Os crimes do cartel do bilhão contra o Brasil (16)
(HP 30/09/2015)
CARLOS LOPES
Em sua decisão sobre a prisão preventiva de João Augusto Rezende Henriques, na última sexta-feira, o juiz federal Sérgio Moro relata:
“… o acusado admitiu que, em outro contrato da Petrobrás, relativamente à aquisição do campo de exploração em Benin, teria efetuado transferência bancária, a pedido de terceiro, para conta no exterior que pertenceria a um agente político, titular de foro privilegiado, já acusado em outra ação penal perante o Supremo Tribunal Federal.”
O “agente político” seria o deputado Eduardo Cunha. Este “seria” é apenas para respeitar o tempo de verbo (“pertenceria”) usado pelo juiz. A maioria da imprensa utilizou expressões mais assertivas – ou seja, sem cautelas condicionais.
João Augusto Rezende Henriques era operador do PMDB e atuava junto à diretoria internacional da Petrobrás. Intermediou uma propina de US$ 31 milhões (trinta e um milhões de dólares) da empresa norte-americana Vantage Drilling Corporation, para que a Petrobrás alugasse o navio-sonda Titanium Explorer.
A parte da propina que coube a Henriques e ao PMDB, como consequência da contratação do Titanium Explorer, foi de US$ 10 milhões (dez milhões de dólares).
O que foi confirmado pelo representante da Vantage no Brasil, Hamylton Pinheiro Padilha Júnior.
EXPLORER
O depoimento de Hamylton Padilha é um dos mais importantes da Operação Lava Jato. Reproduzimos, pelo que esse testemunho tem de revelador do modus operandi dos esquemas contra a Petrobrás, alguns trechos:
“… no que toca ao navio Titanium Explorer, a negociação foi feita entre a Petrobrás e uma empresa estrangeira representada pelo declarante, a empresa Vantage Drilling Corp. (Vantage);
“… o declarante foi abordado pelo Sr. Raul Schmidt, que lhe informou que o negócio só prosseguiria com a diretoria da Petrobrás Internacional se houvesse pagamento de propinas, não sendo possível a finalização da negociação sem tais pagamentos, esclarecendo que estava envolvido o novo diretor, Jorge Zelada, em substituição a [Nestor] Cerveró”.
O nome de Raul Schmidt Felippe Júnior, que mora oficialmente em Londres, é recorrente nas investigações da Operação Lava Jato: ex-funcionário da Petrobrás, de onde saiu em 1997, Schmidt foi “executivo” ou “consultor” de multinacionais como a ConocoPhilips, a Reading & Bates Falcon – uma operadora de navios-sonda, depois comprada pela Transocean – e foi presidente da subsidiária no Brasil da Sevan Marine, operadora norueguesa de sondas e navios-plataforma.
Raul Schmidt é sócio de Jorge Zelada em uma empresa com sede na Suíça, a TVP Solar, supostamente dedicada à energia solar – segundo suspeita a PF, seria uma empresa de fachada para lavar dinheiro.
Além de ser um velho conhecido de Renato Duque – o diretor de Serviços do esquema do PT -, Schmidt também “possuía ligação com a Samsung, estaleiro responsável pela construção dos navios-sonda Petrobras 10000 (que, segundo a auditoria da Petrobrás, teve pelo menos U$ 11,9 milhões de superfaturamento) e Vitória 100000, cuja aquisição pela estatal foi objeto de denúncia pelo MPF por envolver o pagamento de U$ 40 milhões de propina” (cf. MPF, “Requerimento de medida cautelar de busca e apreensão criminal e prisão preventiva em face de Jorge Luiz Zelada”, 09/06/2015, p. 22).
Continuemos com o depoimento de Hamylton Pinheiro Padilha Júnior:
“… Raul Schmidt apresentou como intermediário do diretor Jorge Zelada, o Sr. João Augusto Henriques que seria a pessoa que daria as instruções para o recebimento das propinas;
“… foi explicado a dificuldade para fazer tais pagamentos, ou seja, as comissões do declarante já estavam acordadas e assinadas via contrato com seu cliente e havia as dificuldades relativas ao compliance da Vantage (FCPA), mas para contornar tais dificuldades foi apresentada a ideia de procurar a empresa proprietária do navio-sonda, a Taiwan Maritime Transportation Co. Ltd (TMT)”.
A palavra compliance refere-se a regras de conduta – ou “conformidade” (em inglês, “compliance”) – exibidas publicamente pelas empresas, sobretudo multinacionais, entre outras coisas, supostamente contra a corrupção. A sigla FCPA significa Foreign Corrupt Practices Act, lei dos EUA que proíbe cidadãos daquele país de subornar ou oferecer propina a funcionários de outros países. Como veremos em seguida, mais uma vez, essa proibição não é coisa séria.
“… tal empresa [a Taiwan Maritime Transportation – TMT] é uma empresa armadora, ou seja, proprietária de uma frota de navios, com sede em Taiwan, e atuação mundial;
“… a TMT iria afretar um navio de perfuração para a Vantage, que por sua vez iria operar para a Petrobrás, ou seja o navio não pertencia à Vantage e sim à TMT;
“… era necessário tratar do assunto diretamente com o acionista controlador, Sr. Nobu Su, mas o declarante, apesar de tê-lo conhecido em uma ocasião, não tinha os contatos dele;
“… o declarante procurou o Sr. Paul Bragg, CEO da empresa Vantage Drilling, para discutir a questão, quando informou que diretores da Petrobrás estavam criando dificuldades e que precisava estar pessoalmente com Nobu Su;
“… Paul Bragg se recusou a saber de detalhes, mas agendou a reunião com o Sr. Nobu Su em Nova York, mais precisamente no Hotel Four Seasons;
“… nesta reunião ficou acordado que o pagamento da propina seria realizada diretamente pela empresa TMT, que também é acionista da empresa Vantage;
“… depois disto, Nobu Su viajou para o Rio de Janeiro, tendo se hospedado no Hotel Copacabana Palace, quando foi apresentado pelo declarante e se reuniu pessoalmente com o Sr. João Augusto Henriques para discutir como seria realizado efetivamente o pagamento das propinas;
“… em 21/12/2008 foi assinado o Comission Agreement [Acordo de Comissão], entre a sociedade Valencia Drilling Corporation (Marshall Islands), empresa subsidiária do Grupo TMT, de um lado, e, de outro lado, a Oresta Associated S.A. (Belize), que tinha como beneficiário o declarante;
“… o valor total da remuneração com a Oresta foi de US$ 15.500.000,00 [quinze milhões e quinhentos mil dólares], a título de comissão;
“… o declarante ouviu João Augusto Henriques dizer que outro contrato, no mesmo valor, foi efetuado para o pagamento das propinas, sendo que o declarante acredita que seja a mesma fonte pagadora e os mesmos bancos que efetivaram os pagamentos, por indicação de João Augusto Henriques, a título de propina;
“… do montante que caberia ao declarante, o percentual de cerca de 50% seria repassado ao Sr. Raul Schmidt, por solicitação dele;
“… o valor total efetivamente recebido foi de US$ 10.841.826,99 (dez milhões, 841 mil, 826 dólares e 99 cents) e o saldo remanescente não foi recebido, por conta de dificuldades financeiras do grupo TMT, que ao que se sabe teria entrado em concordata no ano de 2009;
“… o declarante recebeu sua parte por meio da sociedade Oresta, em duas parcelas com datas distintas, no período de fevereiro/2009 a setembro de 2009, através de créditos efetuados em conta mantida junto ao Banco UBS em Zurich (n° 267-858306.01G);
“… os pagamentos efetuados pela Oresta ao Sr. Raul Schmidt, foram realizados para a empresa Polar Capital Investment Ltd., cujo beneficiário final acredita ser o próprio Raul Schmidt, da seguinte forma:
“1º pagamento: no valor de US$ 1.500.000,00, efetuado em abril de 2009 (…) para a conta da empresa Polar Capital Investment Ltd. (‘Polar’), junto ao Banco Lombard Odier Darier Hentsch & Cie, em Genebra, conta n° 204788;
“… o 2° pagamento deu-se em 09/06/2009, no valor de US$ 1.303.000,00, sendo que estes recursos foram transferidos por uma empresa no exterior para a empresa indicada por Raul Schmidt, para a mesma conta de titularidade Polar Capital Investment Ltd., junto ao Banco Lombard Odier Darier Hentsch & Cie, em Genebra, conta n° 204788;
“… por fim, o 3º pagamento: no valor de US$ 2.141.000,00, realizado em 21/12/2009, através de conta utilizada para evitar o vínculo direto com a empresa indicada por Raul Schmidt, para uma conta provavelmente de uma empresa mantida no mesmo banco (…) e desta para uma outra empresa e depois para a conta da empresa Polar Capital Investments Ltd., acima referida;
“… o somatório dos pagamentos realizados à empresa Polar Capital Investments Ltd., acima referida, foi de R$ 4.944.000,00. O valor remanescente, que permaneceu de titularidade do declarante, foi de US$ 5.897.826,99;
“… além dos referidos pagamentos realizados à empresa Polar Capital Investments Ltd., após a conclusão das negociações o declarante manteve contato com o Sr. Eduardo Musa, que alegou saber de todo o ocorrido com os diretores da Petrobrás e nessa conversa ficou pactuado que ele, Musa, iria receber, a título de propina, o valor aproximado de US$ 500.000,00” (cf. Termo de colaboração que presta Hamylton Pinheiro Padilha Junior, 27/07/2015).
COBERTURA
O caso de Henriques – e de Cerveró e Zelada, isto é, o esquema do PMDB – mostra como o esquema do PT, que começou aproveitando a tecnologia do falecido deputado Janene, do PP, acabou sendo um guarda-chuva para outros esquemas, além do próprio.
Do ponto de vista político, a opção do PT significou cevar o que havia de pior em outros partidos – nesse caso, no PMDB. É bastante claro, agora, a lógica que presidiu os acontecimentos após a eleição de 2002, quando a ala do PMDB que apoiara Lula foi preterida no governo, e pelo PT, em relação aos que apoiaram Serra na mesma eleição.
Quando, logo após a vitória de Lula, o PT, em dezembro de 2002, votou a favor, no Congresso, de estender o forum privilegiado a ex-governantes, causou perplexidade.
[Somente por exatidão: a medida aprovada, a Lei nº 10.628, de 24/12/2002, estendeu o forum privilegiado “a inquéritos ou ações judiciais que sejam iniciados após a cessação do exercício da função pública”, e, não menos importante, estendeu o forum privilegiado a crimes de improbidade, pela primeira vez na história do país (cf. o artigo da procuradora federal Cinara Bueno Santos Pricladnitzky, “Do foro privilegiado: os limites da competência especial ratione personae”, Âmbito Jurídico nº 91 – Ano XIV – agosto/2011).]
Era óbvio a quem essa lei beneficiava: durante oito anos, o forum privilegiado servira para agasalhar os responsáveis pelas falcatruas do governo Fernando Henrique. Mas nada impedia, se não fosse aprovado esse escárnio em forma de lei, a investigação e processo de Fernando Henrique & outros, após deixarem os seus cargos.
A lei aprovada pelo PT beneficiava, pois, diretamente, Fernando Henrique e os tucanos mais próximos dele.
Muitos – o autor deste texto, por exemplo – encararam esse absurdo como consequência da ilusão de que, fazendo um aceno aos tucanos, estes se comportariam de forma semelhante com o PT.
Essa ilusão existia – e teve dramáticas consequências.
Porém, havia mais do que isso nessa decisão de proteger Fernando Henrique et caterva, embora, é provável que, na época, isso tenha permanecido inconsciente ou confuso – exceto naqueles membros do PT que, no limite, pregavam até a fusão, sem mais delongas nem arrodeios, com o PSDB.
Não pretendemos aqui traçar o curso que levou ao estado atual do PT, porque não é esse o nosso objetivo nesta série. Para maior clareza, destacamos que estamos longe de achar que o PT de 2002 – ou de 2010 – era o mesmo PT de hoje. Apenas, apontamos alguns antecedentes, que na época eram elementos secundários, para melhor compreensão do que houve. Esses antecedentes são aparentados com aquelas “franjas” que, segundo Machado, o diabo se compraz em puxar: “Todas as virtudes cuja capa de veludo acabava em franja de algodão, uma vez puxadas pela franja, deitavam a capa às urtigas e vinham alistar-se na igreja nova”, isto é, na igreja do diabo.
Em suma, o que é nocivo, mas secundário, se não resolvido ou mal resolvido, pode perfeitamente se tornar o principal – e mais nocivo ainda – em tempo posterior.
Portanto, sublinhemos outra vez: a opção por enfrentar o esquema imperialista-neoliberal no campo deste – isto é, no campo das enxurradas de dinheiro – levou o PT a engordar e proteger o que havia de pior em outros partidos, assim como dentro de si mesmo, até que o “pior”, em termos morais, ideológicos e políticos tornou-se a norma, a tal ponto que há petistas – não todos, é claro – que não se avexam de considerar o roubo “normal” em política.
Rigorosamente, a opção de não enfrentar o inimigo – pois é isso o que significa “enfrentar o esquema imperialista-neoliberal no campo deste” – levou a basear o financiamento de campanha em atos antinacionais, pois é isso o que são os sistemáticos sobrepreço e superfaturamento – com as consequentes propinas – impostos à Petrobrás.
Evidentemente, isso tem uma conexão direta com a passagem do governo Dilma para o campo da reação, isto é, da mais devastadora política pró-imperialista desde Campos Salles e Fernando Henrique. Mas, por enquanto, fiquemos por aqui.
PÚBLICO
Voltemos ao esquema do PMDB na diretoria internacional da Petrobrás.
A denúncia do Ministério Público comprova a participação de Henriques como atravessador de propinas nos seguintes negócios:
1) Contratação da Odebrecht para a área de SMS (Segurança, Meio Ambiente e Saúde) em nove países nos quais a Petrobrás atua (Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, EUA, Japão, Paraguai e Uruguai), além do Brasil, para “controle de emissão de poluentes, saúde dos trabalhadores (nível de ruído, exposição a agentes nocivos) e segurança nas instalações da empresa).
Como frisa o juiz Sérgio Moro, já existe um processo na Justiça estadual do Rio de Janeiro, em que o superfaturamento nessa contratação é calculado em US$ 344 milhões (trezentos e quarenta e quatro milhões de dólares) – este é o valor que a Petrobrás, após auditoria, considerou que era não justificado.
Ao início, nos pareceu incrível tal superfaturamento. Infelizmente, depois de ler as auditorias da Petrobrás (há mais de uma), achamos que é perfeitamente possível.
Há uma série quase infinita de irregularidades administrativas, constatadas pela própria Petrobrás, perpetradas pelo então diretor internacional Jorge Zelada, contra as instâncias de decisão dentro da própria Petrobrás. Mas nos parece evidente que tal movimentação por fora dos procedimentos habituais, envolvendo somas que vão – no total dos casos citados – a mais de US$ 5 bilhões (cinco bilhões de dólares), não poderia ser feita de forma imperceptível. E, realmente, não foi assim. Vários funcionários da Petrobrás apontaram, desde muito cedo, as irregularidades.
Quem não tomou providências foi o governo – e seus prepostos na Petrobrás, inclusive a atual presidente Dilma Rousseff, que foi presidente do Conselho de Administração da Petrobrás de janeiro de 2003 a março de 2010.
Vejamos a incrível rapidez para entregar à Odebrecht um contrato de quase um bilhão de dólares.
A Comissão de Licitação foi instalada em 22/6/2010 e encerrada dois meses depois. Foi tão rápida – para um contrato que envolvia a realidade, inclusive jurídica, de 10 países – que três de seus membros nem mesmo chegaram a participar das decisões.
Foram convidadas a participar da licitação as seguintes empresas: Construtora Norberto Odebrecht (CNO), Construtora Camargo Corrêa, Construtora Andrade Gutierrez, Construtora OAS, KBR Inc, Mitsui & Co Ltd., Marubeni do Brasil e Bechtel Corporation.
Apenas três empresas apresentaram propostas: Construtora Norberto Odebrecht, Construtora Camargo Corrêa e Construtora Andrade Gutierrez.
Em 23/08/2010, portanto, dois meses após a instalação da Comissão de licitação, a Odebrecht foi dada como vencedora, pelo preço de US$ 825.660.293,79 (825 milhões, 660 mil, 293 dólares e 79 cents), mais de 40 milhões de dólares acima do cálculo da Petrobrás (US$ 784.217.180,13).
Diz o relatório do agente Rodrigo Prado Pereira, da Polícia Federal, que investigou esse malfeito, ao delegado Eduardo Mauat da Silva, também da PF:
“… o Relatório de Auditoria R 9265/2011 [da Petrobrás] apontou pelo menos 12 irregularidades que desqualificariam a proposta vencedora da licitação modalidade CONVITE, incluindo o fato da empresa contratada não atuar na área exigida (SMS), inclusão de serviços de manutenção incompatíveis com as instalações onde seriam executadas, inserção de 3.856 itens de serviços sem fundamentação técnica, falta de qualidade e clareza das informações técnicas essenciais ao correto e adequado entendimento do escopo contratual, além de outros” (cf. PF/DELEFIN, Informação nº 93/2014, pág. 12, 09/10/2014).