Segundo médico sanitarista, Eduardo Costa, contrato sobre vacina fere a soberania nacional da área de biológicos
O médico sanitarista, Eduardo Costa, participou da “Roda de Conversa” conduzida pelo jornalista Osvaldo Bertolino, na última sexta-feira (30). No encontro virtual ele denunciou os prejuízos ao Brasil da proposta de privatização das unidades de básicas de Saúde e ainda criticou o acordo firmado pelo governo Bolsonaro com o laboratório inglês AstraZeneca para produção de vacina contra a Covid-19.
“Essa situação de estar “in love” com o Trump , é ridícula, envergonha a gente fora do Brasil. É um governo de exemplo, exemplo no mundo de falta de senso, e a gente acha que isso tem que ser respeitado”, destacou Eduardo, que já foi diretor da Fiocruz e secretário da Saúde do Rio de Janeiro no governo de Leonel Brizola.
O decreto de Bolsonaro para privatizar as unidades básicas de saúde, em meio à pandemia, revogado após a indignação da população, foi criticado por Eduardo Costa. Ao ser questionado pelos jornalistas Luiz Manfredini e Jorge Gregory, ele lembrou quando foi Secretário de Saúde do governo Brizola e também a implementação do SUS para ressaltar sua visão de que o modelo de saúde deve ser fundamentalmente estatal.
Acordo doloso
“A minha visão política é a seguinte, esse governo é impossível a gente lidar com ele. A história, por exemplo, que eles jogaram, com riscos de longo prazo, na Fiocruz, dentro desse acordo com a AstraZeneca é uma coisa dolosa, se não eu acho culposa, para a soberania nacional da área de biológicos”, apontou Eduardo Costa.
“Eles estão minando o Brasil por vários campos. Na verdade é uma desconstrução quase no Brasil que a gente levou algum tempo a fazer, de assentamento de algumas questões democráticas, ter uma percepção mais clara do que representa o nacionalismo, que é a luta contra o imperialismo. Não, ele declara que é um nacionalista entreguista, a gente pode entender uma coisa dessas? Pois essas são as coisas que o Bolsonaro trás. Ele trás a bagunça, a falta de compromisso”, afirmou Eduardo Costa.
“Essa situação de estar “in love” com o Trump , é ridícula, envergonha a gente fora do Brasil. É um governo de exemplo, exemplo no mundo de falta de senso, e a gente acha que isso tem que ser respeitado. O respeito a gente dá para quem merece, a gente pode ter que engolir isso daí, foi uma armação terrível que levou Bolsonaro ao governo, uma verdadeira armação de elites que levaram a essa situação. A gente tem que fazer e tratar com seriedade no sentido de ver ao máximo que pode diminuir os prejuízos para o Brasil e para a população brasileira.
Eduardo Costa aponta que “é o nosso dever tratar as coisas com seriedade. Bolsonaro é imoral, ele é nefasto, ele produz um ambiente de negócios cada dia mais por baixo, mais rasteiro”.
ASTRAZENECA
Segundo o médico sanitarista, o contrato firmado por Bolsonaro com o laboratório inglês mostra “o horror que as multinacionais fazem em um país como o nosso”
“Diferentemente do acordo do Butantan. Aliás, foi assim: O Butantan anunciou que estava fazendo um com a China e deu uma correria e de repente estourou. Em menos de um mês depois desse contrato com a chamada Oxford, que é uma maneira de fazer uma limpeza, digamos, científica no assunto pelo fato que o antígeno foi desenvolvido em Oxford, e no geral é assim, os antígenos são desenvolvidos nas universidades depois que vão para o processo de industrialização de uma empresa que pode ser multinacional ou nacional. Lá eles fizeram com a AstraZeneca”, explicou.
Ele explica que embora o preço seja razoável para as primeiras 100 milhões de doses – 3,19 dólares por dose, não há segurança quanto ao valor das demais, “sob risco e sem direito a ressarcimento”, além de “proibir vender, uma vez que fica paga royalties e também impede de vender para terceiros, vender pra fora do Brasil. Exportar”.
“A Fiocruz teria direito, nesse preço, sem lucro, até julho de 2021. Depois passa a ser propriedade da AstraZeneca. Isso tudo está no contrato”, afirmou.
SEGURANÇA
Além dos problemas de contrato, Eduardo Costa também criticou a qualidade do imunizante da AstraZeneca. “Esta vacina tem sido a que tem dado mais problema”. “E se a gente olhar o estudo inicial de fase 1 e 2 que essa vacina teve, e eles ainda criticam a vacina da China por exemplo, a inglesa é muito menos organizada”.
Segundo Eduardo Costa a vacina que Bolsonaro está apostando “é muito mais criticável, até mesmo que a da Rússia”. “A vacina da China é mais segura, isso olhando pelos dados que a gente tem, essa que está no Brasil”, salientou o médico epidemiologista.
Eduardo Costa ainda critica o laboratório por criar falsas afirmações sobre o imunizante na tentativa de ganhar a dianteira na corrida pela vacina. “Eles estão tentando reinventar coisas, lançam isso como uma maneira de se manter. Não tem nenhum estudo novo que mostra que ela dá mais proteção nos idosos, são todas as coisas iniciais. Há um jogo de multinacional que está espalhando aqui dentro do Brasil a notícia, e a mais perturbadora: que escolheriam 90 jovens ingleses para dar uma dose. E aí injetar uma infecção provocada em todos eles para ver se a vacina é boa. Ou seja, uma experiência de manobra organizada desse jeito não cabe no mundo de hoje. Estão chegando a esse ponto para tentarem ganhar frente”.
A vacina chinesa tem se mostrado mais segura que a da AstraZeneca?
O epidemiologista explica que a vacina chinesa é diferente da inglesa por ser “do tipo de antígeno, que é tradicionalmente mais conhecido e seguro, quase todas as vacinas utilizam isso. E elas realmente às vezes não são tão potentes. Mas se toma duas ou três doses. Difteria, coqueluxe, raiva… São várias vacinas assim”, explicou.
“As vacinas deste tipo, o que elas têm de melhor é a segurança, especialmente para os mais velhos. Ela pode repetir a dose, você não precisa ter um grande espaçamento de tempo entre um e outro sem provocar reações indesejadas”.
Eduardo Costa criticou a polarização que Bolsonaro criou em cima do imunizante e destacou que o importante é a segurança e eficácia da vacina e não de onde ela vem. “Então essas questões, que são as questões de fundo não vem à tona e eu não posso tratar isso politicamente, porque essa é do governo de São Paulo e a outra é do governo do Brasil, eu não posso fazer isso”.
Para ele, “essa divisão mundial agora, que está sendo provocada pelo trumpismo de querer ter um corte claro de um lado e de outro, ela está provocando várias outras que vão negociar com a AstraZeneca porque ela tem uma posição forte na América Latina.
Segundo o médico, “fora do Brasil eles (AstraZeneca) foram no México, fizeram o acordo com vários países que aderiram, latino-americanos, para receber essa mesma vacina sem dar o dinheiro na frente”.
“Portanto, talvez com um preço um pouco mais alto, não sabemos todos os detalhes, para fornecer para o resto da América Latina. Quer dizer, uma centralização direta que nossas intenções de integração latino-americanas também são sabotadas, pelos interesses da multinacionais e desse governo, que não se importa com isso”, salientou.
Ainda sobre a disputa, corrida, pela vacina criada pelos ingleses e salientada por Bolsonaro, Eduardo Costa aponta o quanto isso é contra producente para o resultado que se chegará com as pesquisas de todas as vacinas.
“Quer dizer, o mundo inteiro deu dinheiro, através de fundos e etc., desenvolvendo vacinas. E isso permitiu que tantas chegassem até aqui. Muito bem, têm várias que a gente podia dizer que poderiam ser testadas. Em vez de fazer um teste do Butantan, um teste na outras, por exemplo, a minimização de gastos seria fazer um teste que contém uma das vacinas, a outra vacina, e um grupo de placebos, poderia ter três ou quatro. Os resultados seriam fantásticos, porque não dariam só as respostas sobre a proteção, mas quais as que protegem e em melhores condições. Do jeito que está sendo feito nem isso pode ser feito depois. Ela está ai, a sanha das rapinas de sempre das múltis que estão nesse campo”.
Questionado se a polêmica toda em torno das vacinas não acaba estimulando esse movimento de reação às vacinas, como o que está acontecendo com a CoronaVac (chinesa), em que pessoas estão sendo tangidas e influenciados pela idealização posta por Bolsonaro, Eduardo Costa afirmou que a posição que a China está tomando, em seus discursos, em combate ao vírus e no desenvolvimento da vacina é muito boa”.
“A mesma coisa que a China fez na Assembleia da ONU, é o mesmo coerente discurso, ela assegura que, independente de serem iniciativas privadas ou não, a China vai fornecer vacina a quem mais precisa, vai fazer pelo povo. A China atualmente não tem só a CoronaVac, tem outras em produção, com resultados positivos que provavelmente também estarão disponíveis”.
Vacinação coletiva
Sobre a necessidade de uma ampla vacinação, Eduardo Costa explica que é preciso uma vacinação coletiva “para atingir a imunidade populacional”. Ele aponta que em algumas doenças, a transmissão é muito alta, mas “no caso do Covid-19, a transmissão não é tão rápida. Para conseguirmos atingir a população com a vacina, precisamos ter um convencimento e para isso, nós temos que ter uma autoridade respeitada, e não é o Bolsonaro, nem o ministro dele. Esse é o nosso problema, nós não temos uma autoridade da saúde respeitada”, salientou.
Perguntado se o Brasil não está negligenciando e deixando de desenvolver seu potencial científico por não desenvolver uma vacina no Brasil, Eduardo Costa disse que sim.
“O problema do nosso país subdesenvolvido é que temos relações com a produção e tecnologia nas universidades e parcerias com grandes centros pelo mundo, só que em nossa volta, com as condições, a direção do país e os negócios não permitem que tenhamos o potencial de desenvolvimento da nossa ciência. Porque a visão que se tem é que é mais fácil se importar, trazer lá de fora a tecnologia, do que propriamente desenvolvê-la por aqui”, afirmou.
“O país investindo na tecnologia, no desenvolvimento interno, é capaz de produzir uma indústria forte, com exportação e fortalecimento de sua tecnologia. Agora no Brasil, nós não temos isso dentro do SUS, o sistema que temos tem muito boa intenção em muitas coisas, mas não cuidou de muitas coisas. Foi muito corporativo demais. Era para se integrar num projeto nacional de desenvolvimento. Por não fazê-lo, estamos tendo muitas dificuldades”, afirmou.
“Nós temos lutado para que possamos investir na indústria de saúde e nas produções pelas universidades e Fiocruz para mensurar um desenvolvimento na pasta. Nós não conseguimos desenvolver e promover a tecnologia de dentro, isso é ainda mais complexo, nós fazemos acordo para absorver tecnologia, como foi a vacina chinesa e a de Oxford, mas ainda não temos um trato, um caminho pra dizer que o nosso conteúdo, o nosso desenvolvimento, a nossa tecnologia, nós iremos avançar e aplicar nos rumos da saúde e mensurar um país forte e perspicaz com nossas tecnologias”, disse Eduardo Costa.
“Nós não podemos deixar que os desmandos de Bolsonaro, que o mercado e quem é contra a ciência, tome conta e impeça nosso desenvolvimento em saúde. Precisamos alavancar e investir ainda mais em nossas universidades, em nossa pesquisa, em nossa tecnologia, em nosso desenvolvimento”, salientou o médico sanitarista.
Precisamos defender o SUS
Eduardo apontou diferenças entre o Serviço Nacional da Saúde (NHS) na Inglaterra e Sistema Único de Saúde (SUS) brasileiro. “Um grande engano em pensar em comparar. Na Inglaterra, o estado que exerce as funções. No caso brasileiro o Sistema Nacional de Saúde financia”.
“O estado brasileiro financia atividades que são públicas e privadas, estatais e municipais, federais etc. Antes, era um setor de saúde fraquíssimo e ele foi todo recuperado onde o que importa é o financiamento público, portanto ele é gratuito”, explicou Eduardo para destacar a necessidade de defesa do SUS.
O médico lembrou que o Neoliberalismo, nos anos 90, começou a procurar formas de cortar gastos e viu na saúde pública uma oportunidade de privatização, o que tem como próximo passo a desnacionalização, ao ponto de agora, “área de laboratórios do Brasil, está quase toda desnacionalizada. Depois os planos de saúde também foram abertos para o capital estrangeiro e a exploração dos serviços hospitalares do Brasil”.
“O último capítulo dessa história aparece agora, mas ele não é de hoje. Eu acho que nós temos que fazer uma frente todo tempo muito forte para impedir. Quais são nossos problemas de atenção básica já? É terceirização, ela já existe, a privatização, portanto, já existe”.
Eduardo Costa explica que as organizações sociais as “OSs” são tidas como uma “terceirização não lucrativa, pelo menos, do ponto de vista formal”, mas “acontece que os contratos, essa manipulação de contratos dá muitos problemas, especialmente trabalho temporário do pessoal de saúde. E o trabalho temporário só nos dá problemas, não tem uma carreira para ter aperfeiçoamento a longo prazo”.
“Agora na pandemia, por exemplo, um dos elementos importantes de disseminação da doença foi o pessoal da saúde. Especialmente o pessoal da Enfermagem trabalha em mais de um local, são plantonistas, às vezes tem até um cargo público, mas parcial. E mesmo que não seja parcial tem direito a ter o outro privado, porque os salários são muito baixos. Vão trabalhar em três, quatro hospitais com condições precárias muito desses. Principalmente no início da pandemia não tinha nem máscara para dar para as pessoas que trabalhavam nos hospitais. E certamente disseminou”, explicou.
“Hoje nós estamos vendo isso, então eu queria dizer o seguinte, temos que ter uma clareza que precisa ter coisas mais profundas para fortalecer o SUS. Mas, a cada momento a gente tenta resistir, nós tentamos resistir num quadro que não é favorável, porque esse ambiente neoliberal todo, ele não deixa nada impune que possa dar lucro, ele vai em cima e depois abandona”.
Eduardo Costa ressalta que após esse processo de privatização de órgãos, instituições, empresas, o comum é “o retorno ao estado com amplos prejuízos”.
O ministro da Economia Paulo Guedes “fica contente porque alguma coisa entra disso, ou daquilo, dos contratos iniciais. Só que chega um momento que as coisas se complicam, e o setor se manda e entrega pro estado se virar com serviços essenciais. Eu sou de uma linha de que serviços essenciais devem ser estatais”.
“Aqui essa terceirização funciona para arrancar dinheiro. Nós temos um problema e a gente diz que defende esse problema, só que a gente precisa evidentemente de uma saúde pública. Tem que entender que talvez se mexer na estrutura, no marco que é a lei 8080, que é de 90, porque a Constituição dá os instrumentos que poderia ser feito isso por uma lei. Essa lei fundadora, que menos gente conhece, é que ela não foi a gente, repetiu a constituição e deixou tudo aberto”.
“Eu só quero dizer o seguinte, obviamente temos que resistir a isso porque vai ser, no segundo passo, a desnacionalização, que sempre se acompanha de precarização do trabalho da saúde. É fundamental ser contra, é fundamental impedir isso como representante de um agravamento na verdade, de um quadro já problemático que nós temos”, afirmou.
IDEOLOGIA
Questionado se o decreto de privatização das unidades de atenção básica à saúde foi uma iniciativa do ministro da Economia, Eduardo Costa foi categórico: “Isso ai foi o Guedes, é claro”.
“O Guedes, ele é realmente um agente de um tipo de política que quer diminuir gastos. Mas, essa diminuição de gastos públicos, ela é teórica. Quando ele faz isso para diminuir o gasto público, eles sabem inclusive que o que interessa para eles, o resto ele passa para os estados, seria só o gasto federal. Mas na verdade essa atenção básica a maior parte ela é financiada em grande parte, tem o auxílio federal é claro, mas é muito sustentada pelos estados e municípios”.
“Isso quer dizer que na verdade que quer mexer nisso mais por razões ideológicas. E talvez para contentar o pessoal do seguro saúde, que gostaria de absorver talvez essas atividades. Porque do ponto de vista assim que eu penso fiscal, e seria o porquê de ele estar mexendo, não teria uma repercussão tão grande”, apontou.
Segundo o médico sanitarista, “os gastos federais que são elevados são os hospitais de alta complexidade. E são essas atividades que são muito custosas mesmo. Eles estão conseguindo manter isso com muito poucos servidores públicos, especialmente da saúde, que tinha que ser”.
“Se for pegar comparativamente com a Inglaterra, por exemplo, tem mais de 1 milhão de trabalhadores diretos do NHS, num país que tem um quarto da população brasileira. E aqui se a gente dissesse que teria 4 milhões de servidores na saúde, bem pagos, os caras iam enlouquecer, mas é o que devia ter, para ter um sistema universal de boa qualidade”.