“Troca-se o poder de gestão e potencial renda do Estado pela “difusa” gestão de uma assembleia de acionistas, cujo foco deverá ser “lucro máximo” no menor prazo possível”, afirma o engenheiro Paulo César Ribeiro Lima
O ex-engenheiro da Petrobrás, Paulo César Ribeiro Lima, ex-consultor Legislativo do Senado e da Câmara dos Deputados, encaminhou ao HP um artigo em que analisa a Medida Provisória da privatização da Eletrobras que está tramitando no Congresso Nacional. Segundo o especialista em energia, “o País tem as melhores jazidas de minério de ferro, os melhores campos de petróleo e, talvez, os melhores potenciais de geração de energia hidroelétrica, que são bens da União”. No entanto, afirma, “esses recursos pouco beneficiam o povo brasileiro, principalmente depois da privatização da antiga Companhia Vale do Rio Doce, em 1997, e da desconstrução da Petrobrás e de outras estatais. Para completar esse quadro, propõe-se, agora, a privatização da Eletrobras”.
Além da União abrir desses recursos naturais e da geração hidroelétrica estatal, na contramão de países como a China, Estados Unidos e a Noruega, Paulo César alerta que as tarifas de energia devem se elevar ainda mais. “A privatização da Eletrobras também segue na linha de o Estado brasileiro renunciar a elevadíssimas receitas ou a reduzir as tarifas de energia elétrica para os consumidores. A elevação da tarifa, que pode chegar a 21%, pode fazer com que o Brasil tenha a mais alta tarifa do mundo em relação à paridade do poder de compra”.
Análise da Medida Provisória da privatização da Eletrobrás
PAULO CÉSAR RIBEIRO LIMA, PhD*
A Medida Provisória (MPV) nº 1.031, de 23 de fevereiro de 2021, que “dispõe sobre a desestatização da empresa Centrais Elétricas Brasileiras S.A. – Eletrobras e altera a Lei nº 5.899, de 5 de julho de 1973, a Lei nº 9.991, de 24 de julho de 2000, e a Lei nº 10.438, de 26 de abril de 2002”, está em tramitação no Congresso Nacional.
O presidente da Mesa do Congresso Nacional, Senador Rodrigo Pacheco, prorrogou por sessenta dias a MPV nº 1.031/2021, que estabelece as condições de privatização da Eletrobras. Determina que a privatização se dará pela venda de novas ações no mercado, fazendo com que o percentual acionário da União caia para menos de 50%.
Com essa prorrogação, o prazo para apreciação da MPV nº 1.031/2021 pelo Congresso Nacional é 22 de junho de 2021.
Descrição dos primeiros artigos
O art. 1º estabelece que a desestatização da Eletrobras ocorrerá nos termos da Lei nº 9.491, de 1997, que trata do Programa Nacional de Desestatização – PND. A desestatização será executada na modalidade de aumento do capital social, por meio da subscrição pública de ações ordinárias com renúncia do direito de subscrição pela União, o qual poderá ser acompanhado de oferta pública secundária de ações de propriedade da União ou de empresa por ela controlada, direta ou indiretamente.
O art. 2º autoriza a União a conceder, pelo prazo de trinta anos, novas outorgas de concessão de geração de energia elétrica sob titularidade ou o controle da Eletrobras que tenham sido prorrogadas no regime de cotas, nos termos do art. 1º da Lei nº 12.783, de 2013, relativa ao contrato da UHE Sobradinho; aos contratos das parcelas de energia vinculadas à garantia física da Usina Hidrelétrica de Itumbiara; relativa ao contrato de concessão da Usina Hidrelétrica de Tucuruí.
O art. 3º estabelece as seguintes condições a que será submetida a desestatização da Eletrobras, após aprovação da operação pela assembleia geral de acionistas:
⦁ reestruturação societária para manter sob o controle, direto ou indireto, da Eletronuclear e da Itaipu Binacional;
⦁ celebração dos novos contratos de concessão de geração com a alteração do regime de exploração para produção independente;
⦁ alteração do estatuto social da Eletrobras para vedar que qualquer acionista exerça votos em porcentagem superior a 10% do capital votante;
⦁ manutenção do pagamento das contribuições associativas ao Cepel, por quatro anos, a contar da desestatização;
⦁ desenvolvimento de projetos que comporão os programas de revitalização dos recursos hídricos da bacia do Rio São Francisco e das bacias hidrográficas nas áreas de influência dos reservatórios de Furnas e da redução estrutural de custos de geração na Amazônia Legal e a revitalização dos recursos hídricos dessas bacias.
O art. 4º estabelece como condições para outorga de concessão das usinas o aporte referente ao valor adicionado pelos novos contratos, de 50% para a CDE ao longo do período de concessão, e de 50% para a União a título de bonificação de outorga.
O art. 5º estabelece que o cálculo do valor adicionado pelos novos contratos será realizado pelo CNPE, considerando a alteração do regime de cotas para o de produção independente e a dedução necessária para o financiamento do reembolso com aquisição de combustíveis utilizados para geração de energia em sistemas isolados, no valor de R$ 3,5 bilhões, além dos programas previstos nos artigos 6º ao 8º.
Os artigos 6º ao 8º estabelecem a obrigação de financiamento de projetos que comporão programas específicos, com aportes pelo prazo de dez anos, para:
⦁ as concessionárias titulares dos novos contratos de geração de energia localizadas na bacia do Rio São Francisco, estão previstos aportes anuais de R$ 350 milhões, para revitalização dos recursos hídricos dessa bacia;
⦁ a concessionária titular do novo contrato de geração de energia da UHE Tucuruí, estão previstos os aportes anuais de R$ 295 milhões, para redução estrutural de custos de geração de energia na Amazônia Legal; e
⦁ as concessionárias titulares dos novos contratos de geração de energia localizadas na área de influência dos reservatórios de Furnas, estão previstos aportes anuais de R$ 230 milhões, para revitalização dos recursos hídricos das bacias hidrográficas a que pertencem essas áreas de influência.
Análise
O Brasil é o “paraíso” dos recursos naturais. O País tem as melhores jazidas de minério de ferro, os melhores campos de petróleo e, talvez, os melhores potenciais de geração de energia hidroelétrica, que são bens da União.
No entanto, esses recursos pouco beneficiam o povo brasileiro, principalmente depois da privatização da antiga Companhia Vale do Rio Doce, em 1997, e da desconstrução da Petrobrás e de outras estatais. Para completar esse quadro, propõe-se, agora, a privatização da Eletrobras.
A Figura 1 mostra a estrutura do capital social da Eletrobras.
Figura 1: Estrutura do capital social da Eletrobras
Até 1995, o setor elétrico era basicamente estatal. A partir dessa data, a Brasil passou a adotar um modelo mercantil, cujos resultados não são bons. As tarifas de energia elétrica subiram muito acima da inflação.
Em 1995, a tarifa industrial era de R$ 43,95 por MWh; em 2020, essa tarifa era de R$ 461,53 por MWh. Houve um aumento real de 121%. No setor residencial, a tarifa aumentou de R$ 76,26 por MWh para R$ 507,42 por MWh. Corrigida pela inflação, a tarifa do setor residencial seria de R$ 365,12 por MWh.
Esse grande aumento acima da inflação fez com que o Brasil se tornasse, em 2018, o país com a segunda maior tarifa residencial do mundo em relação à paridade do poder de compra, de acordo dados da Agência Internacional de Energia (IEA). A Figura 2 mostra as tarifas residenciais de vários países.
Figura 2: Preços da eletricidade em vários países
Na China, que adota um modelo estatal, as tarifas residenciais são cerca de duas vezes menores que no Brasil, que adota um modelo mercantil. Mas não é apenas a China que adota um modelo estatal, especialmente na geração hidroelétrica. Nos principais países desse tipo de geração, como Estados Unidos e Noruega, o modelo também é estatal.
Se a MPV nº 1.031/2021 for aprovada pelo Congresso Nacional, a situação tarifária do Brasil deve se agravar ainda mais, conforme mostrado a seguir.
A Eletrobrás ainda é um “bom resquício” de atuação do Estado brasileiro no setor elétrico. A estatal atua em geração, transmissão e comercialização de energia elétrica no País e contribui para que a matriz energética brasileira seja uma das mais limpas e renováveis do mundo. Em 31 de dezembro de 2019, o Brasil alcançou a capacidade instalada de 170 GW, dos quais a Eletrobras contribuiu com 30% ou seja 51 GW. Desse total 23,6% equivalem à sua participação proporcional em projetos realizados por meio de Sociedades de Propósito Específico (SPEs) e 15,5% vêm de empreendimentos compartilhados, incluindo aqui a metade da capacidade de Itaipu Binacional (7.000 MW).
A malha de linhas de transmissão das Empresas Eletrobras atingiu, em 31 de dezembro de 2019, aproximadamente, 71 mil km, sendo que 64,1 mil km são de linhas corporativas do Sistema Eletrobras e 7 mil km correspondem à participação da Eletrobras por meio de SPEs. Considerando apenas a rede básica do Sistema Interligado Nacional, ou seja, as tensões de ±800, 750, ±600, 525/500, 345 e 230 kV, a Companhia é responsável por 64,8 mil km de linhas de transmissão, o que representa cerca de 45,25% do total das linhas do Brasil nas referidas tensões.
O grande interesse dos acionistas privados na “capitalização” da Eletrobras decorre, principalmente, da celebração dos novos contratos de concessão de geração com a alteração do regime de cotas de garantia física para o regime de produção independente.
O fim do regime de cotas de garantia física para os contratos das usinas do grupo Eletrobras com as distribuidoras deverá tornar mais alto o preço da energia, especialmente para os consumidores cativos do ambiente de contratação regulada (ACR), na opinião unânime de especialistas ouvidos pela Brasil Energia.
A Tabela 1 apresenta uma situação hipotética de aumento da tarifa em razão da alteração do regime de cotas para produção independente. Esse aumento foi calculado pelos empregados da Eletrobras em carta aberta para o Deputado Elmar Nascimento, Relator da MPV 1.031/2021.
Tabela 1: Impacto da descotização das usinas Eletrobras (anual)
Como mostrado na Tabela 1, elaborada a partir dessa carta, a receita efetiva das usinas do grupo Eletrobras no regime de cotas é de R$ 6,040 bilhões por ano. Com a mudança para o regime de produção independente, a receita dessas usinas aumentará para R$ 19,245 bilhões por ano, o que representa um aumento de receita de R$ 13,205 bilhões por ano.
Os consumidores residenciais são clientes das distribuidoras e não podem comprar sua energia diretamente dos geradores e comercializadores, por isso são chamados de consumidores cativos. No mercado cativo é negociada, em média, 70% da energia do País.
De acordo com a carta aberta dos empregados da Eletrobras, haverá um aumento de custo para os consumidores cativos de 14%, sem considerar os efeitos mitigadores também previstas na MPV nº 1.031/2021 e os efeitos da “descotização da UHE Tucuruí”.
O primeiro efeito mitigar deve-se ao fato de a “descotização” ocorrer ao longo de um prazo mínimo de três anos e máximo de dez anos. Além disso, a Eletrobras terá de pagar um valor adicionado e parte de recurso arrecadado será utilizada para redução de encargos que são cobrados dos consumidores, especificamente Conta de Desenvolvimento Energético (CDE) e a Conta de Consumo de Combustíveis (CCC).
A carta dos empregados da Eletrobras também cita que, de acordo com o Ministério de Minas e Energia, o total do recurso arrecadado seria de R$ 61,25 bilhões, com a destinação apresentada na Tabela 2. Desse total, R$ 25,5 bilhões seriam destinados à CDE e R$ 2,5 bilhões à CCC. Assim, cerca de R$ 28 bilhões, que representam 46% do valor total a ser adicionado as concessões, seriam destinados à redução da tarifa.
A CDE corresponde a menos de 10% da tarifa média de energia para os consumidores do mercado regulado. Como esse recurso será pago ao longo de 30 anos, a redução na tarifa seria de não mais que 0,35%.
Tabela 2: Destinação do valor adicionado
A descotização, no entanto, traria um impacto de mais de R$ 13,2 bilhões anuais para os consumidores, o que representa, em valores correntes, R$ 396 bilhões ao longo dos trinta anos da concessão.
Além disso, a não “cotização” da UHE Tucuruí frustraria uma redução de 7,5% na conta do consumidor do ACR. Portanto, considerando-se o aumento de 14% e tal frustração, o aumento do custo para esse consumidor seria de 21,5%. Para mitigar todo esse aumento de custo, haveria uma redução de apenas 0,35%, via CDE.
Transcreve-se, a seguir, trecho de matéria publicada no Jornal Estado de São Paulo, em 2017: “Segundo a Aneel, as hidrelétricas da Eletrobrás no regime de cotas têm custo de energia de cerca de R$ 40 por megawatt-hora. Se considerados custos com uma menor geração em períodos de reservatórios baixos, o chamado ‘risco hidrológico, o custo para o consumidor chega a R$ 75. Se todas as hidrelétricas da estatal forem ‘descotizadas’ de uma só vez e então negociarem a produção a R$ 150 por megawatt-hora, as tarifas poderiam subir de 2,3% a 7,1%, a depender da distribuidora. Em uma venda a R$ 200, valor próximo do praticado hoje em contratos de energia para 2018, o efeito seria uma alta de 3,8% a 11,9%. Se o preço for R$ 250, o impacto pode variar de 5,3% a 16,7%”.
Considerações finais
Com a privatização da Vale, o Brasil já renunciou a elevadíssimas receitas decorrentes da exploração das melhores jazidas de minério de ferro do mundo. A estrutura do capital social da Petrobras e sua desconstrução também faz com que os melhores campos de petróleo do mundo gerem poucos benefícios para o povo brasileiro.
A privatização da Eletrobras também segue na linha de o Estado brasileiro renunciar a elevadíssimas receitas ou a reduzir as tarifas de energia elétrica para os consumidores. A elevação da tarifa, que pode chegar a 21%, pode fazer com que o Brasil tenha a mais alta tarifa do mundo em relação à paridade do poder de compra.
A “Eletrobras privada”, em razão da alteração do regime de cotas para o de produção independente, poderá elevar a receita da empresa de R$ 6,040 bilhões por ano para R$ 19,245 bilhões por ano. Ou seja, como empresa estatal recebe pouco; como empresa privada recebe muito.
A Eletrobras também poderia ter essa receita anual de R$ 19,245 bilhões e, dessa forma, promover os tão necessários investimentos, mantido o pagamento do valor adicionado destinado aos programas de revitalização e da Amazônia Legal, à União, à CDE e à CCC. Isso não é uma exclusividade de empresas privadas.
Com a privatização da Eletrobras, o Estado brasileiro perde o poder de gestão de um recurso adicional da ordem de R$ 13,205 bilhões anuais ou R$ 396 bilhões, em valores correntes, ao longo de trinta anos.
Esse recurso potencial de R$ 396 bilhões, deduzido o valor adicionado, poderá ser gerido por uma “corporação” sem sócio controlador e sem nenhuma garantia da realização de investimentos. Troca-se o poder de gestão e potencial renda do Estado pela “difusa” gestão de uma assembleia de acionistas, cujo foco deverá ser “lucro máximo” no menor prazo possível.
Isso já ocorre, atualmente, com a privatizada BR Distribuidora, na qual a Petrobrás perdeu o controle acionário pela venda de ações pelo valor da “bolsa”, sem receber nenhum “ágio” por essa perda, com óbvia ilegalidade. No caso da privatização da Vale houve, pelo menos, um leilão na venda do seu controle acionário, nos termos da Lei nº 9.491/1997.
Coincidentemente, o ex-presidente da Eletrobras que concebeu o modelo de privatização da estatal, chamado de capitalização, é o atual presidente da BR Distribuidora.
Em suma, é fundamental que a MPV nº 1.031/2021 seja rejeitada pelo Congresso Nacional, em razão dos óbvios prejuízos ao Estado e ao povo brasileiro.
*Ex-engenheiro da Petrobrás e Consultor Legislativo aposentado do Senado e da Câmara dos Deputados