A entrevista abaixo foi concedida pelo poeta, contista, tradutor e ensaísta Sidnei Schneider a José Nunes, do site Como Eu Escrevo.
As entrevistas de escritores são um gênero especial de jornalismo – e sempre tiveram o papel de incentivar jovens a também empreender o caminho literário. Lembro-me das entrevistas da “Paris Review” (até hoje tenho a impressão que ninguém lia outra coisa na revista), depois publicadas em livro. Existe uma, de William Faulkner, que me deu a sensação de que os escritores (mesmo Faulkner) podem ser pessoas normais – uma boa sensação.
Na outra ponta do espectro, todos consideram esquisito (ou misterioso, o que é quase a mesma coisa) que um escritor (por exemplo, J.D. Salinger) não conceda jamais entrevistas.
Sidnei Schneider é autor de Plano de Navegação (poesia, 1999), Quichiligangues (poesia, 2008) e Andorinhas e Outros Enganos (contos, 2012).
Lançou, também, a coletânea de contos De Rua e Sangas, pelo projeto “Ler para ver além”, da União Metropolitana dos Estudantes Secundários de Porto Alegre (Umespa).
Mas, vamos à entrevista de Sidnei Schneider.
C.L.
JOSÉ NUNES: Como você começa o seu dia? Você tem uma rotina matinal?
SIDNEI SCHNEIDER: Pela manhã, quando muito corrijo texto, perto do meio-dia. Exerço também um trabalho regular não relativo à escrita. Se escrevo no final de semana, inicio no meio da manhã e postergo bastante o almoço, mantendo-me apenas com o chimarrão.
JOSÉ NUNES: Em que hora do dia você sente que trabalha melhor? Você tem algum ritual de preparação para a escrita?
SIDNEI SCHNEIDER: À noite, quando tudo está resolvido e só tenho o silêncio e a tela do computador pela frente. Escrevo madrugada adentro, o que não aconselho a ninguém, mas este tende a ser o horário em que disponho de mais horas seguidas. Sem interrupções, logo alcanço enorme concentração. Se vejo a luz do dia na janela, paro e vou dormir. Às vezes, muito estimulado, continuo pensando no texto, acendo a luz do abajur e anoto a ideia. No início da noite seguinte, durmo uma hora ou duas e reinicio. Não se trata de rotina diária, traduz um período de maior dedicação, embora este já tenha durado anos. Se concluo o trabalho mais cedo, saio para andar de bicicleta e movimentar as vértebras. Porém nunca depois das três da manhã. O costume é antigo, antes eu corria na orla do Guaíba, a chave pendurada no pescoço. Sinto-me ótimo, as endorfinas injetadas no sangue aliam-se à sensação boa do trabalho realizado.
JOSÉ NUNES: Você escreve um pouco todos os dias ou em períodos concentrados? Você tem uma meta de escrita diária?
SIDNEI SCHNEIDER: Escrever, no sentido de botar texto novo na tela, tende a ser em períodos concentrados. Conforme o gênero, pode ser uma semana, um mês ou vários meses. Já corrigir é tarefa praticamente diária. Ensaios têm outro tempo: após dias de reflexão e consulta, em três ou quatro abordagens finalizo.
JOSÉ NUNES: Como é o seu processo de escrita? Uma vez que você compilou notas suficientes, é difícil começar? Como você se move da pesquisa para a escrita?
SIDNEI SCHNEIDER: Se compilei notas suficientes, para não ser traído pela memória, em geral o meu texto anda bem. Isso quanto à prosa, seja ficcional ou ensaística. Um conto, tenho que escrevê-lo do início ao fim numa só sentada. Depois faço os ajustes, reordeno parágrafos, corto, acrescento, reescrevo, altero palavras. Já aconteceu de dar o conto por terminado e a história continuar a se mover na minha cabeça, a ponto de eu escrever mais que o dobro de sua extensão, levando-o a outro final. Certa vez escrevi os parágrafos iniciais, gostei bastante do que tinha obtido, mas não sabia o que vinha a seguir. Não queria perder esse início, então precisei de um ano para recomeçar e concluir a história, apesar das muitas tentativas. Organizo e pesquiso bastante antes de iniciar um texto de crítica, com as ideias listadas e ordenadas em blocos temáticos. Quanto à poesia, ela tende a nascer de alguns versos elaborados mentalmente, pré-anotados ou não, aos quais dou seguimento. Muitos versos nasceram enquanto eu caminhava na rua ou estava sob a água morna e relaxante do chuveiro. Fico tão concentrado, que preciso passar a mão em concha nos cabelos e levá-la ao nariz para saber se já usei o xampu.
JOSÉ NUNES: Como você lida com as travas da escrita, como a procrastinação, o medo de não corresponder às expectativas e a ansiedade de trabalhar em projetos longos?
SIDNEI SCHNEIDER: Se não tenho o que escrever, leio, corrijo ou traduzo. Traduzir poesia é demorado, sempre há alguma tradução a aprimorar, quando não inicio uma nova. Contudo, há períodos duros e difíceis, parece que a tua fonte secou. Mas como, até agora, ela sempre voltou a rebrotar, dá para concluir que faz parte, que é assim que funciona. Suponho que essa secura tende a acontecer quando se está num processo de mudança de poética e horizontes, entre outras possíveis razões. Ficar a mercê de expectativas, que não sejam as que você tomou como suas, não leva a nada. Ainda que se escreva para um público e um contexto, categorias que existem fora do escritor, este tem que satisfazer suas próprias exigências, simplesmente porque não há como ser diferente. Estas foram se entranhando durante sua vida e experiência literária, embora não sejam estáticas. Tendem a mudar de acordo com o seu processo autocrítico. Nesse sentido, a luta interna é duradoura e, no fundo, objetiva ampliar o alcance social da obra pela qualidade e vice-versa, mesmo quando não se pensa nesses termos. Nos projetos mais demorados, a questão é avançar um pouco a cada dia. Se o foco não for esse, qualquer um se esmaga e paralisa. Acontece de eu pensar, no meio do caminho e um tanto receoso, por que é que fui começar isto? No entanto, nunca deixei de superar essa fase, mera expressão de que o texto ainda não se organizou o suficiente. Na tradução de um livro, cheguei a calcular diariamente a percentagem de versos alcançada, só para constatar o avanço do trabalho.
JOSÉ NUNES: Quantas vezes você revisa seus textos antes de sentir que eles estão prontos? Você mostra seus trabalhos para outras pessoas antes de publicá-los?
SIDNEI SCHNEIDER: Os de criação literária, muitas vezes, quase infindas. Enquanto não estiver publicado, está sujeito à releitura e revisão. O que pode significar anos, até entrar num livro. Às vezes, mesmo depois, no caso de premeditar uma republicação. Mais céleres são os textos com prazo impositivo, como orelhas, prefácios, resenhas, colunas e ensaios. Sempre salvo o que vai se tornando rascunho, para o caso de ter de voltar atrás. Mostrei uns contos, enquanto os ia escrevendo, a uma amiga leitora, e mais tarde os reuni e publiquei. Foi o mais perto que estive da atitude metódica de consulta. Um escritor recebe vários retornos prévios: a publicação em revistas-papel, revistas online, coletâneas ou jornais, a leitura de poemas em eventos ou escolas, a leitura de um texto por colega ou pessoa amiga, etc. Parte do que escrevo talvez não seja lida antes da publicação em livro, mas então há a leitura do revisor e você ainda tem chance de repensar alguma coisa.
JOSÉ NUNES: Como é sua relação com a tecnologia? Você escreve seus primeiros rascunhos à mão ou no computador?
SIDNEI SCHNEIDER: Escrevo tudo no computador, exceto poesia. Esta pode ser escrita diretamente na tela ou num caderno grande universitário. No caderno aberto, há condições de escrever mais variantes de versos ou palavras, e enxergá-las simultaneamente, do que na tela do computador, que precisaria ser rolada ou reclicada. Também pode acontecer um vaivém de aprimoramento entre um suporte e outro, mas tudo o que suponho que preste tende a se transformar em arquivo Word. Reuni uma quantidade colossal desses cadernos de poesia.
JOSÉ NUNES: De onde vêm suas ideias? Há um conjunto de hábitos que você cultiva para se manter criativo?
SIDNEI SCHNEIDER: Hábitos planejados enquanto tal para me manter criativo, não. Creio que um interesse permanente nas diversas formas de arte, uma atenção flutuosa para captar o inusitado no cotidiano e certo devanear em torno de um tema é o que me mantém criativo.
JOSÉ NUNES: O que você acha que mudou no seu processo de escrita ao longo dos anos? O que você diria a si mesmo se pudesse voltar à escrita de seus primeiros textos?
SIDNEI SCHNEIDER: Se a exigência quanto à qualidade é crescente, vai se tornando quase demolidora. O início de qualquer escrita, a partir das primeiras ideias, parece que tem que ter já um sentido que faça valer o trabalhão que dá, processo anteriormente mais espontâneo e irregular. Quanto à segunda pergunta, faça tudo de novo, leia e escreva e viva, muito.
JOSÉ NUNES: Que projeto você gostaria de fazer, mas ainda não começou? Que livro você gostaria de ler e ele ainda não existe?
SIDNEI SCHNEIDER: Quanto à poesia, minha produção de maior volume, repassar tudo o que escrevi até hoje, garimpar o que tiver algum valor, e reorganizar minha obra. Rever esse material com a minha cabeça e experiência de agora, respeitando períodos e fases. Quando for o caso, revisar e reescrever. O material bruto não publicado é grande, isso vai levar anos. Se algo que eu gostaria muito de ler não existe, é possível que eu tente preencher essa lacuna, se acaso me sentir em mínimas condições para tal. Quando, diante de uma situação qualquer, já existe um poema, uma canção, um filme, um romance que a ela atenda e responda, não preciso fazer nada.