No que os principais jornais norte-americanos apresentaram como uma “escalada” para uma “crise constitucional”, a Casa Branca anunciou que se recusa a cooperar com a investigação de impeachment da Câmara e inclusive proibiu o embaixador junto à União Europeia, Gordon Sondland, de depor.
A recusa coincide com nova pesquisa do Washington Post que registra que a maioria (58% contra 38%) dos norte-americanos apoia a decisão de iniciar o processo de impeachment, e quase metade agora pensa que a câmara deve recomendar o impeachment de Trump.
Mesmo entre os entrevistados que se declararam republicanos, a concordância com abertura de processo de impeachment subiu para 18%.
Em comunicado à noite, a presidente da Câmara dos Deputados, Nancy Pelosi, advertiu que “os esforços contínuos para esconder a verdade sobre o abuso de poder do presidente contra os americanos serão considerados como novas evidências de obstrução”. Para ela, a carta de Trump tenta transformar a ilegalidade que cometeu “em virtude”. “Sr. Presidente, você não está acima da lei. Será responsabilizado”, afirmou.
O advogado do presidente, Rudy Giuliani – que já constituiu advogado -, juntou-se à recusa, enquanto o Departamento de Estado, que não forneceu nada do que foi pedido, enviou uma carta protelatória, como relatou Mike Pompeo.
CERCO APERTA
A acusação, a partir de denúncia feita por um agente da CIA, citando testemunhas de primeira mão, é que Trump telefonou ao novo presidente ucraniano Volodymyr Zelensky em julho, para exigir que este investigasse o pré-candidato a presidente (e ex-vice) Joe Biden, sob ameaça de reter ajuda militar de quase US$ 400 milhões.
O que foi imediatamente abraçado pelos democratas como “uso ilegal da presidência para solicitar interferência de um país estrangeiro nas eleições dos EUA de 2020” e “ameaça à segurança nacional” norte-americana.
Apertando o cerco a Trump, a Câmara acionou o secretário do Pentágono, Mark Esper, para que entregue documentos sobre a ajuda militar à Ucrânia, que foi congelada durante mais de um mês, apesar de aprovada pelo Congresso. Em entrevista, Zelensky asseverou que “não foi pressionado”.
Após o escândalo vir à tona, Trump divulgou um resumo da transcrição do telefonema, em que o “favor” que ele pede diretamente a Zelensky é que este ache um suposto servidor da Crowdstrike, empresa de guerra cibernética envolvida no Russiagate e no caso do hackeamento do Diretório Nacional Democrata.
O pedido de investigação da “corrupção de Biden” foi em seguida. Biden virou, nos anos Obama, depois do golpe da CIA de 2014, “vice-rei” ucraniano e até colocou o filho, Hunter, na diretoria de uma empresa privada de gás, a Burisma. Em vídeo, Biden se gabou de ter arrancado do governo de Kiev a demissão do procurador-geral [Viktor Shokin], sob ameaça de vetar empréstimo de US$ 1 bilhão. Shokin estaria investigando a corrupção da Burisma.
A CARTA DE CIPOLLONE
Em uma carta de oito páginas, o advogado da Casa Branca, Pat Cipollone, comunicou a recusa em cooperar, alegando que isso se devia a que os direitos de Trump estariam sendo violados e que faltava aprovação formal do impeachment, ao contrário de todos os processos precedentes.
A carta acusava, ainda, os democratas de tentarem reverter o resultado da eleição passada com o processo de impeachment e chamava o inquérito em curso de “partidário e inconstitucional”.
Ainda segundo Cipollone, a Câmara não estaria respeitando “o direito de ver todas as evidências, de apresentar evidências, de chamar testemunhas, de ter advogados presentes em todas as audiências, de interrogar todas as testemunhas, de fazer objeções relacionadas ao exame de testemunhas ou à admissibilidade de depoimentos e evidências, e de responder a evidências e testemunhos”.
De acordo com a carta, jamais a Câmara tentou iniciar um inquérito de impeachment contra um presidente “sem que a maioria da Câmara se responsabilizasse politicamente por essa decisão, votando para autorizar um passo constitucional tão dramático”. No lugar, acusa Pelosi de ter feito uma conferência de imprensa na qual anunciou a “investigação oficial de impeachment”.
A carta conclui asseverando que Trump tem mais o que fazer e não pode permitir que esses procedimentos constitucionalmente ilegítimos “o distraiam a ele e aos do Poder Executivo” de seu trabalho “em nome do povo americano”. Ah, claro: segundo o documento, Trump nada fez de errado.
AGENTE DA CIA “VISIVELMENTE ABALADO”
Segundo o New York Times, o segundo denunciante que – ao contrário do primeiro – presenciou o fato, ficou “visivelmente abalado” com o que ouvira, pois seria “muito além” dos limites de tais ligações “entre presidentes”. Ainda na descrição, a ligação de Trump fora “doida” e “assustadora”.
Já o Washington Post asseverou que os parlamentares democrata estão considerando medidas extraordinárias para proteger o denunciante quando este for testemunhar, desde realizar a audiência em local secreto a até disfarçar a voz e o rosto.
Não são os únicos preocupados com o futuro desse denunciante que, operando não se sabe desde quando para uma Agência cuja especialidade é “fraudar, enganar e mentir” – além de organizar golpes, atentados e assassinatos –, tenha ficado tão “visivelmente abalado” com a ligação de Trump para Zelensky.
Noventa ex-oficiais de segurança nacional dos governos Obama e Bush – e três que atuaram por um período sob Trump – assinaram uma “Carta Aberta ao Povo Americano” em defesa do agente da CIA denunciante. Que, defenderam, “merece nossa proteção” e sua identidade deve ser “protegida a qualquer custo”.
Calorosa defesa que seria convincente, não fosse o fato de que os signatários processaram denunciantes a rodo: ex-diretores da CIA John Brennan, Michael Hayden e Michael Morell, ex-diretor de Inteligência Nacional James Clapper, ex-secretário de Defesa Chuck Hagel, ex-subsecretária de Defesa Michele Flournoy, ex-subsecretária de Estado para Assuntos Políticos Wendy Sherman (enviada de Obama à Ucrânia).
Denunciantes como Chelsea Manning, Edward Snowden e John Kiriakou, que expuseram respectivamente os crimes de guerra no Iraque e Afeganistão, a espionagem do NSA no mundo inteiro e a tortura da CIA, não tiveram qualquer proteção e, ao contrário, foram perseguidos e presos, enquanto Snowden só não está encarcerado porque vive no exílio. E Julian Assange está numa prisão de segurança máxima em Londres, ameaçado de 175 anos de sentença.
“A PESSOA SEM NOME” DO UKRAGATE
O principal comentarista da revista Rolling Stone, Matt Taibbi, autor de notável denúncia sobre as garras da Goldman Sachs no crash de 2008, analisou esta semana o imbróglio em Washington, assinalando que “a pessoa sem nome no centro desta história certamente não parece um denunciante”.
A matéria inclui uma grande fotografia de Chelsea Manning – que está presa há mais de seis meses por se negar a mentir contra Assange -, com a legenda “a verdadeira denunciante americana”.
Para Taibbi, o que está em curso é uma guerra intestina entre Trump e a CIA, sobre para onde levar o império em crise norte-americano.
Como registra o jornalista, “os americanos que denunciaram são submetidos a acusações judiciais graves pelo governo federal ou passam o resto de suas vidas no exterior, como Edward Snowden; acabam na prisão, como Chelsea Manning; são presos e arruinados financeiramente, como o ex-funcionário da NSA Thomas Drake; têm suas casas invadidas pelo FBI, como o veterano da NSA, William Binney; ou são acusados de espionagem, como John Kiriakou, ex-expositor de tortura da CIA . É um insulto a todas essas pessoas, e ao sofrimento que elas sofreram, enquadrar como denunciante o portador de bola na última disputa de poder partidária do establisment”.
Taibbi ressalta que “denunciantes reais estão sozinhos. A denúncia da Ucrânia parece ser o trabalho de um grupo de pessoas, apoiado por um poder institucional significativo, não apenas na comunidade de inteligência, mas no Partido Democrata e na imprensa comercial”.
Um jornal conservador, o Washington Examiner, afirmou que o Inspetor-Geral Michael Atkinson reconheceu que há “indícios” de que o denunciante “tem uma relação profissional com um dos candidatos de 2020”. Antes, viera a público que o “pessoal” do presidente da Comissão de Inteligência da Câmara, Adam Schiff, havia sido procurada anteriormente pelo denunciante, a quem orientaram da forma que acharam conveniente.
“INIGUALÁVEL SABEDORIA”
Há quem ache que o processo de impeachment anda mexendo com os nervos de Trump. Na recente decisão de recuar na fronteira da Síria com a Turquia – onde suas tropas estão ilegalmente -, diante da iminente invasão ordenada por Erdogan, e após críticas de que estaria abandonando ‘nossos curdos’, a resposta de Trump foi: “se Ancara fizer algo que eu em minha grande e inigualável sabedoria determine que está fora dos limites, destruirei totalmente a economia turca”.
No fim de semana, ele utilizou essa grande e inigualável sabedoria para tuitar 60 vezes coisas como que “adoraria” que Sondland testemunhasse, mas não seria possível porque faria isso diante de “um tribunal de opereta, em que os republicanos foram despojados de seus direitos e os fatos não podem sair à luz”.
Sondland tinha acabado de chegar da Europa quando foi informado da novidade. A Câmara diz que irá intimá-lo. Ele é um empresário do setor hoteleiro que foi agraciado com cargo de embaixador em retribuição às doações que fez para a campanha de Trump.
O presidente bilionário também disse que a ideia de telefonar partira do seu secretário de Energia, Rick Perry, e que ele “nem queria”. Os porta-vozes de Perry esclareceram que o secretário realmente queria que ele falasse com Zelensky sobre gás natural – mas não sobre Biden.
Quanto às alegações de Trump de que pode se negar a entregar os documentos exigidos pelos comitês de impeachment, a revista Rolling Stone desencavou declaração de um dos aliados mais fiéis do presidente, o senador Lindsey Graham, contestando. “Não é sua função nos dizer o que nós precisamos, é sua função cumprir com as coisas que nós necessitamos para providenciar supervisão sobre você” – isso era em 1998, e então o candidato a impeachment era Bill Clinton.
Para confirmar o dito de que, quando as coisas vão mal, sempre podem piorar, um juiz federal ordenou que Trump entregue suas declarações de renda à promotoria em Manhattan, rechaçando a alegação de ‘imunidade presidencial’. Seus advogados tiveram que correr para entrar com uma apelação. Na sentença, o juiz Victor Marrero sublinhou que o presidente “não está acima da lei”.
ANTONIO PIMENTA