Em processo relâmpago, o Congresso peruano aprovou na manhã de sexta-feira (10) o impeachment da presidente Dina Boluarte por “incapacidade moral permanente”, após ela perder a sustentação das facções fujimoristas e de extrema-direita que a apoiavam desde que assumiu em 2022, por ser a vice, quando Pedro Castilho foi deposto acusado de tentar fechar o parlamento, o chamado “autogolpe”. A votação foi unânime: “sim”.
Já foi empossado, no lugar, José Jeri, que era presidente do Congresso e primeiro, pela lei, na linha de sucessão, e sob o qual serão realizadas as eleições convocadas para abril do próximo ano. Do partido conservador Somos Peru, ele prometeu entregar o poder a quem for eleito nas eleições marcadas para abril do próximo ano e declarou guerra “às gangues criminosas”. Referência à alegação sob a qual a deposição foi imposta, a incapacidade de Boluarte de combater a alta da criminalidade.
Multidões se reuniram do lado de fora do Congresso, em Lima, em clima de celebração, com bandeiras, danças e instrumentos musicais, segundo a agência de notícias Associated Press.
Assim, prossegue a via crucis do povo peruano, depois da crise do sectarismo do Sendero Luminoso, os dez anos de ditadura de Fujimori e a transição, que parece infindável, e que já resultou que, nos últimos anos quatro presidentes hajam sido presos por corrupção e um se suicidou, desde o escândalo da Odebrecht.
Segundo os institutos de pesquisa, a aprovação de Boluarte estava entre 2% e 4%. Era também acusada de enriquecimento ilícito. Havia uma enorme indignação por ter, em julho, dobrado o próprio salário.
A nova leva de pedidos de impeachment foi aberta na véspera pelo partido de extrema-direita, Renovação Popular, encabeçado pelo prefeito de Lima, Rafael López Aliaga, que exigiu seu afastamento responsabilizando-a pela “crise da violência” no país, aproveitando o impacto do ataque de criminosos no show da popular banda de cumbia Água Marina, realizado no Círculo Militar de Lima, em que quatro integrantes foram baleados no tórax e na perna.
Nos últimos dias, trabalhadores do transporte, com o apoio do sindicato das empresas Anitra, bloquearam estradas e queimaram pneus, no quinto protesto desde o início do ano contra a extorsão imposta por gangues e morte de motoristas. Também ocorreram manifestações atribuídas à “geração Z”.
Como assinalou o El País, se referindo aos muitos desastres sob Boluarte, “em qualquer caso não foram as mortes de meia centena de manifestantes [nos protestos contra a deposição de Castilho], nem seu abandono do cargo para realizar uma rinoplastia [plástica do nariz] e estiramento dos pés de galinha em segredo. Tampouco os favores sob o tapete em troca de jóias e relógios de luxo, nem a suspeita de haver encoberto fugitivos da justiça” que levaram-na ao impeachment, mas a alegada incapacidade de fazer frente à onda de criminalidade.
A ficha corrida de Boluarte inclui a autorização para que o ditador Fujimori deixasse o cárcere no final de 2023 e a anistia que concedeu aos militares que cometeram violações dos direitos humanos entre 1980 e 2000. E o convite ao palácio de Juan Rivero Lago, ex-chefe do serviço de Inteligência do exército, condenado a 25 anos de prisão pelo massacre de Barrios Altos.
Uma investigação da Anistia Internacional sobre as execuções extrajudiciais durante a repressão aos protestos de 2022 revelou que à arbitrariedade em geral se somou o racismo, já que embora os departamentos com maior população indígena representem 13% do país, eles concentraram 80% das mortes de manifestantes.
Na quarta-feira (8), talvez já sentindo para onde estava soprando o vento Boluarte tentou jogar a culpa pela alta da criminalidade nos “imigrantes ilegais”. “Esse crime vem se formando há décadas e foi fortalecido pela imigração ilegal, que governos anteriores não conseguiram combater”, disse ela durante uma cerimônia militar.
Pelos números oficiais, 6.041 pessoas foram assassinadas entre janeiro e meados de agosto, o pior resultado para esse período desde 2017. Entre janeiro e julho foram 15.989 denúncias de extorsão por gangues. Um aumento de 28% em relação ao mesmo período de 2024.
Provavelmente, a única coisa que vale menção do governo deposto é a inauguração do gigantesco porto de Chancay, que cria a rota comercial mais direta entre a Ásia e a América do Sul, integra várias economias da região e é um dos principais projetos da iniciativa chinesa “Nova Rota da Seda”. Inauguração na qual esteve presente o presidente Xi Jinping.
Dado o frenesi de Trump e seus chegados, como Marco Rúbio, sobre o renascimento da Doutrina Monroe, a que faz da América Latina quintal dos gringos, é de se perguntar se foi mesmo a alta da criminalidade que teve esse papel todo na deposição e qual governo sairá das eleições de abril.