CARLOS LOPES
(HP 03/10/2014)
Um novo relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) demonstra que os consumidores de energia elétrica – o povo e as empresas – terão de pagar R$ 26,6 bilhões pelo empréstimo de R$ 17,8 bilhões que o governo tomou nos bancos para fornecer às distribuidoras do setor elétrico.
Como expõe o TCU, os consumidores, além da amortização do empréstimo, serão obrigados a pagar R$ 8,8 bilhões de juros aos bancos. Quanto às distribuidoras, não pagarão nada. Apenas repassarão a conta para os consumidores.
Não entraremos em outras complicações – embora, tudo é complicado no setor elétrico, sob o modelo Dilma Rousseff, uma recauchutagem do modelo de Fernando Henrique, com péssimos resultados, expressos sobretudo no aumento da conta de energia, que tornou-se, agora, uma trava para o crescimento.
Apenas acrescentaremos que, com o aumento das tarifas da Companhia Hidroelétrica São Patrício (Goiás), no dia 12 do mês passado, 47 distribuidoras já tiveram suas tarifas reajustadas. Até o fim do ano, faltam 12 concessionárias.
Nada menos do que 38 dessas empresas conseguiram, da ANEEL, aumentos superiores à inflação – de +13,9% (Energisa Nova Friburgo) até +40,7% (Elektro).
Para o próximo ano, devido ao empréstimo feito pelo governo nos bancos para as distribuidoras, estima-se um aumento de +30%.
Enquanto isso, o consumo de eletricidade tornou-se declinante, algo que somente ocorreu antes uma vez – em 2001, durante o apagão de Fernando Henrique – na História do Brasil (v. matéria na página 2).
Nada disso tem a ver com a falta de chuvas. Tem a ver, sim, com a administração irresponsável do setor elétrico desde que, em 2012, o governo evitou até setembro ligar as usinas térmicas para economizar a energia armazenada nos reservatórios das hidrelétricas. Já apontamos, em artigo anterior, que essa política só é compreensível se o objetivo do governo fosse forçar os “agentes do setor elétrico” a vender e comprar energia no especulativo “mercado livre”. Mais claro ainda fica esse objetivo quando, diante do fim de contratos entre distribuidoras e geradoras, em 2013, o governo não tomou providências para que houvesse recontratação (algo obrigatório por lei, mas que somente pode ser feito com a convocação, pelo governo, de leilões para efetivar essa recontratação).
Na última quarta-feira, o Instituto de Desenvolvimento Estratégico do Setor Elétrico (Ilumina), entidade que reúne alguns dos principais estudiosos da questão elétrica no país, como Agenor de Oliveira Mattos e Roberto Pereira D’Araújo, publicou um texto especialmente esclarecedor sobre a situação atual.
Como é um texto conciso, vamos reproduzi-lo na íntegra:
“O saco de maldades contra o consumidor de energia elétrica está cada vez mais repleto. O Jornal Valor Econômico do dia 1 de outubro noticia que ‘As distribuidoras poderão usar empréstimo para bancar o risco hidrológico’.
“Quem lê, sem informação básica sobre o setor, até acha que é uma boa notícia. Puxa, que ótimo! Empresas vão utilizar empréstimos para melhorar a gestão do negócio e se proteger do risco de hidrologias severas!
“Nada disso! O empréstimo quem tomou foi você, consumidor! Quem vai pagar juros sobre kWh consumido é você, consumidor! Conseguimos algo inimaginável antes das desastrosas ‘reformas’ feitas no setor elétrico. Na realidade, as empresas distribuidoras não conseguem mais bancar os custos através de uma tarifa fixa, como acontece com qualquer serviço público que se preze.
Ai você perguntaria: Ué? Todas as distribuidoras do país não conseguiram gerir o seu negócio? Claro que não foi uma epidemia de má gestão! As empresas ficaram descontratadas porque o governo não fez leilões viáveis para contratar fornecimento de energia no lugar de contratos que expiravam em 2013.
“E por que não conseguiu? As autoridades acharam que poderiam obter preços semelhantes aos que foram firmados em 2004, quando a carga tinha encolhido 15% por conta dos efeitos póstumos do racionamento. O ‘mercado’, que é uma espécie de eminência parda para o atual modelo, não concordou e o leilão ficou vazio.
“O mercado estava errado? Não! Eles simplesmente avaliaram que, dadas as condições atuais de oferta, o sistema apresentava sinais de que os preços iriam se elevar. Sabiam também que, ao contrário de todos os mercados de energia no mundo, o brasileiro pode apresentar diferenças de 7.000% e espantosos ganhos poderiam ocorrer. Seriam os agentes desonestos? Não! Esse é o jogo que está montado no setor elétrico brasileiro. Mesmo após as reformas de 2004!
“Risco hidrológico? O que é isso? Não há contratos? Como esse risco veio parar nas costas das distribuidoras, quer dizer, dos consumidores? Como a tarifa brasileira só faz subir desde 1995, o governo, sem fazer nenhum diagnóstico, resolveu fazer uma intervenção não ortodoxa no mesmo sistema de ‘mercado’ que ele tanto preza. Para baixar tarifa, o governo resolveu impor irrisórios custos às usinas antigas, quase todas da Eletrobras, que está praticamente quebrada. Junto, no pacote, transferiu o risco hidrológico dessas usinas para as distribuidoras, quer dizer, para os consumidores.
“Mas, afinal de contas, o que é esse risco? Nesse ponto toda a virtualidade do modelo emerge grandiosa. As usinas têm um número mágico que é a energia que ela deve produzir. Está escrito na turbina? Não! Está nos geradores? Não! Está nos manuais? Também não! É uma decisão do dono da usina? Por incrível que pareça, também não! É uma conta de escritório feita por um modelo computacional do governo que, como todo modelo, pode estar errado. Pois bem, agora os consumidores também vão pagar juros sobre esse ‘erro’.
“Fechando o pacote com chave de ouro, vem ai a bandeira tarifária. A maldade é a seguinte: Reservatório meio vazio? Consumidor paga! Reservatório vazio? Consumidor paga mais! E se os reservatórios estiverem cheios? Algum desconto? Claro que não! Nessa situação a vantagem é do mercado spot. Afinal, por que deteriorar o saco de maldades?“
Já abordamos a casa de doidos em que se tornou o setor elétrico, depois de 12 anos de administração pessoal da senhora Dilma Rousseff (v. HP 14/05/2014).
Aqui, a questão não é apenas que a ideia – já por si absurda – de que a eletricidade deve ser uma “mercadoria”, com preço oscilando de acordo com a oferta e a demanda, conduziu o país à segunda crise energética em apenas 13 anos.
É evidente que falar em livre mercado numa área de monopólio natural (evidentemente, o consumidor não pode escolher sua distribuidora de energia assim como escolhe a barraca onde compra peixes numa feira livre) é esconder um selvagem monopólio privado atrás de uma fachada de mistificação.
O que Dilma fez, depois de 2003, como ministra e como presidenta, segue esse princípio de vigaristas, que chama de mercado o que não é mercado, e estabelece um magote de especuladores, muito bem descrito no texto do Ilumina, como beneficiários da geração de eletricidade.
Embora seja lembrar o óbvio, a geração, transmissão e distribuição de energia elétrica não é qualquer setor – a eletrificação está na base do desenvolvimento de qualquer país há mais de 100 anos. Todo o modelo brasileiro, um dos mais bem sucedidos do mundo, baseava-se, desde a década de 30 do século passado, em que a Nação devia ser a beneficiária do desenvolvimento energético. Por isso, a eletricidade não podia ser mercadoria, mas um bem público. Notemos que até a privatização tínhamos tarifas das mais baixas no mundo (v. o excelente livro de José Paulo Vieira, “Antivalor – Um Estudo da Energia Elétrica Construída como Antimercadoria e Reformada pelo Mercado“, Paz e Terra, 2007).
O modelo Fernando Henrique/Dilma Rousseff – talvez mais preciso seria chamá-lo de “modelo Enron” – se baseia em que os beneficiários devem ser alguns negocistas, de preferência estrangeiros. O fracasso dessa estupidez é expresso pelos aumentos de tarifas e pelo risco constante de apagão.
Porém, não estamos acusando Dilma de tacanhez e submissão aos monopólios privados – essa tacanhez e essa submissão são, rigorosamente, fatos. No entanto, além disso, o setor elétrico foi dirigido por ela com rara incompetência.
Uma parte dessa incompetência – e não pequena – está na tentativa demagógica, totalmente eleitoreira, de fazer um corte no preço da eletricidade à custa de falir as empresas estatais do Grupo Eletrobrás, que são o núcleo da geração elétrica no Brasil.
O resultado pode-se ver hoje, no aumento dessas tarifas – não sobrou nada do corte de preços da Medida Provisória nº 579. Pelo contrário, o que sobrou foi a devastação na Eletrobrás e os aumentos cada vez maiores nas tarifas que Dilma prometeu reduzir.
Além disso, nenhum dos grandes projetos do governo Lula foi acabado por Dilma.
A esse respeito, apontou o TCU:
“Na geração, 79% dos empreendimentos de UHE [usinas hidrelétricas], 75% de UTE [usinas termelétricas], 88% de eólicas e 62% de PCH [pequenas centrais hidrelétricas] apresentaram atrasos. Já no transporte de energia, 83% das linhas de transmissão (LT) e 63% das subestações (SE) apresentaram atrasos. (…) Em relação ao impacto financeiro dos atrasos e descompassos para o sistema, o presente trabalho permitiu quantificar que R$ 8,3 bilhões foram gastos nos casos analisados. Tais valores, que poderiam ter sido evitados, oneram ainda mais o sistema que, desde 2013, vem sendo socorrido pelo Tesouro Nacional. (…) em setembro de 2013, 3.439,18 MWmédios deixaram de entrar no SIN [Sistema Interligado Nacional]” (cf. TCU, Acórdão nº 2316/2014).
Quanto aos problemas específicos, alguns exemplos citados nessa auditoria do TCU:
1) o parque energético de Manaus, por não ter convertido as usinas para usar o gás, paga por 5,5 milhões m3 de gás natural, contudo, só consome 2,7 milhões m3. Dispõe de infraestrutura para transportar energia de fonte hídrica, mas como é subutilizada, continua usando óleo diesel e óleo combustível, mais caro e poluente;
2) A linha de transmissão Tucuruí-Manaus-Macapá é subutilizada, tem capacidade de transportar 2.500 MW, mas só transporta 35 MW. Em Macapá, embora concluída, sequer é utilizada. Essa situação é devida a ausência de obras complementares para receber a energia vinda da hidrelétrica de Tucuruí;
3) As térmicas a gás e carvão tiveram sua entrada em operação postergada face à demora em emitir suas outorgas, como Itaqui, Pecém I e II, Maranhão IV e V, o que obrigou as distribuidoras a recorrer ao mercado de curto prazo para suprir os contratos adiados;
4) Por falta de linhas de transmissão, 48 usinas eólicas (RN e BA), com 1.262 MW, aptas a entrarem em operação desde julho de 2012, estão paradas; seis usinas de biomassa em GO, MS e MT, com capacidade 568 MW, somente puderam iniciar a operação decorridos dois anos da conclusão das instalações; a hidrelétrica Dardanelos, com capacidade instalada de 261 MW, embora sem custos repassados ao consumidor, ficou seis meses sem poder gerar energia.
5) A interligação incompleta do sistema Acre-Rondônia fez com queas térmicas permanecessem ligadas, em especial a UTE Termonorte II, encarecendo ainda mais o sistema;
6) No Complexo do Madeira, há descompasso entre as obras da Linha de Transmissão e a entrada em operação das unidades geradoras das usinas Santo Antonio e Jirau. No escoamento da energia oriunda do Complexo do Madeira para as cargas das regiões Sudeste e Sul, as redes de transmissão não suportarão a energia gerada, em face do atraso nas linhas de transmissão do Sistema Araraquara, nas subestações e nos compensadores estáticos, com entrega prevista somente para 2017, muito embora estivessem planejadas para entrarem em operação em 2014/2015;
7) As hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau estão com atraso no cronograma superior a um ano para algumas unidades geradoras, o que é especialmente desastroso para o sistema nessa época chuvosa da região Norte. Em dezembro de 2013, deixaram de entrar em operação 854,4 MW médio de Santo Antônio e 1.641,2 MW médio de Jirau.
A auditoria do TCU estende-se bastante sobre os problemas em Santo Antônio e Jirau. Porém, não é nosso propósito descer aos detalhes. O leitor poderá consultar essa auditoria no site do TCU.
Mais importante é perceber o conjunto – falamos, acima, de incompetência, o que é verdade. No entanto, mais uma vez, essa incompetência parece ter uma direção: a de empurrar distribuidoras, que deveriam contratar a energia que distribuem nas geradoras, para a especulação do “mercado livre”.
O resultado é que os preços no “mercado livre” estão batendo recordes – e as tarifas estão indo para o espaço, exatamente para fazer o consumidor pagar aos bancos os empréstimos que o governo enfiou nas distribuidoras.
Não estamos dizendo que há um plano maquiavélico para escalpelar o consumidor e favorecer bancos e especuladores do “mercado livre”.
O que estamos dizendo é que o modelo Dilma Rousseff leva necessariamente a esse resultado – e o país que se dane.
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