Nos dois governos anteriores a média de expansão do gasto foi de 5,2%. Agora, pela proposta da Fazenda, o teto será de 2,5%
O economista David Deccache, mestre em Economia (UFF) e professor da UnB, analisou a proposta de arcabouço fiscal apresentada pelo ministro Fernando Haddad e alertou para a restrição dos gastos públicos contida na proposta. Com a proposta, os gastos poderão crescer no máximo de 2,5%. Ele lembra que a média de crescimento desses gastos nos dois governos anteriores do presidente Lula foi de 5,2%.
A entrevista foi dada ao jornalista Antônio Martins, do site Outras Palavras. “Temos um conjunto de regras, mas temos uma regra mãe, que é o grande pilar”, explicou Deccache.
“Pegamos a receita passada. Vamos supor que ela começou com R$ 100 e acabou com R$ 110. Tivemos, então, um decrescimento de 10% da minha receita. Isso quer dizer que no ano corrente eu posso gastar 70% desses 10%”. “Então”, prosseguiu ele, “eu vou corrigir os meus gastos em 7%”.
“Aí surge a segunda regra, que são as bandas. Se os gastos forem acima de 2,5%, eles voltam para 2,5%. Se eu tiver um aumento de 7%, eu vou ter que reduzir esse aumento para 2,5%. Isso foi feito para o mercado ficar tranquilo de que não haverá excesso de gastos”, prosseguiu Deccache.
“Então, se eu tive um ano fiscal forte, que me deu 10% de crescimento da receita, no ano seguinte eu sou forçado a um pouso forçado, não gastando os 7% que eu teria direito, mas sim 2,5%”, destacou o economista.
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O economista entrou, então, na análise do piso da banda. “O outro lado da banda é o 0,6%. Este é para uma situação em que a receita cresceu, por exemplo, 0,5%. Então, pela nova regra, eu poderia corrigir meu gasto em apenas 0,35%. Aí o que diz a proposta, numa situação de crise, com uma receita despencando desta forma, nós temos um elemento ‘anticíclico'”, apontou.
E prosseguiu. “Então se eu só puder gastar 0,35%, vai subir para 0,6%. Se crescer muito pouco, uma crise internacional violenta, por exemplo, ou algo assim, eu subo de 0,35% para 0,6%. Por isso que eles falaram que é anticíclico”, explicou Deccache.
“Qual é o problema da banda? Eu estou limitando a capacidade do Estado ser o motor da economia. Vamos olhar para o governo Lula 2. Nele o crescimento médio dos gastos públicos foi em torno de 6%. Nos dois governos, a média foi de 5,2%. Se você tem um plano fiscal com forte expansão das universidades públicas, por exemplo, esse plano fiscal está entrando em conflito com a regra”, acrescentou.
“Com isso, ao aceitar essas imposições, você tem muita dificuldade em expandir os serviços públicos e investimentos públicos”, argumentou o economista. “Aí, você abre caminho para as privatizações e para as parcerias públicos privadas”, prosseguiu. “Vamos ter menos investimentos públicos do que nos governos do Lula, especialmente o segundo, que fez o Lula ser tão popular e, agora, conseguir se eleger”, destacou Deccache.
“A vitória de Lula contra Bolsonaro foi resultado do crescimento dos gastos públicos dos governos Lula 1 e 2. A proposta de arcabouço vai cortar pela metade o crescimento dos gastos públicos”, alertou o professor.
“Estamos levemente melhor do que com o teto de gastos atual, que é de zero, apesar de que Bolsonaro furou o teto. Ele cresceu os gastos em torno de 2% o ano passado, com todas aquelas falcatruas que nós conhecemos”, assinalou. “Então, os 2,5% é uma melhora quantitativa pequena – qualitativamente maior, porque, com Lula, não tem as falcatruas – em relação ao governo Bolsonaro”, argumentou.
“Alguém me disse que eu estou comparando uma situação boa da economia, inclusive internacional, com uma situação que é ruim, inclusive com crise externa afetando o país. Nessa situação, argumentou essa pessoa, talvez seja o que dê para fazer”, contou Deccache.
“Na minha opinião”, respondeu ele, “é até o oposto”. “Se eu enfrento uma crise e o meu piso é só de 0,6%, eu vou estar ferrado. Se a minha receita despenca, o máximo que se garante é uma expansão de 0,6%. Isso é muito pouco. Na teoria o piso seria anticíclico. Mas não é”, afirmou David Deccache.
SIMULAÇÃO
“Fiz algumas simulações muito preliminares com a regra do Haddad. A mais simples foi perguntar o que seria do Brasil se a regra do Haddad estivesse valendo desde 2002. Na simulação, adotei um cenário otimista, com os gastos corrigidos desde 2003 pelo teto de crescimento proposto de 2,5%”, explicou o professor.
“O resultado está no gráfico abaixo. No ano passado, teríamos R$ 539 bilhões a menos para gastar (supondo a regra adotada desde 2003 de forma ininterrupta)”, apontou Deccache.
“No total, o país, em 20 anos, teria perdido R$ 8,8 trilhões de gastos públicos. Perderíamos praticamente um PIB em gastos públicos em vinte anos. Isso significa que o nosso Estado seria muito menor. Teríamos menos universidades e hospitais públicos, menos investimentos públicos, menos salário mínimo, menos servidores públicos – e com menores salários – e, provavelmente, um crescimento do PIB ainda menor que o observado. Lembrem: cenário otimista.
E na pandemia, teríamos o Armagedom, literalmente.
É claro que é uma simulação preliminar e outras mais sofisticadas serão desenvolvidas nos próximos dias por colegas. Contudo, certamente, o cenário de esmagamento do Estado será o mesmo em todo e qualquer contrafactual.
Obs.: Uma análise contrafactual envolve a comparação entre o que realmente aconteceu em termos de política fiscal e o que teria acontecido se a regra (no caso a do Haddad) tivesse sido implementada. Ao comparar esses dois cenários, podemos avaliar os efeitos da regra fiscal e, preliminarmente, projetar o futuro (ou a falta dele).”