Já tem alguns dias, queria escrever algo sobre o “Romanceiro da Inconfidência”, de Cecília Meireles.
Este é um dos livros relacionados – em muito boa hora – para o vestibular da USP.
Que poemas podem existir de mais atuais, no Brasil, do que aqueles?
Por exemplo:
Romance XXXIV ou de Joaquim Silvério
Melhor negócio que Judas
fazes tu, Joaquim Silvério:
que ele traiu Jesus Cristo,
tu trais um simples Alferes.
Recebeu trinta dinheiros..
– e tu muitas coisas pedes:
pensão para toda a vida,
perdão para quanto deves,
comenda para o pescoço,
honras, glórias, privilégios.
E andas tão bem na cobrança
que quase tudo recebes!
Melhor negócio que Judas
fazes tu, Joaquim Silvério!
Pois ele encontra remorso,
coisa que não te acomete.
Ele topa uma figueira,
tu calmamente envelheces,
orgulhoso e impenitente,
com teus sombrios mistérios.
(Pelos caminhos do mundo,
nenhum destino se perde:
Há os grandes sonhos dos homens,
e a surda força dos vermes.)
Porém, para que escrever algo sobre o Romanceiro da Inconfidência, se a própria autora, em 1955, numa conferência proferida, exatamente, em Ouro Preto, disse coisas definitivas sobre o seu grande poema, que ainda não são inteiramente conhecidas?
Assim, leitor, preferimos reproduzir, aqui, o texto desta conferência. É o que vem em seguida (C.L.).
Como escrevi o Romanceiro da Inconfidência
CECÍLIA MEIRELES
Um Gênio singular protegeu, desde o princípio, Vila Rica: fê-la surgir, prestigiosa e riquíssima, das curtas ondas de um riacho – fábula maior que a da própria Vênus, que nasceu do grandioso mar.
Concentrou entre estes muros de pedra, tão longe do convívio fácil dos lugares ilustres do século XVIII, um grupo de homens que estiveram, na sua época, tão ao corrente dos fatos e dos vultos seus contemporâneos – que puderam repercutir, neste pequeno recanto, as ideias mais avançadas da Europa, e foram murmurados nestes ares os nomes mais famosos do mundo, e lidos a esta luz os livros mais arrojados do tempo -, com uma naturalidade que impressiona, comove e quase assusta.
O Gênio protetor de Vila Rica, num jogo estranho, foi dispondo, entre estas águas e pedras, enigmáticos dados: o do Ouro – o da Ciência – o das Artes – o da Liberdade – o do Amor… Eram os dados brancos. Mas dispunha também os negros: o da Inveja – o da Ambição – o da Maledicência – o da Impostura – o da Tirania – o da Pusilanimidade…
E foi um jogo que durou cem anos: o tempo de nascer e morrer o Arraial de Ouro Podre, de se encontrarem aqui homens de todos os pontos cardeais: do Serro e de Juiz de Fora; de Mariana e do Rio das Mortes; do Rio de Janeiro e de São Paulo; do Porto, de Lisboa, de Leiria, dos Açores, que tinham cada qual uma função a exercer nos singulares acontecimentos ocorridos nestes palácios, nestas casas, ao longo destas ruas, à margem destes rios, dentro destas igrejas…
A quase dois séculos de distância, podemos ver o movimento de todas essas peças, na tremenda partida confusamente jogada, contra Ouro Podre, Mestre Pascoal e Felipe dos Santos – figura do Conde de Assumar; contra Gonzaga, Alvarenga, Cláudio Manuel, Tiradentes, Freire de Andrade, Maciel, Luiz Vieira, isto é, a nobreza da raça, da hierarquia, do pensamento, da cultura – um Silvério dos Reis, um Pamplona, um Malheiros de Brito… E contra o Alferes Tiradentes, que calcorreou todas estas serras, estas matas, estes caminhos, a serviço de um partido, à mercê de um sonho, às ordens de seus amigos , a imperícia ou pusilanimidade desses mesmos amigos, a perfídia dos inimigos, a intriga dos calculistas, dos oportunistas; da hipocrisia dos ministros, e o impressionante vulto de uma Rainha cujas virtudes celebradas, antes, pelos próprios réus poetas, haviam de submergir – no momento mais dramático do grande jogo – em ondas de inconsciência e loucura: para que se cumprissem nessa fantástica Vila Rica as intenções do Gênio que, assim, a protegê-la e a persegui-la, a faria exorbitar de sua geografia, e refletir-se no Brasil todo, e projetar o Brasil no mundo, e transcender o mundo e universalizar-se em alado exemplo, símbolo, conceito, alegoria, recado dos deuses aos homens para o seu ensinamento constante.
A duzentos anos de distância, embora ainda velados muitos pormenores desse fantástico enredo, sente-se a imprescindibilidade daqueles encontros, de raças e homens; do nascimento do ouro; da grandeza e decadência das Minas; desses gráficos tão bem traçados de ambição que cresce e da humanidade que declina; a imprescindibilidade das lágrimas e exílios, da humilhação do abandono amargo, da morte afrontosa – a imprescindibilidade das vítimas, para a definitiva execração dos tiranos. E para que, no fim da partida – como em todas as parábolas – neste dialogo do céu com a terra, fossem obscurecidas para sempre as glórias efêmeras, e, por toda a eternidade, exaltados e glorificados os que padeceram opressão e martírio…
Quando, há cerca de 15 anos, cheguei pela primeira vez a Ouro Preto, o Gênio que a protege descerrou, como num teatro, o véu das recordações que, mais do que a sua bruma, envolve estas montanhas e estas casas -, e todo o presente emudeceu, como plateia humilde, e os antigos atores tomaram suas posições no palco. Vim com o modesto propósito jornalístico de descrever as comemorações de uma Semana Santa; porém os homens de outrora misturaram-se às figuras eternas dos andores; nas vozes dos cânticos e nas palavras sacras, insinuaram-se conversas do Vigário Toledo e do Cônego Luiz Vieira; diante dos nichos e dos Passos, brilhou o olhar de donas e donzelas, vestidas de roupas arcaicas, com seus perfis inatuais e seus nomes de outras eras. Na procissão dos vivos caminhava uma procissão de fantasmas: pelas esquinas estavam rostos obscuros de furriéis, carapinas, boticários, sacristães, costureiras, escravos – e pelas sacadas debruçavam-se aias, crianças, como povo aéreo, a levitar sobre o peso e a densidade do cortejo que serpenteava pelas ladeiras.
Então, dos grandes edifícios, um apelo irresistível me atraía: as pedras e as grades da Cadeia contaram a sua construção – o suor e os castigos incorporados aos seus alicerces; o palácio dos governadores ressoava com as irreverências de Critillo; a Casa da Ouvidoria mostrava na sombra o desembargador-poeta, louro, amoroso, suave, com um pré-romantismo inglês a amadurecer nos olhos azuis; o sobrado de Francisco de Paula Freire de Andrade insistia em ostentar as suas cortinas de damasco, em suas colchas de seda, em sua fidalguia bastarda, mas da melhor linhagem; a casa de Cláudio ressoava de suspiros a Nise, de epístolas, de sonetos em português e em italiano; o Largo de Dirceu estava cheio de mensagens à procura do palácio da Amada e das suas sonoras fontes; a igreja de Antônio Dias deixava passar Marília menina, Marília adolescente, Marília feliz, Marília triste, Marília encarquilhada, Marília morta… – A Casa dos Contos, esta casa onde o destino me faria falar, centralizava tudo isso; o cavalo do Cônego Vieira estacava à sua porta; o Alvarenga, “o tal desgraçado Alvarenga”, magistrado, poeta, minerador, entrava por ela adentro, para cear com seu compadre João Rodrigues de Macedo, admirar a edificação recente, conspirar, jogar gamão… Assoma Tiradentes, a colocar dentes muito bem talhados no Caixeiro Vicente Vieira da Mota, guarda-livros do dono da casa… Viria o Padre Rolim, assustado com perseguições que o tinham feito sair do meio dos diamantes do Tejuco… Viria Francisco Antônio de Oliveira Lopes, tão gordo que – dizia por gracejo – valia por quatro, na conspiração que se tramava… Viria o próprio Joaquim Silvério, ávido de bens, terras, títulos, comendas, a espionar pensamentos, palavras e atos. Viria – na bruma das lendas – Cláudio Manuel, para um cubículo sob a escada, e aqui desapareceria misteriosamente.
E assim a minha Semana Santa era aquela que eu estava acompanhando ao longo destas ruas e era muito mais antiga.
Era, na verdade, a última Semana Santa dos Inconfidentes: a do ano de 1789.
Lembrai-vos dos altares,
destes anjos e santos,
com seus olhos audazes
nos mundos sobre-humanos.
(Haverá sombra e umidade
em vossas pálpebras tristes,
com o céu preso numa grade.)
Vede esses panos roxos
que envolvem as imagens!
Desaparecem todos
os vultos, em saudade.
(Lutuoso véu de horizonte.
aguarda a fria fadiga
da vossa pálida fronte.)
Recordai pelos ares
o alvo incenso que sobe.
Que diáfana paragem
atingirá quem sofre?
(Os pensamentos mais puros
estremecerão fechados
Por inabaláveis muros.)
Oh!, como é triste a carne,
e triste o sangue, e o pranto
com que Deus se reparte,
incompreendido e manso.
(Como pedras sem ruído
cairão as vossas rezas
por desertos sem ouvido.)
Pois o amor não é doce,
pois o bem não é suave,
pois amanhã, como ontem,
é amarga, a Liberdade.