“A atual crise energética é resultado do desmonte do sistema elétrico brasileiro e da falta de planejamento que se seguiram nas últimas duas décadas e meia e que se mantém até hoje”, observou o professor da USP
O professor Ildo Sauer, pesquisador do Instituto de Energia da USP e ex-diretor da Petrobrás, afirmou, nesta quinta-feira (2), em palestra realizada em seminário sobre a crise energética, realizado pelo Instituto de Engenharia de São Paulo, que “a crise energética atual não tem nada a ver com falta de recursos energéticos”. “Ela é resultado da mudança do modelo, do desmonte do sistema elétrico brasileiro e da falta de planejamento que se seguiram nas últimas duas décadas e meia e que se mantém até hoje”, observou.
SISTEMA FOI DESMONTADO
“Ela tem a ver com as escolhas, e as escolhas erradas têm a ver com o modelo institucional, o modelo de contratação da expansão da oferta e o modelo de operação do sistema elétrico interligado brasileiro”, acrescentou Ildo Sauer. “De 1880, quando nós começamos a ter acesso à energia elétrica no Brasil, até 1930, tivemos iniciativas incipientes”, prosseguiu o engenheiro. “De 30 até os anos 90”, acrescentou, “seguimos basicamente por uma filosofia de regulação do sistema pelo custo dos serviços”, acrescentou.
Segundo Sauer, “a crise dos anos 50 ressaltou mais ainda a ideia de que a energia elétrica passou a ser um recurso essencial, ao lado do petróleo, da indústria do aço e do financiamento das comunicações, para o desenvolvimento nacional. Houve grande resistência à criação da Eletrobrás, que só veio a se concretizar em 1962, já no governo João Goulart. A partir daí o modelo funcionou baseado na ideia do custo do serviço. Significava que os recursos eram desenvolvidos, por empresa privadas ou estatais, mas o preço estava vinculado ao custo da produção”.
“A grande mudança ocorreu nos anos 90, quando tivemos a mudança do modelo de formação dos preços”, assinalou Ildo Sauer. “Passamos a fazer a alocação de riscos e custos com a criação do mercado atacadista de energia, que, através do preço SPOT (uma cotação de algum ativo, utilizada no mercado financeiro a curto prazo), sinalizaria o incentivo para o investimento”, prosseguiu o professor.
“A crise dos anos 50 ressaltou mais ainda a ideia de que a energia elétrica passou a ser um recurso essencial, ao lado do petróleo, da indústria do aço e do financiamento das comunicações, para o desenvolvimento nacional”
“Como no Brasil o maior recurso que nós temos é o hidráulico, e agora o eólico, que são marcadamente influenciados pelo comportamento aleatório da hidrologia e da ‘eologia’, a formação de preço, que, num sistema capitalista, está vinculado ao custo do capital, da tecnologia e da capacidade de gestão, passou a ser marcado por um fenômeno aleatório, uma espécie de cassino.
“Aí, neste sistema, está a origem da falta de expansão que levou ao racionamento em 2001 e 2002”, afirmou o engenheiro.
MODELO INFLUENCIOU ALTA DOS PREÇOS
Ele lembrou que “a mudança que estava prometida para acontecer a partir de 2003 não aconteceu, e estamos na mesma toada”. “A estrutura institucional do sistema brasileiro é que está na origem da crise”, enfatizou. “A mudança era para um modelo de expansão planejada. Os vendedores de energia em leilões com prazos de quinze a vinte anos, operariam suas usinas pelo custo do capital. O risco hidrológico, e depois o risco eólico, seriam custeados coletivamente, numa forma de seguro”, explicou.
“O modelo que prevaleceu a partir dos anos 90 influenciou a elevação dos preços. Depois houve uma mudança institucional proposta, que não foi seguida, e continuamos com o sistema crítico. Aí se repetiu a crise em 2013 e 2014 e, agora, ela está do volta em 2021”, disse Ildo.
“Ainda temos um potencial hidráulico da ordem de 250 mil MW. No setor eólico, nós não temos políticas públicas para o setor. Não há planejamento. Mas, mesmo assim, nós temos um potencial que supera os 600 mil MW, no mínimo 750 mil MW, ou seja, três vezes mais do que o potencial hidráulico, sem considerar o potencial offshore” das eólicas, apontou o especialista. “Além disso, temos os recursos da biomassa, resíduos urbanos e o potencial da solar fotovoltaica, que tem uma distribuição ampla, quase uniforme, para ser apropriada e distribuída no Brasil”, acrescentou.
BRASIL POSSUI RECURSOS ABUNDANTES
“Só para se ter uma ideia. Parte do território da cidade de São Paulo, se colocássemos painéis fotovoltaicos sobre a cidade, produziríamos mais energia do que é produzida hoje em todo o Brasil, cerca de 600 TW/h [terawatt]. Isso dá uma dimensão da capacidade dos recursos brasileiros. Portanto, não falta recurso natural de qualidade, eólica, fotovoltaica, biomassa, resíduos urbanos na geração de combustíveis”, assinalou o professor.
“Só para se ter uma ideia. Parte do território da cidade de São Paulo, se colocássemos painéis fotovoltaicos sobre a cidade, produziríamos mais energia do que é produzida hoje em todo o Brasil, cerca de 600 TW/h. Isso dá uma dimensão da capacidade dos recursos brasileiros”
“E qual é a necessidade de energia no Brasil?”, indagou. “O IBGE prevê que a população brasileira deve estabilizar em 230 milhões de habitantes em 2045. O padrão de consumo de energia do brasileiro hoje é da ordem de 2,5 MWh/ano. Na Europa, bastante desenvolvida, esse consumo é o dobro ou um pouquinho mais. Portanto se quisermos, daqui a vinte anos, atingir o padrão de consumo da Europa, precisaríamos de 1.100 a 1.200 TWh de energia. Só a capacidade hídrica, se fosse desenvolvida, produziria isso, ou seja, 1.100 TWh. A eólica atual, subestimada, permite produzir no mínimo 1.100 TWh a 2.300 TWh e a fotovoltaica, eu não vou dizer que é infinita, mas é imensa, além da biomassa e cogeração”, avaliou Ildo Sauer.
DA TRAGÉDIA SANITÁRIA PARA A TRAGÉDIA ELÉTRICA
“Se não mudarmos o modelo de contratação da expansão da oferta de energia elétrica e da operação do sistema, que foi implantado na década de 90 e mantido até hoje, vamos sair da crise da pandemia e vamos entrar numa tragédia elétrica”, afirmou o professor. Para ele, “os problemas começaram com a reforma do sistema integrado, criado na década de 50, para um sistema que priorizou os interesses de grupos de pressão em detrimento dos interesses públicos”.
Na avaliação do especialista, “as opções erradas, tomadas em relação ao sistema elétrico, que se mantém até hoje, e se agravaram neste governo, são a causa da crise energética e não os problemas da natureza, como alega o governo”. “O Brasil possui enormes recursos energéticos e capacidade tecnológica para garantir o abastecimento energético da população brasileira, para planejar adequadamente o sistema e evitar as crises como as que aconteceram em 2001, em 2013 e 2014 e agora em 2021”, observou.
“As opções erradas, tomadas em relação ao sistema elétrico, que se mantém até hoje, e se agravaram neste governo, são a causa da crise energética e não os problemas da natureza, como alega o governo”
O professor Ildo explica que nos leilões de energia, as ofertas das termoelétricas não levam em conta o valor dos combustíveis usados para o seu funcionamento. Esses custos extras são cobrados depois. “Por isso elas ganham os leilões”, explica. “Além disso, afirmou ele, “programa-se o seu uso por períodos curtos, que seriam mais baratos, mas não é o que ocorre na realidade. Na comparação com os preços das eólicas, ganham as termoelétricas. Só que, depois, os custos não previstos de combustíveis e o uso prolongado jogam os preços da energia das termoelétricas para as alturas e quem paga é o consumidor”.
R$ 150 BILHÕES FORAM TORRADOS NAS TERMOELÉTRICAS
“Durante todos esses anos, desde pelo menos 2012”, diz o professor Ildo Sauer, “foram gastos mais de R$ 150 bilhões em contratação de termoelétricas, tendo-se repassado os seus altos preços para os consumidores”. “Agora que a crise hídrica está de volta”, acrescenta o professor, “o governo Bolsonaro continua sem planejar nada para o setor e, na iminência de um novo apagão, vai exigir da população cortes no uso de energia e ainda vai gastar mais uns R$ 30 bilhões com a queima de combustíveis das termoelétricas. De novo, quem vai pagar a conta são os brasileiros”, denunciou. “Com esses recursos podíamos ter construído usinas eólicas capazes de produzir o dobro da energia que é produzida hoje no país”, afirmou.
“São as decisões erradas e não a natureza que estão provocando a crise do setor elétrico e a necessidade de racionamento. A crise não tem nada a ver com a falta de recursos energéticos. O país tem recursos energéticos de sobra”, diz o professor Ildo Sauer. “É necessário uma solução institucional, uma mudança no modelo energético do país. Gastou-se esses R$ 150 bilhões entre 2012 até 2020 e não se resolveu o problema. Com esses recursos podíamos construir usinas eólicas que estariam em funcionamento a um custo muito menor”, afirmou o professor do IEE-USP. Ele terminou sua explanação reafirmando o otimismo com a capacidade do Brasil de superar esses problemas. “Com os recursos energéticos que temos e com a capacidade tecnológica dos brasileiros, eu tenho certeza que saberemos superar as nossas dificuldades”, completou o professor Ildo Sauer.
SÉRGIO CRUZ