“A grande novidade será a introdução de um sistema com contas individuais de capitalização”
(Programa de governo do candidato Jair Bolsonaro, do PSL)
“Quais são os principais problemas da capitalização? Primeiro, a taxa de reposição extremamente incerta, um custo altíssimo de transição e manutenção, e nenhum poder redistributivo. Sistemas de capitalização, seja qual for a forma (aberta ou fechada), não têm poder distributivo, pois seu modelo é individualizado. Há uma brutal transferência da poupança pública para a poupança privada, e nenhum retorno para os empregos.”
(Laura Tavares Soares, “Reforma da Previdência: a experiência da América Latina”)
O trecho imediatamente acima, de um artigo da professora Laura Tavares Soares – aliás, excelente – apareceu em um dos cadernos da Fundação Perseu Abramo, em 2003 (cf. Caderno nº 2, “A Previdência Social no Brasil”).
A Fundação Perseu Abramo é a fundação do PT.
Pode-se dizer que, ao assumir o governo, Lula fez todos os esforços possíveis para implantar o regime de capitalização na Previdência.
Quanto à Dilma, com sua brilhante visão da correlação de forças na política, pode-se dizer que ela fez, inclusive, os esforços impossíveis.
Ao deixar o governo, que passou a Lula em 1º de janeiro de 2003, Fernando Henrique não conseguira aprovar, no Congresso, o fim da aposentadoria integral dos funcionários públicos federais; nem o fim da paridade dos reajustes entre servidores ativos e inativos; nem a exigência de que os funcionários aposentados contribuíssem para a Previdência (o que, evidentemente, é uma redução da aposentadoria).
Os tucanos não conseguiram aprovar tais medidas devido ao movimento dos servidores – e, no Congresso, devido ao voto, contra elas, do PT.
Em 2002, o programa de governo da campanha de Lula dizia, sobre a previdência dos funcionários, o Regime Próprio da Previdência Social (RPPS):
“Os segurados dos Regimes Próprios de Previdência Social, os servidores titulares de cargo efetivo, têm garantia constitucional para as regras de cálculo de benefício, bem como para o reajustamento desse valor e a elegibilidade ao benefício. Ainda de acordo com as disposições da Constituição Federal, o RPPS deve ser regido pelo princípio da contribuição obrigatória.
“Nosso governo, respeitando o princípio do direito adquirido, combatendo privilégios, buscando uniformizar e racionalizar os procedimentos administrativos que hoje estão expressos em uma miríade de centros difusos de administração previdenciária nos entes federados, acelerando o processo de implementação dos RPPS de sorte a recepcionar as contribuições previdenciárias dos servidores para fins de aposentadoria, já que atualmente em muitos entes federados não há contribuição para aquela finalidade, deve buscar a negociação de um contrato coletivo do setor público, no qual os assuntos trabalhistas e previdenciários devem ser objeto de ampla e democrática negociação”.
Os problemas do RPPS eram causados pelo fato do governo não contribuir, de acordo com a lei, para a previdência dos funcionários públicos.
No entanto, uma das primeiras medidas do governo Lula foi enviar ao Congresso aquilo que Fernando Henrique não conseguira aprovar – sem nenhuma “negociação”, muito menos “ampla e democrática”.
De repente, o PT passou a votar a favor do que antes fora contra – com exceção de alguns parlamentares, que saíram do partido, acusando-o, muito justamente, de traição.
Em abril de 2003 – portanto, três meses após a posse de Lula – o governo conseguiu aprovar no Congresso a PEC nº 40, e, depois, em dezembro, a PEC nº 41, estabelecendo um teto para as aposentadorias dos funcionários públicos, uma contribuição para os servidores já aposentados, e, ainda, mais, um “fundo complementar”, de natureza privada, para a previdência do funcionalismo.
Tudo isso, em nome da “justiça social”.
Como?
Assim:
“O governo Lula (…) comparou, na Exposição de Motivos que encaminhou a proposta de reforma ao Congresso Nacional, a média dos benefícios do RGPS, de R$ 362,00, ao benefício de R$ 50 mil de um servidor.
“Não fosse pelo fato de esses dados terem sido exaustivamente repetidos na mídia, num arroubo de ingenuidade seria possível pensar que se tratou de um ‘equívoco’.
“Afora que não se compara uma média a um valor absoluto, (…) para o cálculo da média do RGPS foram indevidamente incluídos os benefícios dos rurais (de um salário mínimo) e as aposentadorias por idade, todos de caráter assistencial, com valores baixos, que ‘puxam’ a média para baixo.
“Segundo os dados do próprio MPAS, a média de aposentadoria por tempo de contribuição é de R$ 812,30, bastante acima dos R$ 362,00 utilizados para respaldar a retórica. Já a média da aposentadoria da maioria dos servidores federais fica em torno de R$ 1.038,00 (…).
“Mas foi com base nessa comparação espúria que se defendeu a adoção do teto de R$ 2.400,00 tanto para os servidores como para os trabalhadores do RGPS e, por consequência, a extinção da integralidade para os servidores e o início da unificação dos regimes.
“Ainda em nome da justiça social, o governo aprovou a contribuição de 11% para os aposentados, embora, em função da resistência, tenha sido obrigado a isentar aqueles com aposentadoria até R$ 1.440,00 (para os funcionários federais) e até R$ 1.200,00 (para funcionários estaduais e municipais).
“A cobrança dos inativos servidores foi derrotada em três oportunidades durante o governo FHC e contou sempre com o voto contrário do Partido dos Trabalhadores. Antes dele, somente o último governo militar ousou cobrar de aposentados, no caso do então INPS” (Rosa Maria Marques e Áquilas Mendes, “O governo Lula e a contra-reforma previdenciária”, São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 18, n. 3. jul.-set. 2004, pp. 10-11, grifos nossos).
CAPITALIZAÇÃO
O objetivo dessa “reforma” – e da virada do PT – é revelada pela instituição do “fundo complementar” para os funcionários que quisessem uma aposentadoria acima do teto estabelecido pelo governo Lula.
Tratava-se de obrigar os funcionários públicos a aderir ao regime de “capitalização”. Esse regime é expressamente mencionado na “cartilha” publicada, em 2014, pelo governo Dilma, sobre o fundo “complementar” dos funcionários (cf. Perguntas e Respostas – Funpresp).
Em resumo, tratava-se de obrigar os funcionários a colocar o seu dinheiro na especulação financeira, em prol dos bancos – que monopolizam a “previdência privada” – e outros rentistas.
“… a contrarreforma da Previdência Social estatal (Regime Geral e Próprio) praticada pelo governo Lula, já no início do seu primeiro mandato, atende aos interesses do capital financeiro na busca de clientes para os fundos de investimentos.
“Sob a denominação de fundos de previdência privada aberta e fechada, cria-se no imaginário social a possibilidade de maiores ganhos e segurança, que o termo ‘fundos de investimentos’ não subentende.
“Ou seja, a noção de risco que acompanha a operação passa para o campo aparentemente ‘neutro’ da previdência privada” (v. Edvânia Ângela de Souza Lourenço, Francisco Antonio de Castro Lacaz e Patrícia Martins Goulart, “Crise do capital e o desmonte da Previdência Social no Brasil”, Serv. Soc. Soc., São Paulo, nº 130, set./dez. 2017, p. 476).
Há outra dimensão – digamos assim – do problema: a possibilidade de roubo, de corrupção, que vem com esses “fundos”. A previdência pública, também nesse sentido, é muito mais segura. Veja-se o que ocorreu com o Postalis e outros fundos de pensão das empresas estatais…
Mas aqui há outro aspecto da fraude ideológica: assim como a injustiça social, na contra-reforma de Lula, foi apresentada como um imperativo de “justiça social”, a capitalização, isto é, a drenagem das contribuições previdenciárias para a especulação financeira, foi apresentada como “a expansão da poupança interna brasileira e o aumento de investimentos em obras de infraestrutura no país” (cf. cartilha acima citada).
A correia de transmissão dessa mentira, dessa falcatrua, foi, sobretudo, a CUT:
“Nessa linha, o 11º Congresso da CUT (XI Concut), realizado durante a primeira gestão de Dilma Rousseff, enfatizou a importância dos investimentos nos fundos de pensão” (idem, p. 477).
O fundo dos funcionários, aprovado com a PEC nº 41, no entanto, não foi regulamentado até o governo Dilma. Somente esta, em 2012, com aquela obtusidade que lhe caracteriza, aprovou “a Lei nº 12.618/12, que trata da previdência complementar (privada) do funcionalismo público e cria três fundos de pensão: Entidades Fechadas, denominadas Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal do Poder Executivo (Funpresp-Exe); Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal do Poder Legislativo (Funpresp-Leg) e Fundação de Previdência Complementar do Servidor Público Federal do Poder Judiciário (Funpresp-Jud).
“Com as Funpresp, que nada mais são do que fundos de pensão do funcionalismo público federal, todo trabalhador que entra no serviço público, após 2012, terá os benefícios do Regime Próprio do Servidor público federal, limitados ao teto do INSS, o que é um convite para sua adesão à previdência complementar.
“Nesse caso, o trabalhador contribui para o RPPS até o teto, no percentual de 11% e, acima disso, pode contribuir com o percentual que desejar para a Funpresp. Ademais, o Estado também financia o fundo (privado) com até 8,5% da parcela da remuneração que exceda o teto do INSS” (idem, grifos nossos).
Poderíamos acrescentar que esse fundo é imposto aos funcionários, apesar dessa imposição ser inconstitucional. Por exemplo, este é o segundo parágrafo do primeiro artigo da lei 12.618/2012:
“Os servidores e os membros referidos no caput deste artigo com remuneração superior ao limite máximo estabelecido para os benefícios do Regime Geral de Previdência Social, que venham a ingressar no serviço público a partir do início da vigência do regime de previdência complementar de que trata esta Lei, serão automaticamente inscritos no respectivo plano de previdência complementar desde a data de entrada em exercício” (grifo nosso).
PENSÃO E MORTE
Quanto ao RGPS (o regime dos trabalhadores em empresas privadas) a ação dos governos Lula e Dilma foi exatamente no mesmo sentido que o governo Fernando Henrique – e do que seria o governo Temer, nessa questão (e em quase todas), uma espécie de “puxadinho” do governo Dilma.
“A contrarreforma da Previdência Social no governo Dilma afetou profundamente a Previdência Social, promovendo desonerações às empresas e amplas mudanças para o acesso às pensões por morte, auxílio-doença, reclusão e defeso e, ainda, abono salarial e seguro-desemprego, com o objetivo de minimizar os valores pagos mensalmente e reduzir o tempo de acesso a esses benefícios, como são exemplo as Medidas Provisórias nº 664 e nº 665.
“Além disso, permite que o INSS faça convênios para a realização de perícias médicas, terceirizando as perícias, assunto caro à Saúde do Trabalhador, devido ao histórico de não reconhecimento dos agravos à saúde relacionados ao trabalho.
“… as Medidas Provisórias nº 664 e nº 665, transformadas em leis, promoveram amplas dificuldades para o acesso aos direitos previdenciários e ao seguro-desemprego, seguindo a tendência neoliberal de enxugar os gastos sociais e promover o desvio de recursos para a esfera financeira, bem como estimular a previdência privada”.
Meirelles e Temer continuariam esse caminho – colhendo o repúdio mais geral da sociedade, desde o fim da ditadura.
Infelizmente, ainda há quem queira prosseguir sob o falso condão da “capitalização” – não estamos nos referindo a Alckmin, Bolsonaro ou alguma outra sublegenda da reação e do entreguismo. Esses, é claro, estão prontos a retirar direitos de quem trabalha.
Mas também Ciro e Marina, na atual campanha, têm levantado a “capitalização” como a salvação da Previdência.
É possível que seja uma confusão ou um desconhecimento do problema. Porém, ter a mesma posição, em um tema tão decisivo quanto a Previdência, que Bolsonaro ou Alckmin, deveria ser um alerta.
Porque, desde o governo Fernando Henrique as políticas são sempre a favor desse monstrengo – bem definido, em uma de nossas epígrafes, pela professora Laura Tavares Soares.
A rigor, a Previdência Social necessita ser salva, urgentemente, da “capitalização” – e de seus adeptos.
C.L.
Matéria relacionada:
Como Fernando Henrique, Lula e Dilma pilharam as aposentadorias (1)
Quem mistura alhos com bugalhos acaba escrevendo artigos ideológicos e parciais ou partidários (no caso, contra o PT). A previdência complementar dos servidores, instituída a partir de 2012, é um sistema híbrido no qual o servidor novo (ou seja, que ingressa no serviço público a partir dessa data) passa a ter que contribuir sobre o que exceder ao teto do Regime Geral para um fundo de previdência complementar. O Funpresp é gerido por uma fundação de direito privado com natureza pública e autonomia administrativa, financeira e gerencial, mas é órgão da administração indireta
e está vinculada ao MPOG. É uma fundação SEM FINS LUCRATIVOS. O governo aporta recursos porque É PATRÃO.
Não, leitora. A gestão dos recursos dos servidores, no Funpresp, é privada – uma parte já foi terceirizada, inclusive para a Western Asset Management Company (sede: Pasadena, California) e para o Santander. Além disso, ao aderir a esse fundo, o servidor é obrigado a desistir da aposentadoria integral – como em qualquer fundo desse tipo, a aposentadoria vai depender do rendimento dos recursos do fundo na especulação. Há mais, porém, isso é suficiente para ver o objetivo dessa tralha: implantar o regime de capitalização entre os servidores públicos. E de uma forma muito mais solerte do que faria esse estúpido do Paulo Guedes. Mas o objetivo é, exatamente, o mesmo.