Preso por extorsão, ex-presidente francês segue impune de seus maiores crimes
O ex-presidente da França, Nicolas Sarkozy, chegou a uma prisão em Paris nesta terça-feira (21) para começar a cumprir uma sentença de cinco anos de prisão por “conspiração criminosa por buscar fundos de campanha para a eleição de 2007” – ou, mais propriamente, por extorquir dinheiro de Muammar Kaddafi prometendo ajudar a Líbia a resistir às pressões do então presidente dos EUA, W. Bush.
Como comentou a colunista canadense sediada em Paris, Rachel Mardsen, Sarkozy escapou impune de todos os seus crimes, “exceto os menores”. Numa síntese, ela registrou que o francês “pegou o dinheiro de Kaddafi, usou-o para se tornar presidente e depois matou o cara. Tudo isso pelo baixo, baixo custo de cinco anos de prisão”.
Na verdade, não foi só assassinato, foi um linchamento por uma turba a serviço da Otan, e dezenas de milhares de mortos e centenas de milhares de deslocados. A destruição da mais próspera nação africana, deixando o país dividido entre dois governos até hoje e as reservas de divisas líbias, provenientes do petróleo, surrupiadas pelo Ocidente.
Tais crimes ajudaram a abrir o Sahel às gangues jihadistas, empurrando os deserdados da terra para a imigração rumo ao ‘jardim europeu’, questão agora manipulada pelos fascistas para espalhar a xenofobia e o racismo no velho continente. E não foi por falta de aviso do líder líbio.
Não é por esse crime colonial em pleno século 21 que Sarkozy foi julgado, mas por ter arrancado, da Líbia, dinheiro para sua campanha, ao estilo da proteção vendida pela máfia.
Entre os franceses, Sarkosy é particularmente detestado por seu empenho na reforma da previdência, que elevou a idade mínima de aposentadoria de 60 para 62 anos, contra a qual se insurgiram a tal ponto os franceses que ele não foi reeleito.
O PRESÍDIO DE LA SANTÉ
Sarkosy já foi levado para a prisão de La Santé, em Paris, em um carro da polícia pela manhã, se tornando o segundo líder francês em um século a ser preso – o primeiro foi o colaboracionista de Vichy sob Hitler, Phillipe Petáin, após a libertação da França.
Pela plataforma X, ele teve a cara de pau de postar: “Não é um ex-presidente da república sendo preso esta manhã, mas um homem inocente”. E acrescentou: “A verdade prevalecerá.”
Ao jornal Le Figaro, Sarkozy disse levar consigo “uma biografia de Jesus e uma cópia de O Conde de Monte Cristo” (famoso romance em que um inocente é condenado à prisão, mas escapa para se vingar).
Funcionários da penitenciária disseram à agência de notícias AFP que ele provavelmente será mantido em uma cela de nove metros quadrados na ala vip de confinamento. Esta é uma medida de segurança, o que significa que ele não terá contato com outros prisioneiros.
Nessa ala, os prisioneiros podem sair de suas celas para uma caminhada por dia, sozinhos, em um pequeno pátio, e têm permissão para visitas três vezes por semana.
Apesar dos reclamos de Sarkosy sobre a injustiça de que é vítima, poucos na França desconhecem seus métodos pouco ortodoxos para financiamento de campanha, desde o escândalo da extorsão da mulher mais rica da França, dona da L’Oreal, de 87 anos e com Alzheimer, Liliane Bettencourt.
Antes de partir para a cadeia, uma última encenação, com antigos cabos eleitorais e alguns familiares plantados diante de sua casa, choramingando o infortúnio. Os mais esforçados segurando retratos emoldurados de Sarkozy, aos berros de “libertem Nicolas”.
A pantomina incluiu cantar o hino nacional francês, enquanto os vizinhos observavam das varandas e meneavam a cabeça.
“GRAVIDADE EXCEPCIONAL”
A juíza Nathalie Gavarino disse durante a sentença que as ofensas eram de “gravidade excepcional” e, portanto, ordenou que Sarkozy fosse preso mesmo que ele entrasse com um recurso. O tribunal tem dois meses para examinar o recurso de libertação apresentado por seus advogados.
Seu gerente de campanha e ex-chefe de gabinete, Claude Guéant, foi preso por corrupção real, resultando em uma sentença de prisão de seis anos – que ele não deverá cumprir porque, aos 80 anos, ele é considerado idoso demais para a prisão.
O ex-ministro Brice Hortefeux foi condenado a dois anos de prisão domiciliar por conspirar como parte da mesma equipe.
Outros dez foram acusados, inclusive a ex-primeira-dama, Carla Bruni, esta, por coagir depoentes.
A acusação teve como base testemunho de ex-dirigentes líbios, registros de viagens à Líbia realizadas por Gueant e Hortefeux e em notas pertencentes ao ex-ministro do Petróleo líbio Shukri Ghanem, encontrado morto em Viena em 2012.
O dinheiro foi entregue em malas. Curiosamente, o julgamento não estabeleceu uma ligação direta probatória entre o dinheiro transportado e o uso na campanha.
Apesar de, em março de 2011, quando a conspiração, esta sim, real, para destruir a Líbia já estava comendo solta, o próprio Kaddafi, em entrevista ao canal France 3, chamou Sarkozy de “mentalmente deficiente” e ingrato. “É graças a mim que ele se tornou presidente. Demos a ele os fundos que lhe permitiram vencer.”
Em 2006, Kaddafi, tentando uma coexistência entre a Líbia e o mundo unipolar sob W. Bush, havia buscado a ajuda francesa para dissolver velhos impasses, como o voo 103 Panam, que explodiu sobre Lockerbie, atentado imputado a Trípoli, que sempre negou.
O ASSASSINATO DE KADDAFI
Há relatos de que a caravana do líder líbio que deixou Sirte em 20 de outubro de 2011 foi atacada por aviões franceses – outros dizem serem norte-americanos – e que depois Kaddafi foi capturado por jagunços ainda vivo e empalado, o que foi mostrado em um vídeo divulgado pelos próprios autores. Notícia que mereceu a comemoração da então secretária de Estado Hillary Clinton em entrevista: “nós viemos, nós vimos e ele morreu. kkk”, como registrado em vídeo extensamente reproduzido nas redes sociais.
Como observou o acadêmico líbio Mustafa Fetouri, “[Sarkozy] destruiu um país e meio milhão de vidas e pegou cinco anos”. Ele considerou a condenação um raro lampejo de justiça, “mas seus verdadeiro crime continua impune”.
“O foco do tribunal francês em fundos ilícitos de campanha ressalta essa hipocrisia: o uso indevido de dinheiro pode ser punido, mas o impressionante custo humano das guerras lideradas pelo Ocidente continua sem punição, um testemunho sombrio da impunidade desfrutada por aqueles que orquestram intervenções sob a bandeira da moralidade.”
Mais recentemente, surgiram relatos de que a motivação de Sarkozy para capitanear o assalto da Otan à Líbia foi a intenção anunciada por Kaddafi de colocar as reservas de divisas da Líbia para bancar a constituição de uma moeda africana. O que contrariava os interesses neocoloniais franceses de manter seu “falso franco” como moeda de metade da África, sistema em que esses países têm de deixar metade de suas reservas no BC francês.