Com filas nos bancos que ocupavam vários quarteirões, poucos comércios abertos e as ruas quase vazias, aconteceu, na terça-feira, 21, mais uma jornada da reconversão monetária da Venezuela, em meio de uma greve nacional convocada por sindicatos e pela oposição – que funcionou parcialmente–, em rechaço ao plano de ajustes econômicos propostos pelo governo de Nicolás Maduro.
As medidas tomadas definem que o salário mínimo ficará “ancorado” ao valor do petro, uma criptomoeda criada pelo governo e que, como previsto pelos especialistas, nunca deixou de ser ficção. Cada petro, segundo o presidente, equivalerá a cerca de 60 dólares, com base no preço do barril de petróleo venezuelano. “Fixei o salário mínimo, as aposentadorias e a base dos salários para todas as faixas salariais do país em meio petro, 1.800 bolívares soberanos (a nova moeda que entrou em vigor na segunda-feira, depois de cortar 5 zeros na moeda que estava em vigor)”, revelou Maduro em mensagem à Nação. Em bolívares de hoje (os ditos ‘soberanos’), o salário mínimo passaria a 5,2 milhões (menos de um dólar) para 180 milhões (cerca de 28 dólares).
Este reajuste, de 3.464%, será o quinto do ano. Parece muito, também parece que esses reajustes cobririam a alta dos preços e melhorariam a vida da população. Porém, o salário mínimo, que não é suficiente para se comprar um quilo de frango, é motivo de desespero em um país onde a inflação anual pode atingir 1.000.000% em 2018, segundo o FMI. Maduro que, dentro do que já virou um chavão de vários governos que prometeram mudanças e políticas de desenvolvimento nacional, culpa a ingerência dos Estados Unidos pela crise do país, pretende equilibrar a economia dolarizando os salários de forma oficial. Afinal, o preço do petróleo, em que está ancorado o petro se mede em dólares.
“O aumento de salário anunciado não é mais que um descaramento e uma desfaçatez. A política do governo levou ao fracasso 1.359 empresas estatizadas entre os anos 2005 e 2017. As chamávamos empresas recuperadas, mas acabaram sendo um fracasso e a maior derrota”, disse Marcela Máspero, presidente da União Nacional de Trabalhadores da Venezuela. “Os trabalhadores queremos empregos dignos e decentes, queremos seguridade social completa. Não queremos o que está acontecendo hoje nos hospitais públicos onde estão mandando para a rua enfermeiras, operários, funcionários (…) porque há uma negativa do governo venezuelano à intervenção de emergência humanitária que requeremos em matéria de atenção de saúde”, disse durante entrevista para a TV Venezuela.
A adoção de um rígido programa de “disciplina fiscal” é parte da proposta, mas o presidente disse que o Estado assumirá, por 90 dias, a “diferença” do aumento do salário mínimo para todas as “pequenas e médias indústrias do país”, sem precisar como.
O plano de ajuste inclui aumentar a níveis internacionais o preço da gasolina – que hoje é praticamente de graça -, a liberação do mercado de câmbio, o aumento do imposto ao valor agregado de 12% para 16%. Não contém, porém, nenhuma medida que resolva os problemas reais da economia do país que depende da importação em tudo, na alimentação, nos produtos de consumo popular em vestuário, calçado, insumos, produtos eletrônicos, claro. A pouca indústria implantada funciona com 30% de sua capacidade e no plano anunciado inexiste qualquer referência a isso.
Para piorar a situação, segundo a Organização dos Países Exportadores de Petróleo, OPEP, a produção da PDVSA, estatal petroleira venezuelana, quase única fonte de divisas do país, caiu de 3,2 milhões de barris diários (mbd) em 2008 para 1,5 milhões em junho deste ano. A redução continuará até os 1,3 mbd no fim do ano, segundo a consultora Ecoanalítica, acentuando um déficit que especialistas avaliam em 20% do PIB.
“A burocracia estatal está envolvida no contrabando de extração, para retirar produtos do país, para utilizar as importações, mesmo de alimentos, para beneficiar-se do diferencial cambial com importações fraudulentas, fictícias”, explica Gonzalo Gómez, porta-voz do partido “Marea Socialista”.
“O preâmbulo a estas medidas é uma Venezuela que, durante o governo do presidente Nicolás Maduro, alcançou a crise mais profunda em muitas décadas. Hiperinflação de recordes históricos; redução da capacidade produtiva da petroleira estatal PDVSA; destruição do aparato produtivo nacional privado e estatal; abandono sistemático do campo e da produção agrícola; enormes gastos em pagamento de dívida que tem limitado a capacidade de compra de alimentos e medicamentos; redução severa das reservas internacionais; pulverização do salário e da capacidade aquisitiva das famílias trabalhadoras; são alguns dos indicadores desta crise sem precedentes”, assinala a “Marea Socialista”.
Uma parte significativa do movimento sindical, antes hegemonizado por apoiadores ao governo do Partido Socialista Unido de Venezuela, PSUV, convocou a greve contra o pacote chamado de “Madurazo” e se mobiliza em assembléias e reuniões. O Secretário de Organização do Sindicato de Alimentos Polar, Roger Palacios, denunciou que as autoridades optaram recentemente pela “repressão, prisão e exílio para aqueles se negam à extinção econômica da classe trabalhadora e tentam expor este problema em nível internacional. Mas a mobilização contra essa política cresce e o povo se organiza contra essas medidas”.
O secretário executivo da Federação Unitária de Trabalhadores Petroleiros de Venezuela, Ivan Freites, descreveu as graves dificuldades que a população vive para conseguir alimentos, assim como a emigração massiva da mão de obra melhor qualificada. Revelou o extremo a que chegou a degradação do setor petroleiro, que “trabalha com menos de 20.000 operários que ganham em torno de três dólares ao mês e produzem nove barris de petróleo diários por trabalhador”. Em 2000, assegurou, cada operário petroleiro produzia 87 barris diários.
SUSANA SANTOS