Voluntariamente renunciou ao direito de tratamento diferenciado que detém desde 2001, em prol do multilateralismo e na condição de “um grande e responsável país em desenvolvimento”
Enquanto o tarifaço e sanções de Trump desorganizam a economia e o comércio mundiais, a China anunciou na semana passada que voluntariamente decidiu renunciar ao tratamento diferenciado a que os países em desenvolvimento têm direito na Organização Mundial do Comércio (OMC), gesto que reflete a disposição chinesa de salvaguardar o sistema multilateral de comércio, contribuir para a reforma da OMC e de seu papel de estabilizador-chave do crescimento global.
A decisão foi comunicada pelo primeiro-ministro Li Qiang, durante uma reunião de alto nível à margem do debate geral da 80ª sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU).
“Como um grande país em desenvolvimento responsável, a China não buscará um novo tratamento especial e diferenciado nas negociações atuais e futuras da Organização Mundial do Comércio (OMC)”, disse o dirigente, segundo a agência de notícias Xinhua.
Os Acordos da OMC contêm disposições que conferem aos países em desenvolvimento direitos especiais, o chamado “tratamento especial e diferenciado”. Estas disposições incluem prazos mais longos para a aplicação de acordos e compromissos ou medidas destinadas a aumentar as oportunidades comerciais para os países em desenvolvimento. Foi nessa condição que a China ingressou na OMC em 2001.
Agora, ao mesmo tempo em que se tornou a “fábrica do mundo”, líder no comércio internacional e na inovação tecnológica e maior economia do mundo por paridade de poder de compra, a China, com seu 1,4 bilhão de habitantes, ainda tem um PIB per capita significativamente menor do que o das nações desenvolvidas.
Processo em que tirou 800 milhões de pessoas da pobreza extrema, de plano qüinqüenal em plano qüinqüenal, elevou para 31,8% sua parcela na manufatura global, mais que a produção combinada dos EUA, Japão, Alemanha e Índia, e se tornou líder na inovação. E sempre, desde a histórica Conferência de Bandung, símbolo da Maioria Global.
“Este é um momento crucial para a OMC”, reagiu a diretora-geral da Organização, Ngozi Okonjo-Iweala. “A decisão da China reflete o compromisso com um sistema de comércio global mais equilibrado e equitativo”, ela afirmou em comunicado.
“Uma notícia importante para a reforma da OMC”, acrescentou Okonjo-Iweala, dizendo que “este é o culminar de muitos anos de trabalho árduo e quero aplaudir a liderança da China nesta questão”.
Um anúncio ainda mais relevante por ocorrer em um momento em que o unilateralismo está em ascensão, a cooperação internacional para o desenvolvimento foi severamente cerceada e o ímpeto do crescimento econômico global enfraqueceu.
A medida é um passo importante na defesa firme do sistema de comércio multilateral, disse o representante de comércio internacional da China e vice-ministro do Comércio (MOFCOM), Li Chenggang, assinalando ainda o avanço ativo da Inisiativa de Desenvolvimento Global (GDI) e da Iniciativa de Governança Global (GGI), iniciativas chinesas em favor do desenvolvimento e de um futuro compartilhado para a Humanidade.
Han Yong, diretor-geral do Departamento de Assuntos da OMC do MOFCOM, enfatizou que a China continuará a abordar as negociações atuais e futuras da OMC com três princípios “inalterados”, que são especificamente seu status como membro em desenvolvimento, sua determinação em salvaguardar os direitos e interesses legítimos dos membros em desenvolvimento e seu compromisso de promover a liberalização e facilitação do comércio e investimento globais.
O porta-voz do Ministério das Relações Exteriores, Guo Jiakun, observou no mesmo dia que a decisão não é apenas um passo proativo dado pela China no apoio ao sistema multilateral de comércio, mas também um passo importante no esforço da China de implementar o GDI e o GGI. A China continuará comprometida com o desenvolvimento de alta qualidade e a abertura de alto padrão … e continuará a defender o sistema de comércio multilateral, a participar da reforma da OMC, disse Guo.
Em meio a desafios, o primeiro-ministro chinês pediu a criação de um ambiente de desenvolvimento internacional estável e aberto, salvaguardando conjuntamente o sistema internacional com a ONU em seu núcleo, aderindo ao multilateralismo e ao livre comércio e se esforçando para construir uma economia mundial aberta, segundo a Xinhua.
REFORMA DA OMC COM CENTRO NO DESENVOLVIMENTO
A decisão da China fornecerá forte apoio à reforma da OMC e injetará um impulso crítico nas negociações multilaterais. “Embora a própria China não busque um novo tratamento desse tipo, ela apoia firmemente o direito de outros países em desenvolvimento a esse tratamento, vendo-o como um princípio vital para um sistema comercial inclusivo e equitativo”, disse Cui.
Como disse ao Global Times o economista e professor Cui Fan, “isso não alterará o status de país em desenvolvimento da China, que é afirmado tanto pelo mecanismo de autodesignação da OMC quanto por seu protocolo de adesão”. Também não afeta os direitos do país como membro em desenvolvimento em outras estruturas internacionais, como o Banco Mundial e o Acordo de Paris, ele acrescentou.
Visto por outro ângulo, também é um aceno aos europeus, sob intensa pressão do governo Trump para se sujeitarem em toda linha ao tarifaço.
Yang Shuiqing, pesquisador associado do Instituto de Estudos Americanos da Academia Chinesa de Ciências Sociais, disse ao Global Times que a postura proativa da China transmite uma mensagem clara: o país não é apenas um beneficiário da globalização, mas também um defensor e construtor do sistema multilateral de comércio, participando e ajudando a moldar a formulação de novas regras com uma abordagem mais igualitária e construtiva.
MAIORES RESPONSABILIDADES
Nos últimos anos, registrou o GT, a China tomou medidas concretas para assumir maiores responsabilidades internacionais na defesa do comércio global e da estabilidade.
A China concedeu tratamento tarifário zero em 100% das linhas de produtos a todos os Países Menos Desenvolvidos (LDCs) que têm relações diplomáticas com ela, a partir de 1º de dezembro de 2024. Esse movimento histórico torna a China o primeiro grande país em desenvolvimento e a grande economia global a implementar tal política, de acordo com o Ministério das Finanças.
A China também anunciou em junho deste ano a implementação de uma política completa de tarifa zero para 53 nações africanas com as quais tem laços diplomáticos, mostraram dados do Ministério das Relações Exteriores, seguidas por medidas adicionais de facilitação do comércio especificamente para os países menos desenvolvidos africanos.
TOTAL IGUALDADE DE CONDIÇÕES NORMATIVAS
“A decisão demonstra que a China se sente à vontade para competir com os países desenvolvidos em total igualdade de condições normativas”, disse o professor Evandro Menezes de Castro, em entrevista a Priscila Lobregatte, no Vermelho. Ele observou, ainda, que os EUA vêm cometendo “erros atrás de erros” que “abrem fissuras em sua hegemonia”, enquanto a Chinatem “ocupado esse espaço e acelerado esse processo”.
Ele destacou a Política de Circulação Dupla do presidente Xi Jinping, que consiste em priorizar o mercado interno, mas reforçando ao mesmo tempo a circulação internacional. “O governo chinês começou a desenvolver mais o mercado e a produção domésticos para reduzir sua dependência internacional, sobretudo em setores sensíveis”.
Para Carvalho, a decisão na OMC é “extremamente ousada e surpreendente” e um “passo muito significativo. Arrisco dizer que a China antecipou, em 25 anos, o que ela estava planejando para 2049”, diz.
Ano em que será comemorado o centenário de fundação da República Popular da China. “E, até lá, o governo espera cumprir a sua ‘segunda meta centenária’: transformar o país em uma nação socialista moderna, próspera, forte, democrática, civilizada e harmoniosa, com elevado desenvolvimento econômico, social e cultural, além de consolidar sua posição como uma grande potência global em todos os aspectos”.