O prefeito do Rio de Janeiro Marcelo Crivella montou um esquema na porta dos hospitais para impedir jornalistas de registrarem denúncias e reclamações de usuários da rede municipal de saúde da capital Fluminense. A TV Globo desvendou o esquema após ser diversas vezes atacada enquanto realizava reportagens nesses locais.
No esquema intitulado pelos próprios envolvidos de ‘Guardiões do Crivella’, funcionários púbicos são pagos com o dinheiro do contribuinte para vigiar a porta de unidades de saúde, para constranger e ameaçar jornalistas e cidadãos que denunciam os problemas.
Para flagrar os servidores públicos na ação ilícita, a Globo forjou uma reportagem em frente a um hospital. A partir daí, a emissora revelou que os intimidadores são coordenados por três grupos em WhatsApp. Dessa forma, eles obedecem uma escala rígida de horário, com direito a “ponto digital” por meio de selfie no local onde deveriam impedir a ação da imprensa.
Num dos grupos, um telefone dos participantes é registrado como sendo do próprio prefeito, Marcelo Crivella. “O prefeito, ele acompanha no grupo os relatórios e tem vezes que ele escreve lá: “Parabéns! Isso aí!”, contou à TV Globo um dos participantes.
A reportagem ainda mostrou prints dos grupos. Neles, os funcionários são orientados a atrapalhar as reportagens, por meio de intimidação direta ao cidadão que reclama e à equipe de jornalismo. A Globo mostrou três ocasiões em que houve a ação dos funcionários da Prefeitura, que chegam a receber mensalmente cerca de R$ 4 mil dos cofres públicos
De acordo com a reportagem, os funcionários são orientados para atrapalhar reportagens, por meio de intimidação direta do contribuinte que estiver fazendo a reclamação e da equipe de jornalismo. A TV Globo narra três ocasiões em que houve “invasões” e que a reportagem teve que ser interrompida.
Em uma das situações, depois da confusão, o agressor colocou um crachá e se dirigiu para o interior da unidade de saúde. Nesta segunda, o repórter Paulo Renato Soares fazia uma entrevista na porta do Hospital Salgado Filho, no Méier. Ao primeiro sinal de que a gestão da saúde poderia ser criticada, o entrevistado foi interrompido por um dos guardiões do Crivella.
No WhatsApp, além do “Guardiões do Crivella”, os outros dois grupos são identificados como “Assessoria Especial GBP” — gabinete do prefeito — e o outro, como “Plantão”. Em dois desses grupos, a Globo localizou dois homens que intimidaram as equipes de reportagem da emissora.
• José Robério Vicente Adeliano foi admitido na prefeitura em novembro de 2018, em “cargo especial”. O salário bruto é de R$ 3.229.
• Ricardo Barbosa de Miranda foi contratado pela prefeitura em junho de 2018, como assistente 3 e salário de R$ 3.422.
No dia 27, data em que outra equipe foi agredida verbalmente no Rocha Faria, estavam na escala:
• Marcelo Dias Ferreira, desde setembro de 2018 na prefeitura com cargo especial e salário bruto de R$ 2.788.
• Luiz Carlos Joaquim da Silva, o Dentinho, contratado em dezembro de 2019 com salário bruto de R$ 4.195, em cargo especial – foi ele que intimidou a equipe da TV Globo.
Nos prints das conversas nos grupos que a Globo teve acesso, alguém identificado apenas como ML manda a foto da reportagem e escreve: “A Globo está no Rocha. Cadê a equipe do Rocha? Mateus, liga pra equipe do Rocha”.
Mateus responde: “Sim, senhor”.
ML, de novo, questiona: “Quem está no Rocha?? Gente, muito triste, não derrubamos a matéria (…) Não pode haver falta, nem atraso. Falhamos no Rocha Faria. Inaceitável”.
Depois da bronca, além dos dois escalados, chegou um reforço: outra dupla de agressores.
Eles atrapalharam a continuação da reportagem – e comemoraram:
“Eu acho que não é ao vivo. Acho que estão fazendo matéria pra mais tarde, mas tentaram entrar várias vezes e nós interrompemos por essas vezes todas aí”, diz um deles, em um áudio enviado no grupo.
ML – que aparece no grupo – está sempre dando ordens. “Marquem durinho aí, hein. Não dá mole pra eles, não”, diz em uma das mensagens.
ML é Marcos Paulo de Oliveira Luciano, o Marcos Luciano, que divulga várias fotos com o Crivella nas redes sociais e já o acompanhou em viagens internacionais, segundo ele mesmo divulga na internet.
De acordo com um dos contratados, a tática foi adotada no fim do ano passado, e intensificada durante a pandemia. “Nós temos essa missão lá já há mais de 8 meses. Antes, já estava funcionando, mas quando entrou a Covid em março, ficou todos os dias. Existe plantão nas unidades para poder cercear a imprensa, contou a Globo.
Prefeitura
Em nota, a Prefeitura do Rio diz que “reforçou o atendimento em unidades de saúde municipais no sentido de melhor informar à população e evitar riscos à saúde pública, como, por exemplo, quando uma parte da imprensa veiculou que um hospital (no caso, o Albert Schweitzer) estava fechado, mas a unidade estava aberta para atendimento a quem precisava. A Prefeitura destaca que uma falsa informação pode levar pessoas necessitadas a não buscarem o tratamento onde ele é oferecido, causando riscos à saúde”.
REPÚDIO
A Associação Brasileira de Imprensa (ABI) afirmou que os episódios repetidos nas portas dos hospitais mostram que não estamos diante de fatos isolados, mas de uma política de Crivella pra constranger repórteres e cidadãos.
“A Associação Brasileira de Imprensa (ABI) denuncia mais um atentado contra a democracia por parte do prefeito Marcelo Crivella. Em ações orquestradas, funcionários da prefeitura tentam intimidar, com agressões verbais e ameaças de agressões físicas, jornalistas que trabalham em reportagens sobre a situação de calamidade dos hospitais públicos no Rio. As ameaças se estendem aos usuários que prestam depoimentos sobre o mau atendimento. Episódios ocorridos nas portas de vários hospitais municipais nos últimos dias mostram que não estamos diante de fatos isolados, mas de uma política do prefeito para constranger repórteres e cidadãos. A ABI reafirma seu compromisso com a liberdade de expressão e deixa claro que irá às últimas consequências para defender esses princípios. Não aceitaremos que o prefeito Crivella tente violentar a democracia e impeça o trabalho da imprensa”, diz a nota, assinada pelo presidente Paulo Jeronimo.
O presidente da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo, Marcelo Träsel, afirmou que a “estratégia de constranger entrevistados e repórteres ou impedir o acesso a instituições públicas é não apenas um retrocesso autoritário, mas uma estratégia para minar a democracia e a liberdade de imprensa”: “É dever do poder público prestar contas à sociedade e fornecer informações transparentes sobre eventuais falhas no sistema de saúde”.
O presidente da Abraji disse ainda que usar servidores públicos ou acionar militantes para impedir o trabalho de repórteres demonstra incapacidade de lidar com críticas e grave ameaça à liberdade de imprensa.
A Associação Nacional de Jornais lamentou que funcionários da prefeitura do Rio estejam impedindo a atividade jornalística e afirmou que os maiores prejudicados são os cidadãos do Rio, a quem esses funcionários deveriam prestar seus serviços e de quem recebem seus salários.