
Trump direciona guerra comercial contra a China que não se dobra à chantagem tarifária e convoca membros da OMC a protegerem regras comerciais multilaterais e a resolverem as diferenças pelo diálogo e cooperação
A desova de quase US$ 2 trilhões em títulos do Tesouro norte-americano – tidos como um porto seguro nas crises – enquanto rendimentos (juros) oferecidos por eles chegaram a atingir 4,51%, após serem 3,9% um dia antes, mais o indisfarçável pânico em Wall Street e no Fed, forçaram nesta quarta-feira (9) Trump – após decretar tarifaço contra o planeta inteiro – a recuar para um patamar de 10% por 90 dias, ao mesmo tempo em que ele manteve a confrontação com a China. Nos dias anteriores, as bolsas derreteram no mundo inteiro, em reação ao “Dia da Libertação”, proclamado pelo biliardário, na semana anterior.
O juro sobre os Treasuries (papéis do Tesouro) com prazos de 30 anos ultrapassou os 5%, o que aponta as taxas de hipoteca a chegarem a 7% novamente. Já os custos de empréstimos para carros, empresas, etc., começaram a subir, significando custos mais altos ao governo dos EUA para manter sua monumental dívida de US$ 32 trilhões, da qual US$ 8,6 trilhões vencem no decorrer de um ano.
A iminência de colapso não veio como um relâmpago em céu azul, com um magnata apoiador de Trump, o especulador em fundos de hedge Bill Wackman, advertindo na véspera a iminência de “um inverno nuclear econômico autoinfligido”. Partiu dele a sugestão da “pausa de 90 dias” ao tarifaço.
Em paralelo, o dólar estava caindo em relação às outras moedas e consumidores temerosos do repique inflacionário iam às lojas para estocar bens e utilidades. Ainda na terça-feira, um leilão de notas do Tesouro de três anos teve demanda muito baixa, forçando os dealers a trabalharem com quase 21% na oferta, o pior percentual desde 2023.
O próprio secretário do Tesouro, Scott Bessent foi forçado a ir à Fox Business, na turbulenta quarta-feira, para tentar tranquilizar as pessoas, dizendo acreditar “que não há nada de sistêmico nisso, acho que é uma desalavancagem desconfortável, mas normal, que está ocorrendo no mercado de títulos”.
O pânico foi registrado pelo The New York Times: “os investidores começaram a se desfazer dos títulos do governo dos EUA. Eles venderam, venderam e venderam. Isso não é normal”.
“Normalmente”, prosseguiu o NYT, “os títulos do governo dos EUA são um porto seguro. Sempre que as ações despencam ou há turbulência em todo o mundo, os investidores correm para comprar títulos do Tesouro americano. Mas, de repente, esses títulos se tornaram amargos”. O que, aliás, já aconteceu antes, no crash de 2008 e em grande medida pouco antes da pandemia.
Ao final, Trump, que no início do dia fora à sua rede Truth Social convocar que “hoje é um ótimo dia para comprar [ações]”, teve de cair na real e decretar a pausa no tarifaço. Ele admitiu aos repórteres ter percebido “que as pessoas [no mercado de títulos] estavam passando um pouco da linha. Estavam ficando agitadas”.
Sobre tamanho fuzuê, o Wall Street Journal estampou o porquê “de Trump ter piscado sobre as tarifas poucas horas depois de entrarem em vigor”. Com direito a acréscimo de “o mundo pergunta: é método ou loucura?”
MADAME TRUSS DE MAR-A-LAGO
Para o jornal inglês The Guardian, Trump escapou por pouco do destino da primeira-ministra britânica Liz Truss, forçada em 2022 a renunciar após provocar desastre semelhante no mercado de títulos de Londres e quase quebrar o Banco da Inglaterra.
Nesta quinta-feira (10), a euforia vivida em Wall Street no momento seguinte ao recuo de Trump já ficara para trás, com nova rodada de perdas nos índices da Bolsa novaiorquina: (– 3,45% S&P 500); (-2,54% Dow Jones); e (-4,31% Nasdaq). O S&P 500 é o índice em que se baseiam as contas de poupança 401-k, vitais para os aposentados.
NA CHANTAGEM CONTRA A CHINA TRUMP ELEVA TARIFAS A 145%
O que o NYT descreveu como “ações caem novamente com aumento da angústia em relação à guerra comercial de Trump” – no caso, a Casa Branca esclarecendo que a tarifa contra a China de 125% seria somada aos 20% a pretexto do fentanyl, totalizando 145%, tornando ainda mais evidente que o intercâmbio comercial com a China virtualmente parou.
Segundo o chefe da Organização Mundial do Comércio, Ngozi Okonjo-Iweala, a guerra tarifária EUA-China pode reduzir o comércio de mercadorias entre os dois países em 80%, o que pode “prejudicar gravemente as perspectivas econômicas globais”.
As principais exportações da China para os Estados Unidos provavelmente serão as mais atingidas – tudo, desde eletrônicos e máquinas até têxteis e roupas, de acordo com o Instituto Peterson de Economia Internacional. E devido ao papel crucial que os produtos chineses desempenham no fornecimento de empresas americanas, as tarifas também podem prejudicar fabricantes e consumidores americanos, alertaram analistas.
Assim, o “Dia da Libertação” [e do tarifaço] que deveria ser uma porta de entrada simbólica para sua prometida “era de ouro da grandeza americana”, em vez disso, desencadeou uma torrente de quedas do mercado global que gerou alertas de uma recessão, ou mesmo uma depressão no estilo dos anos 1930, enquanto Trump descartou tudo como uma “interrupção” temporária, assinalou o Guardian.
OMC DISCUTE “TARIFAS RECÍPROCAS”
Na quarta-feira (9), em Genebra, a China formalizou na Organização Mundial do Comércio (OMC) sua contestação às mal denominadas “tarifas recíprocas” de Trump na primeira sessão anual do Conselho de Comércio de Mercadorias, instando os EUA a retornarem ao cumprimento das normas da entidade.
A China destacou que o sistema de comércio multilateral centrado na OMC serve como base institucional para o comércio global, e o compromisso tarifário multilateral baseado no tratamento de nação mais favorecida (NMF) garante que todos os membros da OMC conduzam o comércio e a cooperação em um ambiente transparente, previsível e não discriminatório, disse a Xinhua.
As “tarifas recíprocas” são uma abordagem “equivocada e contraproducente” que não apenas falha em resolver os desequilíbrios comerciais, mas também sairá pela culatra para os próprios EUA, perturbando severamente a ordem comercial internacional. Não há vencedor em uma guerra comercial. A China pede a todos os membros da OMC que tirem lições da história, defendam e protejam as regras comerciais multilaterais e resolvam as diferenças por meio do diálogo e da cooperação multilaterais, registrou a Xinhua.
Outros membros da OMC, incluindo Reino Unido, Canadá, Japão e Coreia do Sul, criticaram as “tarifas recíprocas” por perturbarem a ordem comercial internacional, minarem a estabilidade das cadeias industriais e de suprimentos globais e prejudicarem os interesses de produtores e consumidores em todas as nações – incluindo os próprios EUA.
CHINA RECHAÇA COM CONTRAMEDIDAS
Assim que Trump decretou o tarifaço adicional de 34% sobre os produtos chineses, respondido de forma espelhada por Pequim, ele tem dobrado a aposta, até chegar a 145%, enquanto a China contrarrestou com 84%. “Os EUA continuam impondo tarifas e exercendo pressão máxima sobre a China, que se opõe firmemente e jamais aceitará tal intimidação”, afirmou o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores Lian Jin.
“Se os EUA realmente buscam resolver a questão por meio do diálogo e da negociação, devem demonstrar uma atitude de igualdade, respeito e reciprocidade. Se os Estados Unidos estão determinados a travar uma guerra tarifária ou comercial, a China está pronta para lutar até o fim”, afirmou o porta-voz do governo Jinping.
Na quarta-feira, o MRE compartilhou trecho de um discurso do fundador da República Popular da China, Mao Tse Tung, sobre outro momento de confrontação entre a RPC e os EUA, em 1953, em que ele diz que “nunca cederemos e vamos lutar até triunfar completamente”.
“Quanto ao tempo que essa guerra vai durar, não somos nós que podemos decidir”, declarou Mao. “Costumava depender do presidente Truman e dependerá do presidente Eisenhower, ou de quem quer que se torne o próximo presidente dos EUA. Depende deles.”
O discurso aconteceu na sessão de encerramento da reunião política da PCCh, durante a guerra da Coréia, durante a qual a China socorreu o Norte da Península contra a intervenção norte-americana.
A atual porta-voz de relações exteriores da China, Mao Ning, sugere que a retórica se aplica hoje. “Somos chineses. Não temos medo de provocações. Não recuamos”, disse ela na legenda.
Anteriormente, a chancelaria chinesa divulgara um vídeo do então presidente Ronald Reagan, em que este apregoa que a imposição de tarifas leva à retaliação e acaba por prejudicar a própria economia norte-americana
QUESTIONAMENTOS DESDE OS EUA
Também dentro dos EUA surgem questionamentos às alegações de Trump para desencadear sua guerra tarifária, de que os norte-americanos (que inventaram a globalização, o neoliberalismo e o Consenso de Washington) são “saqueados” por suas vítimas, os povos do planeta inteiro, que – na verdade – passaram as últimas quatro décadas sob o tacão do ‘mundo unipolar’ e do ‘excepcionalismo americano’.
Até mesmo o Wall Street Journal observou que, em suas contas para supostamente “reequilibrar” o comércio internacional, Trump ignora que, nos serviços – e isto hoje quer dizer alta tecnologia na nuvem, as Sete Magníficas de Wall Street, serviços digitais – o superávit dos EUA é de US$ 1,1 trilhão e ninguém sequer chega perto.
As alegações de que a China está “saqueando” os EUA no intercâmbio comercial foi contestada pelo ex-secretário do Tesouro Lawrence Summers, de que a China fornece aos consumidores americanos produtos de qualidade que exigem recursos, fábricas e investimentos caros em troca de folhas de papel verde de valor decrescente, ou seja, dólares. E, portanto, a China não está enganando ninguém, nem o lado prejudicado são os EUA.
EUROPEUS ESQUENTAM AS TURBINAS
Na quinta-feira, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, anunciou a decisão de adiar por 90 dias – de forma espelhada ao recuo dos EUA – das tarifas aprovadas na véspera pelo bloco europeu, em sua primeira manifestação de resistência à guerra tarifária desencadeada pelo governo Trump contra o mundo inteiro. A contramedida suspensa é a imposição de tarifas sobre US$ 23 bilhões de dólares em produtos importados dos Estados Unidos, em resposta às tarifas de 25% em aço, alumínio e carros decretadas no mês passado pelo governo Trump.
Neste 90 dias, pesará sobre todos os produtos exportados pela União Europeia para os EUA a sobretaxa de 10%.
Ao aprovarem a resposta às tarifas de Trump sobre aço, alumínio e carros, o bloco europeu considerou a medida norte-americana como “injustificável”. “A UE considera as tarifas americanas injustificadas e prejudiciais, causando danos econômicos a ambos os lados, bem como à economia global,” anunciou a Comissão Europeia. O bloco expressou, ainda, sua clara preferência por encontrar soluções negociadas com os EUA, que sejam equilibradas e mutuamente benéficas.
Na OMC, a UE afirmou que as assim chamadas “tarifas recíprocas” dos EUA minam seriamente os princípios fundamentais da OMC e são ineficazes para lidar com os desequilíbrios comerciais.
Por videoconferência, o comissário europeu de Comércio e Segurança Econômica, Maros Sefcovic, e o ministro do Comércio chinês, Wang Wentao, tiveram uma troca de pontos de vista profunda e franca sobre o fortalecimento da cooperação econômica e comercial bilateral e a resposta às chamadas tarifas recíprocas impostas pelos EUA, segundo comunicado chinês desta quinta-feira.
A UE e a China concordaram em iniciar consultas para discutir minuciosamente questões relacionadas ao acesso ao mercado, criar um ambiente de negócios mais favorável para as empresas e iniciar imediatamente negociações sobre compromissos de preços para os veículos elétricos, bem como explorar a cooperação de investimento na indústria automotiva China-UE.
Na véspera, o comissário europeu de comércio havia dito que a UE está preparada para implantar “todas as ferramentas” para se proteger do impacto das tarifas dos EUA se as negociações fracassarem.