WALTER NEVES
Instituto de Estudos Avançados-USP
A evolução de nossa linhagem, a dos hominínios, ocorreu nos últimos 7 milhões de anos e ela é marcada pela aquisição da bipedia, ou seja, o andar ereto sobre duas pernas. Nenhuma outra linhagem primata apresenta essa característica. Tanto os pré-australopitecínios, datados entre 7 e 5 milhões de anos, quanto os australopiteciníos, datados entre 5 e 2,5 milhões de anos, já andavam sobre duas pernas em posição vertical, entretanto dispunham de um cérebro minúsculo similar àquele dos chimpanzés, de cerca de 450 cm3. Cabe enfatizar que nosso cérebro tem por volta de 1350 cm3. Entretanto, entre 7 e 2,5 milhões de anos, a bipedia não era exatamente como a nossa. No começo esses bípedes apresentavam braços longos e pernas curtas, ao passo que nós apresentamos braços curtos e pernas longas. Em outras palavras, os primeiros bípedes andavam em pé quando no chão, de forma cambaleante, mas ainda eram excelentes trepadores de árvores, característica essa que foi perdida no gênero Homo. Chamamos o primeiro tipo de bipedia de bipedia facultativa, ao passo que a segunda denominamos bipedia estritamente terrestre. Um outro ponto a enfatizar é que entre 7 e 2,5 milhões de anos toda a evolução dos hominínios se deu na África.
A primeira saída do continente africano se deu por volta de 2,5 milhões de anos, logo após o surgimento do gênero Homo, gênero ao qual pertencemos. O surgimento do gênero Homo se deu também na África, na medida em que as florestas foram sendo substituídas por savanas naquele continente. Esses primeiros Homo ainda tinham um cérebro pequeno, de cerca de 600 cm3. O que mais marca seu surgimento é a bipedia estritamente terrestre. Muito provavelmente foi nossa capacidade de caminhar de forma mais eficiente que os pré-australopitecínios e os australopitecínios, que nos permitiu sair da África e ocupar novos territórios na Eurásia e talvez, também, na Europa.
Discute-se muito qual foi a primeira espécie do gênero Homo. Há três possibilidades: Homo habilis, Homo rudolfensis e Homo erectus. Até pouco tempo, acreditava-se que as três espécies teriam surgido mais ou menos na mesma época na África, ou seja, por volta de 1,8 milhões de anos. Pesquisas mais recentes têm evidenciado, entretanto, que o candidato mais provável é o Homo habilis, já que restos dessa espécie tem sido encontrados na Etiópia por volta de 2,8 milhões de anos. Outra questão pendente é quando e a partir de quem teria surgido uma espécie muito importante na nossa evolução: o Homo erectus. Até dois anos atrás assumia-se que essa espécie também teria surgido na África por volta de 2 milhões de anos e que teria sido o primeiro hominínio a deixar esse continente. O Homo erectus, além de ser estritamente terrestre já apresentava uma caixa craniana bem maior, com cerca de 800 cm3.
A primeira evidência do gênero Homo fora da África está datada em 1.8 milhões de anos. Sabemos isso a partir dos estudos da jazida paleoantropológica de Dmanisi, na República da Geórgia, no Cáucaso. Ali foram encontrados cinco crânios que por falta de uma melhor opção têm sido classificados como Homo erectus. Entretanto, escavações efetuadas por meu grupo de trabalho entre 2013 e 2015 na Jordânia, Oriente Médio, mostraram que a saída da África ocorreu 700 mil anos antes do que se pensava, ou seja, ela teria ocorrido por volta de 2,5 milhões de anos e não há 1,8 milhões de anos. Isso coloca uma importante questão: será realmente que o Homo erectus foi o primeiro hominínio a deixar a África? Difícil, já que os vestígios mais antigos dessa espécie na África não ultrapassam 1,8 milhões de anos. Nossa proposta, recentemente publicada na revista Evolutionary Anthropology, é que o primeiro hominínio a deixar o continente africano foi o Homo habilis, já que ele estava presente naquele continente desde 2,8 milhões de anos. Nossa proposta ajuda também a entender melhor os cinco crânios encontrados em Dmanisi. Esses crânios, apesar de serem classificados como Homo erectus, não apresentam ainda todas as características dessa espécie. Um olhar mais detido sobre esses crânios mostra, que, na verdade, eles apresentam ainda algumas características do Homo habilis. Por exemplo, a capacidade craniana desses hominínios varia entre 540 e 750 cm3. Com nossas descobertas na Jordânia fica muito mais fácil entender o caráter de transição entre habilis e erectus evidenciados por esses crânios. Nesse novo contexto, talvez a melhor opção seria chamar esses crânios de Homo georgicus, uma espécie de “transição” entre habilis e erectus. Muito provavelmente, então, o Homo erectus teria surgido no Cáucaso e dali se espalhado pelo mundo, tendo inclusive voltado para a África.
Na África o Homo erectus teria dado origem a uma nova espécie, por volta de 600 mil anos atrás. Essa espécie é denominada Homo heidelbergensis e sua maior característica é exibir crânios já bastante volumosos, por volta de 1.250 cm3. Com tamanho cérebro não é de se admirar que essa espécie rapidamente se expandiu para quase todo o planeta, desde a Europa Ocidental até o extremo Oriente. Na Europa, o heidelbergensis deu origem aos famosos neandertais, certamente resultado de uma forte seleção natural imposta pelo extremo frio daquele continente. Já na África, por volta de 300 mil anos, como mostram achados recentes no Marrocos, nossa espécie (Homo sapiens) finalmente começou a se diferenciar. Os primeiros crânios incontestavelmente sapiens são encontrados na Etiópia e são datados de cerca de 195 mil anos. Entretanto, nossa espécie só começou a se expandir para fora da África apenas por volta de 130 mil anos.
Por que demoramos tanto para sair da África? Por uma razão muito simples: entre 195 e 130 mil anos atrás nosso cérebro, apesar de grande, ainda não era capaz de pensar simbolicamente. Isso só ocorreu por volta de 130 mil anos no continente africano. E como sabemos isso? Muito simples: as primeiras evidências de arte são datadas dessa época e são encontradas na África do Sul. O pensamento simbólico levou a uma explosão de criatividade em todos os aspectos de nossa espécie, inclusive tecnologicamente. Com uma tecnologia jamais vista nos 7 milhões de anos de evolução dos hominínios, nossa espécie, na medida que saiu da África, foi substituindo em todo o planeta formas arcaicas ainda existentes. Os últimos a serem substituídos foram os neandertais, entre 40 e 30 mil anos.
Espero ter demonstrado que a África foi incontestavelmente o berço da maior parte do percurso que levou, eventualmente, à nossa espécie. De muitas maneiras todos somos, um pouco, africanos.
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