“É materialmente impossível alguém fazer uma pesquisa com 600 pessoas em três dias e ainda escrever o resultado”, criticou Jorge Venâncio em depoimento à CPI da Prevent Senior na Câmara dos Vereadores de São Paulo
O coordenador da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), Jorge Venâncio, disse nesta quinta-feira (21), em depoimento à CPI da Prevent Senior na Câmara de São Paulo que há indício de fraude científica em estudo sobre uso de hidroxicloroquina com azitromicina, para tratamento da doença, realizado pela operadora de saúde.
Jorge Venâncio detalhou, em seu depoimento, como a Conep atua de maneira independente e como se deu esse trabalho especificamente no caso da Prevent Senior.
A realização da pesquisa da Prevent foi aprovada pelo órgão no dia 14 de abril de 2020 e apenas três dias depois, em 17 de abril, foi publicado um preprint com seus resultados. “É materialmente impossível alguém fazer uma pesquisa com 600 pessoas em três dias e ainda escrever o resultado. É claro que a pesquisa já estava feita anteriormente”, afirmou o coordenador da Conep.
Diante disso, no dia 20 de abril o estudo foi suspenso e seus responsáveis foram convocados para prestarem esclarecimentos, em audiência realizada no dia 21 de abril. “Eles alegaram que isso tinha sido um equívoco, colocar o número desse estudo na publicação, o que é uma desculpa muito estranha. Eles disseram que seria um levantamento que eles teriam feito anteriormente e que não teria relação com a pesquisa, que a pesquisa que nós tínhamos aprovado ainda ia ser iniciada”, acrescentou.
“Nós não aceitamos as justificativas deles, e transformamos a suspensão em definitiva e fizemos uma representação ao Ministério Público Federal, que abriu um inquérito aqui em São Paulo”, disse Venâncio.
“É muito estranho você apresentar uma publicação de um estudo que eles alegam que era observacional, mas primeiro: estudos observacionais têm que passar no sistema CEP/Conep também. Não há nenhum motivo para um estudo observacional ser feito escondido, sem ser apreciado, em primeiro lugar. Segundo: você apresentar um outro estudo, com número de cadastro do estudo que tinha sido aprovado três dias antes. Isso é um indício de fraude científica muito forte”, ressaltou Godoy. “Então nós não aceitamos as justificativas deles e transformamos a suspensão em suspensão definitiva. E fizemos uma representação no Ministério Público Federal, que abriu um inquérito aqui em São Paulo”, acrescentou.
“O fato de se pegar dados que não tiveram apreciação e apresentar como um estudo aprovado publicamente é uma tentativa de ludibriar as pessoas, que inclusive iriam apreciar se o estudo merecia publicação ou não. Isso ser um equívoco é uma coisa, me parece, muito improvável, é uma coincidência muito estranha”, reforçou o coordenador do Conep.
O coordenador contou que, desde o começo da pandemia, foram abertos apenas três processos no MPF pelo Conselho de Ética. Este do estudo da Prevent foi o primeiro.
O segundo foi a utilização de cloroquina inalável em Manaus (AM) – realizada sem autorização de nenhum órgão competente -, e o terceiro caso foi a pesquisa, inicialmente autorizada a ser realizada em Brasília (DF), mas que foi levada para outros lugares (como Amazonas, Rio Grande do Sul e Santa Catarina), e causou 200 mortes.
Jorge Venâncio também afirmou que o Conep chegou a receber uma denúncia anônima de uso de ozonioterapia dentro da Prevent Senior nos últimos meses. “O prontuário que nos foi encaminhado dizia que era um uso compasssivo, que não é pesquisa. É atendimento. Então, era um assunto que não era da nossa alçada e encaminhamos à denúncia aos órgãos competentes do Conselho Federal de Medicina, que nos informou que remeteu o caso para o Conselho Regional de Medicina aqui de São Paulo para abrir investigação sobre o caso”.
Advogada denuncia “altas celestiais” nos hospitais da operadora
Ainda na mesma sessão, a advogada Bruna Morato, que representa os médicos da Prevent Senior que elaboram um dossiê de denúncias contra a operadora de saúde, trouxe elementos que corroboram com os levantamentos trazidos por Vênancio à CPI.
Ela também citou o estudo já mencionado acima sobre o uso de hidroxicloroquina e azitromicina para o tratamento da Covid-19 – segundo Bruna, ocorreram 11 mortes decorrentes dessa pesquisa.
“Nós temos uma paciente, 79 anos, teve Covid-19, tomou hidroxicloroquina e faleceu de Covid-19, mas uma das causas também apontadas na certidão de óbito é insuficiência cardíaca crônica. Ou seja, era uma paciente que não tinha indicação para utilização desse medicamento, utilizou o medicamento e faleceu. Ela não foi inclusa nos resultados da pesquisa. Importante observar também que o registro de óbito dela é no dia 12/4 de 2020”, disse.
Situação semelhante ocorreu com outros pacientes elencados na pesquisa em questão, que também tinham alguma doença cardíaca – e cuja prescrição de hidroxicloroquina não era indicada -, mas fizeram uso do medicamento, faleceram e não foram contabilizados nos resultados. “Então, esses casos de pacientes que utilizaram o medicamento precisariam ser considerados. E eu acho assombroso e espantoso o fato deles terem sido omitidos. Por que? Considerando a data do estudo e a data das publicações, esses óbitos, por óbvio, deveriam fazer parte das informações que foram divulgadas pela própria instituição”, comentou a advogada.
Ela ainda citou outros óbitos de pacientes que não tomaram hidroxicloroquina, mas foram considerados no estudo. “Nós temos o caso do senhor Rogério. Por que eu acho importante o caso dele? Porque ele participou da pesquisa, mas ele não tinha Covid-19”, declarou, elencando outros casos similares.
“Essas informações são muito ilustrativas. Por quê? Apesar de todas as denúncias terem sido feitas com base no conjunto probatório, lá no Senado eu evitei citar detalhes muito específicos, até para não tornar o processo muito cansativo. Mas o que eu acho importante dizer aos senhores vereadores é que existe prova de absolutamente tudo. Então, não existe uma alegação de óbito, existe a comprovação desses óbitos”, relatou Bruna.
“Existe a causa mortis, existe a tabela do estudo, existe o estudo em si, o preprint publicado e, pasmem, existe também um outro documento, disponibilizado pela própria rede Prevent Senior, em que eles deixam muito claro que eles confirmam o efeito benéfico da droga hidroxicloroquina associada ao antibiótico azitromicina. Esse material foi divulgado para toda a imprensa, e eu também disponibilizo a vocês. A conclusão do estudo é que não houve nenhum óbito no período da pesquisa desenvolvida. E se a gente for observar a data desse documento, esse documento tem data do dia 19 de abril. Ou seja, no momento em que ele foi feito, foi propositalmente ocultada todas essas mortes, notas que eu disponibilizei para vocês. Então, a ocultação é clara e ela está constatada”, argumentou.
A advogada trouxe outros pontos relevantes, como a utilização do medicamento flutamida. Em abril de 2020, a Prevent Senior adquiriu 21.400 comprimidos do remédio, em comparação aos 200 adquiridos no mês de março do mesmo ano. “A gente observa que, a partir do momento que é enviada aquela mensagem aos médicos, em que a partir daquele momento todo paciente internado tem que receber esse medicamento, tanto o médico não tinha autonomia que a empresa já tinha se preparado previamente para isso, fazendo a aquisição de 21.400 unidades desses comprimidos”, alegou a advogada.
“Então veja: se eu parto do princípio de que existe autonomia médica, então como a empresa prevê que esses médicos irão receitar essa quantidade, 100 vezes maior do que no mês anterior? Então é evidente que esse protocolo é um protocolo institucional e as provas com relação a isso também são muito concretas”, ressaltou, mostrando aos vereadores um exemplar do kit de medicamentos contra Covid-19 fornecido pela operadora aos médicos.
Além do que a Conep teve conhecimento, Bruna também forneceu detalhes de outros estudos realizados sem a aprovação ou conhecimento dos órgãos competentes. Segundo ela, esses estudos faziam utilização de diferentes medicamentos sem comprovação científica para a Covid-19, e até mesmo o uso de tratamentos experimentais.
A Prevent tinha um tratamento interno chamado “terapia de nanopartículas”. De acordo com a advogada, a terapia não tinha autorização dos órgãos federais e foi usada na mãe do empresário Luciano Hang, Regina Hang, e no médico Anthony Wong.Além dessa, uma outra terapia não autorizada era usada pela operadora. Um estudo, com células-tronco que eram aplicadas no pulmão dos pacientes.
“Eles inventaram, entre março e abril de 2020, uma terapia que se chama ‘terapia de nanopartículas’, que é o enriquecimento de um medicamento que chama metatrexato para tratamento específico da Covid. Inclusive, tenho termos de consentimento desse estudo, que eles diziam ser regulamentado, mas não está. É um termo inclusive incluído no prontuário do sr. Anthony Wong, que ficou sujeito a essa terapia, assim como a sra. Regina Hang. Nenhuma das duas [terapias] regularizada ou regulamentada”.
“E também, entre março de 2020 e abril de 2020, eles divulgaram a informação que estariam aplicando células-tronco para tratamento da Covid-19 no pulmão das pessoas. Isso aconteceu no caso da sra. Mariazinha, mãe dos proprietários da empresa, Eduardo e Fernando Parrillo. O dr. Pedro Batista concede uma entrevista, dizendo que a dona Mariazinha foi submetida a aplicação de células tronco no pulmão. Não existe essa autorização. Não existe esse protocolo.”
Kit Covid
Segundo a advogada, a Prevent Senior investiu mais de R$ 5 milhões na compra de medicamentos do chamado “kit covid” – conjunto de drogas sem eficácia comprovada para tratamento de covid-19 -, ao longo de 2020 e 2021.
Ela contou também que havia um protocolo institucional para a distribuição do kit dentro dos hospitais da rede.
“Os médicos eles eram controlados por parâmetros. então, existia um controle em relação a quantos kits eram entregues por dia naquela unidade e o médico que não batesse as metas de kits entregues ele era punido”, declarou Bruna Morato.
Outro ponto destacado pela advogada foi o tratamento paliativo adotado nas unidades da Prevent Senior. “Quando os diretores clínicos e outros médicos que me procuraram para fazer a denúncia disseram que eles estavam aplicando o tratamento paliativo em pacientes com quadro agudo, e não mais quadro crônico, ou seja, pacientes cuja a possibilidade de reversão, como no caso do senhor Tadeu e tantos outros que já foram à mídia falar, eram possíveis, eu entendi o quão grave era situação”, relatou.
“As famílias no geral, assim como eu, quando a gente escuta uma orientação de um profissional médico sobre o tratamento que é mais adequado ao seu familiar, a tendência natural que nós temos é de aceitar aquele tratamento como sendo mais adequado. E muitas famílias provavelmente perderam seus entes queridos porque médicos disseram que não era mais viável investir naquele paciente. Contudo, paciente com Covid-19 é um paciente que, em regra, tem um quadro agudo, independente da idade. Não é causa ou motivo suficiente justificar que um paciente está idoso e, porque ele está idoso, ele deve ser encaminhado para o tratamento paliativo, para que não se invista condutas necessárias para a sobrevida desse paciente”, completou a advogada.
Em sua fala, ela buscou esclarecer que o tratamento paliativo não abrevia a morte de alguém, ou utiliza condutas antiéticas. “Ocorre que o método paliativo adotado pela operadora de saúde, segundo relatos, segundo prontuários que foram entregues, ele não condiz os parâmetros éticos indicados pela própria Sociedade Brasileira de Tratamento Paliativo. Então, é nítida a conduta antiética do médico que orienta uma família que assine um termo e que acompanhe esse paciente, que leve esse paciente ao tratamento paliativo, sendo que o quadro desse paciente não é um quadro crônico, é um quadro agudo. É deixar de investir em um paciente só porque vai ser caro, ou porque vai ser difícil, ou porque a viabilidade pode ser pequena, mas ela existe, é você deixar de dar a chance daquela pessoa sobreviver. E isso é muito grave”, acrescentando que houve famílias que não puderam optar por outras formas de tratamento, uma vez que não havia clareza nas informações repassadas pela Prevent Senior.
Crueldade
A advogada reafirmou à CPI que a Prevent usava o termo “alta celestial” para pacientes que estivessem internados por muito tempo ou que morriam por causa da Covid-19, dentro da política do que ela chama de “fazer rodar os leitos” de UTI dentro da operadora de saúde.
“Quando havia necessidade de girar os leitos ou de abrir vaga existia uma ordem da direção pra uma alta que eles denominavam como alta celestial. Ou seja, deixar que o paciente evoluísse pra óbito. Essa informação chegou recentemente. Eu disponibilizei essa informação protegendo a pessoa que deu a informação e foi relatado também ao Ministério Público”, declarou Morato.
Outra expressão que era usada era “óbito também é alta”, para reafirmar a necessidade de liberação dos leitos para outros pacientes que necessitavam de tratamento.
CPI da Prevent Na Câmara
Instalada no último 10 de outubro, a CPI busca analisar e investigar a atuação da Prevent Senior na capital paulista com a finalidade de enfrentar a Covid-19, como a possível subnotificação do número de casos de contaminação e de óbitos por parte da operadora de saúde.
Uma das suspeitas da Comissão é de que, para diminuir a quantidade de registros, a Prevent Senior teria agido para que pacientes com Covid-19 não tivessem a doença anotada em seus prontuários. Nos casos de morte, a informação também não constaria dos atestados de óbito.
Veja a íntegra da sessão da CPI: