A procuradora da Corte Penal Internacional com sede em Haia, expediu, em 20 de dezembro, despacho aos juízes da CPI solicitando abertura de inquérito sobre os crimes de guerra cometidos por Israel nos territórios palestinos sob cerco e ocupação. No dia 24, o escritor e analista político judeu argentino, residente em Israel, Daniel Kupervaser, escreveu um artigo em que trata do assunto que pegou o governo israelense de surpresa e, nos primeiros momentos, capaz apenas de respostas evasivas, que não entram no mérito dos graves questionamentos colocados pela Corte Penal. Entre suas considerações, destaco o alerta de que o expansionismo desenfreado e arrogante, desafiando o mundo inteiro e com base apenas no apoio emprestado por Trump, Netanyahu provoca “aversão a Israel, aos judeus e ao judaísmo”. Segue o artigo:
DANIEL KUPERVASER*
Fatou Bensouda, fiscal da Corte Penal Internacional (CPI), converteu-se na responsável por acordar judeus [ou pelo menos grande parte deles] de seu prolongado sonho dentro do qual se poderia dominar eterna e militarmente os territórios conquistados na guerra de 1967, à medida em que se os coloniza com população judia. Em uma declaração ao à Corte Superior de Haia, esta graduada funcionária solicitou autorização para iniciar uma investigação criminal, onde menciona que “há indícios razoáveis para proceder a uma investigação sobre a situação na Palestina”, para agregar posteriormente: “Estou convencida de que foram cometidos ou estão sendo cometidos crimes de guerra na Cisjordânia, Gaza e Jerusalém Leste”. Os juízes deverão pronunciar-se em 120 dias, sobretudo com referência à competência territorial, temática ainda não definida claramente.
O anúncio, ainda que não seja surpresa para os que se atualizam dos acontecimentos importantes da diplomacia internacional, comoveu amplos setores da sociedade israelense. Nas palavras do conhecido periodista Barak Ravid, “a simples possibilidade de que os juízes autorizem a abertura da investigação solicitada pela procuradora, significa um terremoto diplomático que poderia posicionar a Israel frente a um tsunami político e judicial, incluindo interrogatórios e ordens de captura contra altos funcionários do Estado” (Canal 13 TV, 20-12-19).
FATOU BENSOUDA, A PROCURADORA
Em acordo com o conhecido costume da diplomacia israelense, para as primeiras réplicas se recorre à conhecida vitimização e acusação de discriminação anti-israelense. Neste tom se escutaram expressões como “decisão injustificada”, “discriminação contra Israel frente a outras regiões com crimes de guerra que não são investigados”, “um dia negro para a justiça e a verdade”, “convertem a CPI em arma uma arma política contra Israel”. Alguns extremistas chegaram a insultar a Corte e sua procuradora com a desmoralizada e desgastada acusação de antissemitismo. Somente o procurador-geral, Mandelblit, se baseou no princípio da competência territorial como argumento que pode pela base o progresso futuro desta investigação.
Há a possibilidade de que a iniciativa de Fatou Bensouda acabe em nada, pois Israel dispõe de uma infraestrutura sofisticada de juízes, juristas, provas e argumentos que lhe permitirá, muito provavelmente, safar-se de toda acusação de crimes de guerra cometidos por israelenses em combates ou refregas armadas. Todas as tentativas dos últimos anos com este objetivo finalizaram em fracassos. Os exemplos do assalto ao barco turco Marmara com 9 mortos, e ainda o caso do cabo Francisco Soria, soldado espanhol nas forças da ONU que caiu abatido no Líbano pela artilharia israelense, são muito eloquentes. Com muita astúcia o Estado Judeu silenciou estas causas com dinheiro.
Mais ainda, a mesma procuradora Bensouda expediu expressamente parecer de que há sérios indícios de crimes de guerra cometidos pelo Hamas.
Se é assim, a que se deve tanta histeria e perturbação nacional israelense?
A comoção da maioria dos estratos da sociedade israelense, incluindo quase todos os partidos que representam setores judeus, se origina em que a procuradora da CPI não necessita de muitos esforços para dispor de provas irrefutáveis de que Israel cometeu dezenas de milhares de delitos de guerra desde 1967. Lhe é suficiente a construção de dezenas de cidades e colônias judaicas ao largo e comprido da Cisjordânia. O menor indício de possível dano a colônias israelenses na Cisjordânia, a classe privilegiada em todos os sentidos da sociedade israelense, é capaz de se converter na mecha que acende uma rebelião com consequências imprevisíveis.
A Cisjordânia é um território sob ocupação beligerante com o domínio de Israel como força ocupante desde 6 de junho de 1967. A esse respeito, a resolução 2334 do Conselho de Segurança da ONU de dezembro de 2016 obtida por unanimidade (com a única abstenção dos EUA) firmou claramente que a colonização judaica na Cisjordânia é uma ação que transgride princípios legais internacionalmente reconhecidos.
Israel assinou e revalidou sua assinatura na Quarta Convenção de Genebra de 1949 que regulamenta a proteção humanitária de civis, suas vidas, seus bens em territórios em conflito. No último parágrafo do artigo 49 se afiram o seguinte: “A potência ocupante não poderá efetuar a evacuação nem o traslado de uma parte de sua própria população civil ao território por ela ocupado”. Está é a base jurídica da ilegalidade de todas as colônias judaicas na Cisjordânia e a que inspirou a resolução do Conselho de Segurança e que poderia acarretar que altos funcionários israelenses, civis e militares, sejam inculpados e julgados por delitos de guerra.
Israel, como de costume, trata de escudar-se na excepcionalidade judaica reclamando que a Quarta Convenção de Genebra não tem vigência na Cisjordânia por tratar-se de território onde não regia a soberania legal de outro país. A realidade demonstra que, fora do servilismo incondicional do governo de Trump a Israel e dos próprios judeus [vemos que nem estes em seu todo], até a presente data nenhum país do mundo está disposto a apoiar semelhante interpretação israelense. Como pretende Israel que os países do mundo aceitem ser silenciados e não exijam justiça ante a assinatura de um general do exército israelense argumentando segurança para levar à usurpação de terras privadas de um nativo palestino vizinho de Hebron, para logo a seguir entrega-las a civis judeus para que erigissem a cidade de Kiriat Arba [sobre terras palestinas]?
O medo não é zonzo. No dia de ontem, Israel Katz, chanceler de Israel, informou que o desalojamento de moradores da aldeia palestina de Khan al-Ahmar, fica adiado indefinidamente. Isso diante do que ameaça a CPI. Mais ainda, pela mesma razão fontes extraoficiais informaram, na data, que o plano de Netanyahu de anexar o Vale do Jordão a Israel também foi congelado até novo aviso (é o que informa matéria do portal israelense Ynet: “Despois do informe da procuradora da CPI, Israel congela a anexação do Vale do Jordão”, 24-12-19).
Supondo que a CPI desconsidere o argumento da limitação de competência judicial nos territórios da Cisjordânia, Israel ainda dispões em seu arsenal de uma arma infernal de destruição massiva: una taxativa ameaça de Trump, em seus serviços a Israel, com severas sanções econômicas ao mundo no caso em que se julgue Israel por delitos de guerra [não é ironia apenas, EUA já retirou financiamento à Unesco, só para dar um exemplo, por razões similares]. Aí é aonde reside o poder da razão do Estado Judeu destes tempos.
Como é de se supor, com este porvir, os povos do mundo engrossaram suas fileiras com outros milhões de adeptos que agora se inclinam por uma severa aversão a Israel, aos judeus e ao judaísmo. É só uma questão de abrir olhos e olhar ao redor.
Oxalá me equivoque.
*Daniel Kupervaser é economista graduado pela Universidade Nacional de Rosário – Argentina, autor do livro “Israel se emborrachó e no de vino” (Israel se embebedou e não foi de vinho), Editora Dunken – Buenos Aires