O professor da Escola Superior de Guerra, Ronaldo Carmona, participou da audiência pública promovida pelas comissões de Desenvolvimento Econômico, Indústria, Comércio e Serviços e de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados, com representantes do governo, empresários e especialistas em geopolítica e comércio internacional para debater as consequências da guerra entre Rússia e Ucrânia para o mundo e para o Brasil em particular.
Segundo os participantes do debate ocorrido no dia 11, por iniciativa da deputada Perpétua Almeida, a elevação dos preços, a escassez de alimentos e combustíveis foram as principais consequências do conflito.
Para o professor Carmona, há uma crise da hegemonia pretendida pelos Estados Unidos e buscada desde a Guerra Fria, que se convencionou chamar de ‘globalização’. Para o professor, a crise chama o Brasil a apoiar seus elementos de força e a superar suas vulnerabilidades.
Segue a participação de Carmona no debate:
RONALDO CARMONA*
Em primeiro lugar eu gostaria de agradecer o convite para participar dessa sessão. Creio que a iniciativa é da mais alta relevância tendo em vista os efeitos para situação internacional e também para o nosso país, que estamos aqui discutindo. Trago aqui contribuições na qualidade de pesquisador, de professor, portanto falo em meu próprio nome, não necessariamente as minhas posições aqui representam as da instituição à qual eu sou vinculado.
Eu gostaria de começar dizendo que, de fato, a guerra que estamos vivenciando desde o dia 24 de fevereiro deste ano, ela na verdade se insere em um conjunto de eventos disruptivos que acontecem em escala internacional, em torno dos últimos 15 anos.
Começa, digamos assim, com a eclosão da crise financeira de 2008, que por sua vez inicia fissuras no movimento de globalização, por sua vez, iniciado no final da guerra fria.
CONSOLIDAÇÃO DOS BRICS
Temos ainda a consolidação dos BRICS, da qual aponto para histórica reunião de 2014, reunião dos BRICS na cidade de Fortaleza. Como consequência dessas fissuras na globalização, o movimento do Brexit, ou seja, da saída do Reino Unido da União Europeia.
Houve ainda a eleição de Donald Trump, outro evento bastante inovativo em termos das relações internacionais, que marca por sua vez uma agudização do confronto com a China, entre as duas superpotências, simbolizada em especial na guerra comercial levado a cabo por Trump.
Tivemos ainda, outro evento inédito que veio a ser a Covid-19, que jogou o mundo não apenas em um movimento de “lockdown” mas também em uma recessão importante no ano de 2020, para finalmente nós chegarmos a essa transição no governo americano com a posse do Biden e todos os conflitos ligados ao que ocorreu no Capitólio.
Seguimos indo até este evento histórico que foi exatamente por ocasião da abertura dos jogos olímpicos de inverno de Beijing, em 4 de fevereiro deste ano, a assinatura de declaração conjunta entre a China e a Rússia e, finalmente, o fator ligado à eclosão da guerra.
Então o que eu quero dizer é que na verdade isso que alguns chamam de retorno da geopolítica, ou melhor dizendo, uma intensificação de uma política de poder por parte das principais potências do sistema internacional é um fato que paulatinamente vem ganhando corpo no sistema de relações internacionais e, portanto, vem se afirmando através desses fatos de grande relevância que a gente observa nos últimos anos.
Para falar dos efeitos da guerra, em primeiro lugar é preciso considerar que a guerra está em pleno curso. Nós recentemente completamos o terceiro mês do conflito.
DURAÇÃO DO CONFLITO ESTÁ INDEFINIDA
Esse é um conflito que nós podemos dizer que está indefinido, no que diz respeito tanto a sua duração quanto ao seu desfecho. A melhor caracterização do atual cenário poderia ser denominado como um cenário de impasse, no qual a Russia, por um lado não mostra condições de obter uma vitória no que diz respeito aos seus objetivos de maneira acelerada, como alguns previam em determinado momento, talvez de uma forma ingênua, assim como o lado ocidental que apoia muito fortemente o governo ucraniano, também não faz valer uma condições de obter uma vitória, de modo que a situação de impasse é o que caracteriza hoje, sobretudo, essa situação de conflito.
Evidentemente que o pior cenário previsto, que o próprio embaixador da Rússia [também presente no evento] se referiu a isso, é um cenário aonde o conflito entre Rússia e Otan deixe de ser um conflito indireto, como é atualmente, e passe a ser um conflito direto. Uma vez que um conflito direto entre potências nuclearmente armadas, possa fazer com que haja consequências absolutamente indesejadas para toda a humanidade.
É importante dizer, semana passada nós tivemos na reunião de Davos, na Suíça, o alerta que fez Henry Kissinger, um grande estrategista americano, mostra também que do ponto de vista da própria sociedade americana existe um debate sobre essa questão da guerra. Dias atrás nós vimos essa turnê do presidente Biden pela Ásia, o discurso do secretário de Estado americano, sobre a questão da política para China, inclusive sugerindo uma ideia de que, de fato a prioridade estratégica do ponto de vista dos americanos é o confronto com a China, e o Kissinger muito claramente deu o tom em termos marcadamente geopolíticos, como a gente vê ao longo de vários grandes pensadores estratégicos americanos. Qual seja a ideia de que o ocidente poderia estar empurrando os dois gigantes da Eurásia para uma unidade muito forte, uma aliança permanente, que foi o termo que Kissinger usou, de modo que esse sempre, do ponto de vista da teoria geopolítica americana, foi o pior dos mundos na visão de muitos deles, inclusive do Kissinger, então é importante notar também essas questões que são de alta relevância.
Vamos tratar agora mais diretamente dos impactos, que usando o tempo que a Natália também usou, nós temos a emergência de várias crises interligadas no que pode ser chamada de tempestade perfeita, ou que foram causadas pela guerra na Ucrânia ou foram agravadas por esta guerra. Como diz aqui o colunista do Financial Times, na verdade o mundo ainda não havia se recuperado dos custos gravíssimos da Covid-19, sobretudo dos seus efeitos sociais e políticos, quando veio a guerra, que por sua vez é um multiplicador de rupturas no mundo bastante conturbado como é o que a gente vive atualmente.
Do ponto de vista das consequências, destaca-se em especial esse forte choque nas commodities, tendo em vista ser a Rússia um grande exportador de energia, grãos e fertilizantes. A Ucrânia, por sua vez, também é um exportador bastante relevante do ponto de vista mundial.
CRISE NA GLOBALIZAÇÃO
Continuando o debate sobre as consequências da guerra, o fato é, e eu acho que em Davos novamente nós vimos uma sessão de vários personagens falando disso, de que na verdade o atual momento e todos esses eventos disruptivos que nós estamos vendo nos últimos 15 anos, marcam uma grave crise na globalização, se não um movimento absoluto de desglobalização como alguns chegam a falar, como o próprio chefe de um dos maiores fundos de pensão mundial dizendo isso semanas atrás.
O fato é que temos uma crise na globalização, uma reversão disso, que o Dani Rodrick chamou de hiperglobalização, que é aquele movimento que se instaurou ao final da Guerra Fria, aquela ilusão de que o mundo poderia ser gerido pelo livre comércio e pelo livre mercado. Então o que nós vimos hoje, é exatamente a reversão desse movimento. Todos os grandes países, as grandes potências, passam a considerar como preponderante o fator segurança nacional no que diz respeito a obtenção de insumos críticos ou vitais.
Então essa é uma realidade que vai se impondo no sistema internacional, os países também passam a ter um forte ativismo em torno de políticas industriais. Isso é uma questão que certamente o Brasil precisaria tirar lições, no sentido da recomposição da sua capacidade industrial. Uma reorganização das cadeias globais de suplemento, que também pode ter consequências muito importantes para o Brasil, sobretudo consequências positivas no caso de nós tirarmos proveito desse movimento de reorganização das cadeias de valor. O fato é que a crise, como reconheceu o FMI, se não teve ainda condições de jogar a economia mundial numa recessão, o que obviamente não está descartado, de fato fez com que toda a expectativa em torno do crescimento da economia mundial que estava praticamente contratado em função dos fortes estímulos que os países fizeram nas suas economias, nas economias centrais, em função da reação à Covid-19.
Mas isso a guerra abateu, digamos assim, com essa crise de oferta, essa escassez, portanto esse surto inflacionário combinado com o aumento das taxas de juros nos países desenvolvidos e, portanto, uma desaceleração no crescimento mundial que pode, no limite, levar a uma situação portanto recessiva, ao que se soma não como impacto direto da guerra, mas o atual movimento de lockdown na China, sobre fortes efeitos sobre o cenário mundial.
Nós podemos falar de três fatores diretos, digamos assim.
PIOR CRISE DESDE 1970
Crise de energia, segundo o IERG o mundo vive a pior crise energética desde 1970, que foi aquele duplo choque do petróleo dos anos 70. Com isso se gerou um novo impulso dos combustíveis fósseis, aqueles que diziam que os combustíveis fósseis estavam com os dias contados, na verdade essa crise fez reemergir os combustíveis fósseis e potencialmente atrasará esse movimento de transição energética. Inclusive, se vê, explicitada, a dependência energética em especial da União Europeia e as consequências dessa dependência energética, de modo que essa crise no setor de energia tem consequências bastante expressivas, assim como sobre essa crise de alimentos, em especial vários países exportadores passam a proibir exportações. O último caso altamente relevante foi o caso da Índia, além, claro, de se retirar uma boa parcela das exportações, especialmente de trigo, por parte da Rússia e da Ucrânia.
Temos então uma forte alta de preços. E vamos nos lembrar que o último movimento de grande alta no preço dos alimentos gerou exatamente a primavera árabe, ou seja, aqueles movimentos de instabilidade em especial no Oriente Médio, portanto, esse é outro efeito gravíssimo que se apresenta.
Há ainda essa crise potencial no sistema financeiro monetário internacional, a violência representada pelo sequestro das reservas russas, que tem fortes consequências do ponto de vista inclusive da confiança jurídica para os países manterem reservas nessas moedas sujeitas a risco geopolítico, assim como essa indesejável politização do chamado sistema Swift.
Aqui alguns gráficos que mostram exatamente a explosão dos preços de energia, os custos da dependência energética, e a elevação de outros preços como do petróleo, minério de ferro e grãos.
BRASIL GUARDA DISTÂNCIA
A posição brasileira, que na minha opinião tem sido uma posição que guarda uma certa distância do conflito exatamente buscando ter capacidade de dialogar com todos os polos em conflito no atual cenário internacional. Esse mapa que expressa as votações na Assembleia Geral da ONU mostra muito claramente que as posições brasileiras, não têm se aliado absolutamente nem ao bloco norte-atlântico, ao bloco do G7, ao bloco da Otan, que é o bloco que sustenta o governo de Kiev, e nem tem, por outro lado, se aliado totalmente ao seus parceiros dos BRICS, de modo que me parece que essa posição de uma certa distância, ela melhor atende aos interesses nacionais.
Eu vou gastar os cinco minutos que me restam para dar minha opinião sobre como esse conflito apresenta consequências ao Brasil, e como essas consequências podem ser miradas, podem ser vistas a partir das expressões do poder nacional, ou seja, como elas repercutem nas expressões do poder nacional e como a partir delas nós podemos buscar viabilizar uma saída que torne menos dolorosos os efeitos, e ao contrário, sirvam como possibilidade para o Brasil sair mais forte dessa guerra e dessas crises.
Como eu disse, a posição de distância me parece correta, sobretudo porque o Brasil passa inclusive a ter condições de ser um dos possíveis polos que ofereça saídas para o conflito. Afinal de contas, se este é um conflito que dificilmente se resolverá pela expressão militar, diante do impasse que a gente observa, certamente vai chegar o momento onde o diálogo terá que se expressar, portanto o Brasil se coloca em uma posição correta para buscar contribuir para a solução da questão da guerra.
Também acho que é importante localizar que a guerra explicitou vulnerabilidades brasileiras, mas também fatores de força. Entre as vulnerabilidades mencionadas aqui, esse problema da desindustrialização que é um problema que já tinha nos afetado de uma maneira bastante importante durante o período da Covid: falta de insumos e vacinas, fruto de uma crise que vem de vários anos no nosso complexo industrial de saúde, mas também a crise no setor de fertilizantes. O Brasil inclusive tem no agronegócio um dos grandes fatores de força da sua economia nacional e viu explicitada essa vulnerabilidade assim como essa questão bastante presente no debate atual, que é o problema dos combustíveis. O Brasil que hoje exporta petróleo cru e importa combustíveis refinados se depara com uma crise de oferta de refino no mundo, o que faz com que haja essa disparada no preço do combustível.
BRASIL POTÊNCIA ENERGÉTICA
Então são vulnerabilidades que nós precisamos enfrentar, que o Brasil precisa enfrentar, eu acho que o mencionado plano nacional de fertilizantes é um bom indício nesse sentido, mas esse é um caminho que precisa ser aprofundado.
E nós precisamos potencializar os nossos fatores de força, o Brasil já é uma potência energética, caminha inclusive para ser o quinto maior exportador de petróleo do mundo, mas nós precisamos conter essa nossa vulnerabilidade que tem se explicitado agora no preço dos combustíveis, Temos também a nossa capacidade de potência alimentar, o Brasil que alimenta, segundo algumas estimativas, cerca de 800 milhões de pessoas no mundo, pode implementar essa sua condição de potência alimentar e portanto tirar ganhos importantes para o seu próprio desenvolvimento. Mais do que isso, nós precisamos, com base nesses fatores de força, carrear condições para que o Brasil se dedique a um novo movimento de reindustrialização nacional. Afinal de contas, aquela história de que o mundo vivia uma era pós-industrial, absolutamente não tem se afirmado. Ao contrário, todos os grandes países do mundo, como eu disse, se engajam em torno de políticas industriais, que deixa de ser um tema ideológico e passa a ser um tema de fator chave de poder nacional por parte de todas as potências. Portanto, essa reorganização das cadeias de suplemento possibilita essas oportunidades para o Brasil.
O Brasil também deve se convencer, com base no que nós estamos observando, de que nós não podemos, em absoluto, ser um país desarmado. Nós precisamos fortalecer a nossa condição de defender a nossa soberania, a nossa integridade territorial, e para isso é preciso robustecer a nossa capacidade de defesa, sobretudo a nossa capacidade de dissuasão como é definida na política e na estratégia nacional de defesa, portanto ter capacidade de fortalecer a base industrial de defesa, e ter condições, portanto, de recompor o nosso instrumento militar para a defesa do nosso país, o que é fundamental, até porque o mundo muito claramente caminha dentro dessa potencial escassez em bens, em insumos que temos em abundância, caminha por uma situação de grande conflito em torno de recursos, e nós precisamos vislumbrar do ponto de vista prospectivo que o Brasil pode se tornar alvo por parte de países que tenham interesses nesses recursos.
O Brasil precisa também renovar a capacidade da sua coesão, nós nos mostramos vulneráveis diante desse cenário internacional em agravamento.
Enfim, quero dizer que o Brasil precisa, com base nas lições desse mundo que está em grandes transformações, desse mundo com grandes disrupções que a gente tem observado nesses últimos 15 anos, e que tem se aprofundado nesse período recente, precisa, portanto, reposicionar a sua estratégia. Eu chamo de estratégia de segurança nacional, que consiga mitigar as nossas vulnerabilidades e que consiga potencializar os nossos fatores de força, afinal de contas, temos o mundo cada vez mais conturbado, cada vez mais inseguro, cada vez mais incerto, sobre o qual nós precisamos tirar lições para o fortalecimento do poder nacional, para o fortalecimento do Brasil como nação nesse mundo que vem por aí.
*Ronaldo Carmona é PhD (Doutor) e MPhil (Mestre) em Geografia pela Universidade de São Paulo (USP), com Tese e Dissertação em teoria geopolítica. É Professor de Geopolítica da Escola Superior de Guerra (ESG), onde ministra aulas aos cursos de Altos Estudos em Política e Estratégia, de Estado Maior Conjunto e de Inteligência Estratégica, dentre outros. Ainda na ESG, coordena o Grupo de Pesquisa sobre Guerra