HISTÓRICO E SIGNIFICATIVO QUE AMPLIA O ACESSO À TERRA”, RECONHECE FAO
“Para mim, este realmente é um momento histórico e significativo para a Colômbia, pois amplia o acesso à terra e aponta em direção à construção de um mundo mais justo com soberania alimentar”, defendeu o representante da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), Agustín Zimmermann.
“Após tanta luta, só neste governo estão sendo adotadas medidas para enfrentar o fruto amargo da violência e do deslocamento forçado”
“Após tanta luta, só neste governo, com Gustavo Petro e Francia Márquez, estão sendo adotadas medidas para enfrentar o fruto amargo da violência e do deslocamento forçado”, comemorou Luz Marina Palacios Bocanegra, líder camponesa de San Pedro, no Vale do Cauca, citando ações como a formalização da propriedade rural e a distribuição de terras e bens recuperados de atividades ilícitas a organizações camponesas. Veterana dirigente, avalia que o “acordo selado com o governo para a transformação do campo será essencial para a redistribuição e democratização da propriedade da terra, essencial para a soberania alimentar, a proteção ambiental e para a paz”.
Com os investimentos governamentais dos últimos dois anos, explicou Luz, diversificamos a produção no Vale do Cauca com café, amora, tomate de árvore, banana, milho e feijão, galinha e porco. “São avanços ainda limitados, mas significativos, que os meios de comunicação, defensores de Álvaro Uribe (2002-2010), não divulgam”, condenou. Para o campo, acrescentou, “é importante lembrar tudo o que o uribismo representou com a enorme violência, que atingiu profundamente as comunidades, provocando o deslocamento forçado de mais de quatro milhões de colombianos, apenas na década de 2000”. “Desta forma, antes muito produtivo, o campo ficou despovoado”, assinalou.
“UM MILHÃO DE HECTARES FORAM DISTRIBUÍDOS NO GOVERNO PETRO”
Membro da executiva da Confederação Nacional de Ação Comunitária da Colômbia e vice-presidente do Conselho Nacional de Paz (CNP), Jaime Gutierrez Espina recordou que o conflito armado no país teve início justamente com a retirada dos trabalhadores rurais do direito à terra, que passou a estar extremamente concentrada, o que fez disparar plantações de cultivos ilícitos. “Enquanto nos três últimos governos de Juan Manuel Santos (2010-2018) – que assinou a paz com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) -, e o de Iván Duque (2018-2022) foram distribuídos somente 30 mil hectares, no governo Petro foram um milhão. Esta política somada à de Paz Total tem um grande significado, particularmente para o campo, que é quem mais tem sofrido com o derramamento de sangue”, acrescentou Espina. Como entidade defensora dos direitos humanos, recordou, o CNP sentiu o peso da violência: 8.750 homicídios registrados nos últimos 30 anos, 82 entre 2020 e 2024, e seis apenas neste ano.
Após comparecer ao encontro e participar de várias das 25 de mesas de debate, vestindo a camiseta oficial da Reforma Agrária, a ministra da Agricultura e Desenvolvimento Rural, Martha Carvajalino, reiterou a determinação de fazer uma “Revolução pela vida”. “Assinamos este pacto com o compromisso que assumimos do Ministério da Agricultura e o faremos em nome de um governo que está determinado a avançar. Com vocês, do movimento agrário, redefinimos os acordos e dizemos ao país que fortalecemos os nossos braços, vozes e a solidariedade para fazer da Colômbia uma potência agroalimentar”, salientou.
A ex-ministra do Trabalho, Gloria Inés Ramírez, falou da luta para garantir as reformas nas pensões e aposentadorias, nos direitos trabalhistas e de igualdade de gênero, que beneficiaram a milhões de pessoas e promoveram melhores condições de emprego, “apesar do boicote do Congresso”, convocando a todos a se manterem unidos e mobilizados para “construir a democracia no campo, o que significa o direito à terra para quem nela trabalha”.
Em sua intervenção no encerramento do evento, o presidente Gustavo Petro defendeu a necessidade de recursos para “a indústria e a agricultura”, essenciais para o progresso de qualquer país, e denunciou como os congressistas de direita estão impedindo a execução de um plano nacional de desenvolvimento, cortando recursos do orçamento em prol de seus mesquinhos interesses eleitorais. O líder colombiano realçou que “na Colômbia, quando falamos de extrema direita que vem ao poder com uma serra elétrica, não é para tomar fotos com Elon Musk, pois aqui cortam membros de seres humanos”.
“Viemos a Chicoral exorcizar este local de energias malignas que nos levaram à maior desigualdade social e à violência”
“Então como será feita a paz na Colômbia? Pois bem, não é repetindo o que aconteceu em 9 de janeiro de 1972. Fazer a Reforma Agrária é reviver a paz, por isso estamos aqui em Chicoral. Viemos exorcizar este local de energias malignas que nos levaram à maior desigualdade social e à violência. Ao resolver a desigualdade, construiremos a paz”, afiançou Petro.
Acompanhado dos ministros do Trabalho, Meio Ambiente, Educação, Cultura, Justiça, Ciência, Minas e Transportes, e de diretores do Departamento Administrativo da Presidência, entre outros governantes e parlamentares, o presidente também responsabilizou Pastrana pelo narcotráfico no país, “ao ter retirado do camponês a possibilidade de acesso à terra fértil”. O mandatário também cobrou mudanças na Reforma da Previdência, tremendamente elitista e discriminadora. “Onde há um camponês que esteja aposentado na Colômbia? Que tipo de Justiça, que estado social de direito é esse?”, questionou.
Ao repudiar a postura de congressistas que se dobraram aos fundos privados de pensão e deram as costas aos interesses dos que trabalham e “os sustentam”, Petro foi ovacionado ao conclamar “uma grande mobilização nacional, pacífica”, pois “já anunciam que a Constituição é letra morta e que se aprovamos benefícios aos que precisam tampouco serão aprovados”. “Mas aqui estamos, unidos, para fazer da Colômbia uma potência mundial de vida”, enfatizou o presidente, exortando a todos a pensar e consolidar, muito além de um nome, na “reeleição de um projeto de transformação”.
Da região de Córdoba, a pequena agricultora Tania Valentina Lopez fez questão de traduzir “o significado modesto, mas contundente, dos avanços conquistados pela agricultura familiar no último período”. “Nosso país tem sido basicamente um país produtor de matérias-primas, de baixo valor agregado, lastimosamente agroindustrial, que abandonou o saber ancestral. Agora, através do associativismo estamos valorizando os nossos produtos”, declarou, me presenteando com um pacote de abacaxi hidratado para exportação.
Segundo Tania, que também é professora de empreendedorismo, “esse governo da mudança, avança desde o rural ao urbano, pensando em melhoramentos, em transição energética, em fortalecimento da educação pública, investindo em plataformas digitais”. “Os obstáculos existentes serão superados em conjunto”, frisou.
As lágrimas de muitos participantes, assim como o eco de palavras de ordem como “Reforma Agrária para quem? Para quem nela trabalha e a trabalha bem”, e a caminhada com a bandeira da Palestina condenando o genocídio israelense estavam ali, reafirmando a solidariedade como a ternura entre os povos. A apodrecida mídia local preferiu invencionices com “gente de fora para aplaudir” chegando em “ônibus luxuosos”, “estudantes contratados” e outras sandices para proteger seus amos de uma manifestação de tamanha transcendência.
Liderança de Andaluzia, no Valle do Cauca, Esperanza Velasco participou dos debates agarrada à pequena filha Juliana, reconhecendo o empenho dos servidores na assistência técnica para o cuidado às terras ancestrais, valorizando os produtos orgânicos e desfazendo as dependências dos químicos, costumeiramente impostos pelas multinacionais. “Esta é uma articulação dos povos, uma festa coletiva em que camponeses, indígenas e a comunidade afro estão celebrando os bons resultados conquistados. Estou feliz com a assinatura do Pacto, porque mais do que um caminho deixarei para a Juliana uma esperança de futuro”, concluiu.
Reportagem da Agência ComunicaSul de Comunicação Colaborativa com o apoio do jornal Hora do Povo, Diálogos do Sul Global, Barão de Itararé, Vermelho, Agência Sindical, Correio da Cidadania e gabinete do vereador Gilmar Lima Martins (Alegrete-RS)