Confrontos nos arredores da capital da Líbia, Trípoli, inclusive o bombardeio do aeroporto de Mitiga, o único em funcionamento, entre forças dos dois ‘governos’ que coexistem no país causaram 25 mortos e dezenas de feridos na segunda-feira (8), segundo o ministério da Saúde da Líbia. No domingo, as duas partes se recusaram a observar cessar-fogo de duas horas para evacuação dos feridos, solicitado pela ONU.
Todos os voos no aeroporto de Mitiga estão suspensos até segunda ordem. A intensificação da crise ocorre a uma semana de conferência internacional na Líbia, cujo objetivo anunciado seria definir um roteiro para o processo político de reunificação do dividido país.
A Líbia foi o 20º maior produtor mundial de petróleo em 2018, com mais de um milhão de barris por dia, a maioria exportada para a Itália e cada vez mais para a Espanha e a China.
Diante dos confrontos, o secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, que se encontrava no país tentando assegurar condições para a conferência, disse que partia “com grande preocupação e o coração pesado” e insistiu em que “não há solução militar” para a Líbia. “Só um diálogo entre líbios pode resolver os problemas da Líbia”, advertiu, acrescentando esperar que seja possível ainda “evitar um confronto sangrento em Trípoli e arredores”.
OBRA DA OTAN
No Cairo, onde se reuniu no sábado com seu homólogo egípcio, o chanceler russo Sergei Lavrov, afirmou que a razão para a crise na Líbia “é o que os membros da OTAN fizeram para este país em 2011”. “Desde então que se tornou um estado arruinado, vamos chamar as coisas pelos nomes, e se transformou em um buraco negro através do qual os terroristas vão para o sul, juntamente com o contrabando ilegal de armas, e para o norte – o fluxo de imigrantes ilegais”, ressaltou.
“Nós, como o Egito, somos a favor de que os próprios líbios definam seu destino, que iniciem um diálogo inclusivo sem quaisquer datas exageradas que alguns estão tentando impor a eles de fora, e sem que alguém os pressione contra sua vontade”, assinalou Lavrov.
O chanceler russo reiterou a posição de Moscou contra “nomear unilateralmente culpados” entre os líbios, e afirmou que a Rússia conversa “com todas as partes, Trípoli, Misrata e Tobruk.” Moscou pediu a todas as partes que evitem “um banho de sangue”.
Também o ministro de Relações Exteriores da França, Jean-Yves Le Drian, destacou que a crise na Líbia não pode ser resolvida através de uma “vitória militar” e que um acordo político é a “única opção” à luz das crescentes tensões no país do Magreb.
LINCHAMENTO
A Líbia, que era o país de maior índice de desenvolvimento humano da África, foi destruída pela intervenção e bombardeios da Otan – operação encabeçada por Washington, Londres e Paris, até a deposição e assassinato do líder Muammar Khadafi e controle do país por diferentes bandos de extremistas e milícias.
Após o linchamento e assassinato de Khadafi, tornou-se tristemente célebre a entrevista dada pela secretária de Estado, Hillary Clinton, em que, entre risadas de comemoração pelo trucidamento do líder líbio, ela disse: “nós vimos, nós viemos, e ele morreu”. Obama anunciou o início do bombardeio quando se encontrava em visita ao Brasil.
Desde então, o país afundou no caos e até a escravidão voltou, como denunciaram imigrantes que naufragaram no Mediterrâneo, depois de passarem pelo suplício. O Estado Islâmico chegou a imperar na cidade de Sirte por meses; há bolsões da Al Qaeda ao sul.
OPOSIÇÃO AOS INTEGRALISTAS
O governo que foi imposto pela intervenção da Otan acabou rachando depois, em um chamado governo de “unidade nacional” com centro em Trípoli, e o governo do parlamento de Tobruk, no leste, depois de eleições fraudadas. Tanto o governo de “unidade nacional” quanto o parlamento de Tobruk têm reconhecimento internacional.
Em 2014, o militar dissidente Khalifa Haftar, que rompera com Khadafi no final da década de 1980 e chegou a ficar 20 anos nos EUA, supostamente sob proteção da CIA, voltou à Líbia e unificou várias forças no chamado ‘Exército Nacional Líbio’. Ele tentara interferir no processo logo após a derrubada de Khadafi, mas foi rechaçado.
Ao que se diz, tornou-se uma figura ‘independente’ demais para o gosto de Washington, por ser favorável a um regime secular e panárabe, ao contrário dos integralistas que prevaleceram em Trípoli.
A oposição aos integralistas levou diferentes setores, inclusive da resistência, a se aproximarem do parlamento de Tobruk e de seu braço militar, com o ENL tendo liberado toda a região leste (Cirenaica) – inclusive os principais campos de petróleo – e no final do ano, por meio de acordos com outras forças nacionais, estendeu o controle a áreas ao sul e a oeste.
O “governo de unidade nacional” detém a capital e é aliado à milícia da cidade de Misrata – mas como os confrontos entre milícias rivais em setembro do ano passado mostraram, há um certo exagero em dizer que é quem “controla”. No dia 4, Haftar deu ordem para marchar a Tripoli, para “desarmar as milícias e os extremistas”.
AFRICOM CHIA: “INSEGURO”
Nesta segunda-feira, o chefe do Africom, o comando do Pentágono para a África, Thomas Waldhauser, anunciou a saída das tropas que ainda mantinha na Líbia, alegando que a situação se deteriorou e as forças americanas “não estão mais seguras por lá”. Já o secretário de Estado, Mike Pompeo, exigiu que Haftar parasse sua ofensiva rumo a Trípoli.
No ano passado, Itália e França realizaram ‘conferências’ tentando “marcar data” para eleições na Líbia, sem conseguirem tirar isso do papel, como parte dos esforços para interromperam o fluxo de botes com refugiados que partem das costas do país.
De Tobruk, o chanceler do governo líbio do leste, Abd al-Hadi al-Huweij, pediu a ajuda de Moscou para o processo de diálogo nacional na Líbia, como fez na Síria.“A Rússia é um estado chave. Pedimos a ela que apoie o projeto [da Líbia] de reconciliação nacional, assim como patrocinou [o Congresso] em Sochi sobre a crise na Síria. Esperamos que haja um Sochi da Líbia”.
Na manhã de quinta-feira, forças de Tobruk já haviam liberado Gharyan, a 80 quilômetros ao sul de Trípoli. Em discurso de rádio na noite da quinta-feira, Haftar ordenara uma marcha à capital para “sacudir as terras sob os pés do bando injusto”. “Trípoli, ouvimos seu chamado”, acrescentou, concluindo com o conselho aos milicianos: “quem levantar a bandeira branca estará a salvo.”
O “governo” de Trípoli respondeu convocando uma contra-ofensiva que denominou de Burkan Al-Ghadab (Vulcão da Fúria),além de ameaçar prender Haftar. Reforços foram enviados pela milícia de Misrata. Alguns distritos ao sul da capital ficaram sem eletricidade como resultado dos confrontos armados.