“A indústria militar dos EUA está exausta. As economias e sociedades europeias estão à beira da implosão. Mesmo antes do colapso do exército ucraniano, o próximo estágio da desintegração do Ocidente foi alcançado”, diz o autor francês
O cientista político francês, Emmanuel Todd, aproveita o prefácio à edição eslovena de seu último livro ‘A Derrota do Ocidente’, publicado pela primeira vez em 2024, para constatar que tudo o que ele disse que aconteceria no mundo tornou-se realidade nos dias de hoje. Mesmo sendo um liberal convicto, como ele mesmo gosta de dizer, o autor afirma que o império americano e seus satélites foram derrotados.
“É, de fato, a primeira derrota estratégica dos EUA em escala global, em um contexto de desindustrialização massiva dos EUA e difícil reindustrialização. A China tornou-se a oficina do mundo; sua fertilidade muito baixa, sem dúvida, impedirá que substitua os EUA, mas é tarde demais para competir com eles industrialmente”, observa o intelectual francês, destacando que a derrota atual do império tem esse caráter estratégico por ser em escala global pela primeira vez.
“A desdolarização da economia mundial começou”, prossegue Todd. “Trump e seus conselheiros não aceitam porque significaria o fim do Império. No entanto, uma era pós-imperial deve ser o objetivo do projeto MAGA, ‘Make America Great Again’, que busca o retorno do estado-nação americano. Mas para um Estados Unidos cuja capacidade produtiva em bens reais é agora muito baixa, é impossível desistir de viver a crédito como faz produzindo dólares”, afirmou o estudioso.
“Uma das particularidades interessantes da América de hoje é que seus líderes estão achando cada vez mais difícil distinguir entre interno e externo, apesar da tentativa do MAGA de impedir a imigração do Sul com um muro”, acrescenta o autor.
“O exército dispara contra barcos pesqueiros que saem da Venezuela, bombardeia o Irã, entra no centro de cidades democratas nos Estados Unidos, ordena que aviões israelenses ataquem o Catar, onde está localizada uma enorme base americana”, pontua Todd, observando que “qualquer leitor de ficção científica reconhecerá nessa enumeração perturbadora o início de uma entrada na distopia, ou seja, em um mundo negativo em que se misturam poder, fragmentação, hierarquia, violência, pobreza e perversidade”. Confira o prefácio na íntegra!
Da derrota do império à desintegração
EMMANUEL TODD [*]

Menos de dois anos após a publicação em francês de A Derrota do Ocidente, em janeiro de 2024, as principais previsões do livro se tornaram realidade. A Rússia resistiu ao impacto militar e econômico sem grandes problemas. A indústria militar dos EUA está exausta. As economias e sociedades europeias estão à beira da implosão. Mesmo antes do colapso do exército ucraniano, o próximo estágio da desintegração do Ocidente foi alcançado.
Sempre fui hostil à política russofóbica dos EUA e da Europa, mas, como ocidental comprometido com a democracia liberal, francês treinado em pesquisa na Inglaterra, filho de mãe que se refugiou nos EUA durante a Segunda Guerra Mundial, estou chocado com as consequências para nós, ocidentais, da guerra travada sem inteligência contra a Rússia.
Estamos apenas no início da catástrofe. Um ponto de inflexão está se aproximando, além do qual as consequências finais da derrota se desenrolarão.
BRICS SE EXPANDEM
O “resto do mundo” (ou Sul Global, ou Maioria Global), que se contentou em apoiar a Rússia recusando-se a boicotar sua economia, agora está mostrando abertamente seu apoio a Vladimir Putin. Os BRICS se expandem aceitando novos membros e aumentando sua coesão. Depois de ser instada pelos EUA a escolher um lado, a Índia optou pela independência: as fotos de Putin, Xi e Modi se reunindo por ocasião da reunião de agosto de 2025 da Organização de Cooperação de Xangai permanecerão como um símbolo deste momento-chave.
No entanto, a mídia ocidental não para de apresentar Putin como um monstro e os russos como servos. Esses meios de comunicação já não conseguiam imaginar que o resto do mundo os vê como líderes e seres humanos normais, portadores de uma cultura russa específica e de uma vontade de soberania. Agora temo que nossa mídia agrave nossa cegueira por ser incapaz de imaginar o ressurgimento do prestígio da Rússia no resto do mundo, explorada economicamente e tratada arrogantemente pelo Ocidente por séculos. Os russos ousaram. Eles desafiaram o Império e venceram.
A ironia da história é que os russos, um povo europeu branco de língua eslava, tornaram-se o escudo militar do resto do mundo porque o Ocidente se recusou a integrá-los após a queda do comunismo. Imagino que os eslovenos estejam em uma posição cultural particularmente privilegiada para apreciar essa ironia, embora eu saiba muito bem, como antropólogo da família e da religião, que, apesar de sua língua eslava, a Eslovênia está muito mais próxima social e ideologicamente da Suíça do que da Rússia.
Posso esboçar aqui um modelo do deslocamento do Ocidente, apesar das inconsistências da política de Trump, o presidente americano da derrota. Essas inconsistências não são, na minha opinião, o resultado de uma personalidade instável e, sem dúvida, perversa, mas de um dilema insolúvel para os Estados Unidos. Por um lado, seus líderes, tanto no Pentágono quanto na Casa Branca, sabem que a guerra está perdida e que a Ucrânia terá que ser abandonada. O bom senso, portanto, os leva a querer sair da guerra. Mas, por outro lado, esse mesmo bom senso os faz prever que a retirada da Ucrânia terá consequências dramáticas para o Império que as derrotas do Vietnã, Iraque ou Afeganistão não tiveram.
DERROTA ESTRATÉGICA
É, de fato, a primeira derrota estratégica dos EUA em escala global, em um contexto de desindustrialização massiva dos EUA e difícil reindustrialização. A China tornou-se a oficina do mundo; sua fertilidade muito baixa, sem dúvida, impedirá que substitua os EUA, mas é tarde demais para competir com eles industrialmente.
A desdolarização da economia mundial começou. Trump e seus conselheiros não aceitam porque significaria o fim do Império. No entanto, uma era pós-imperial deve ser o objetivo do projeto MAGA, ‘Make America Great Again’, que busca o retorno do estado-nação americano. Mas para um Estados Unidos cuja capacidade produtiva em bens reais é agora muito baixa é impossível desistir de viver a crédito como faz produzindo dólares.
Tal recuo monetário imperial implicaria uma queda brutal em seu padrão de vida, mesmo para os eleitores populares de Trump. O primeiro orçamento da segunda presidência de Trump, o “One Big Beautiful Bill Act”, permanece imperial, apesar das proteções tarifárias que incorporam o projeto ou sonho protecionista. O OBBBA relança os gastos militares e o déficit. Quem fala de déficit orçamentário nos Estados Unidos está inevitavelmente falando da produção de dólares e de déficit comercial. A dinâmica imperial, ou melhor, a inércia imperial, não cessa de minar o sonho de um retorno ao Estado-nação produtivo.
Na Europa, os líderes ainda não entendem completamente a derrota militar. Eles não dirigiram as operações. Foi o Pentágono que elaborou os planos para a contraofensiva ucraniana no verão de 2023 (durante o qual escrevi A Derrota do Ocidente). Os militares dos EUA, embora tenham feito seu representante ucraniano lutar na guerra, sabem que colidiram com a defesa russa, porque não conseguiram produzir armas suficientes e porque os militares russos foram mais espertos do que eles. Os líderes europeus forneceram apenas sistemas de armas, e não os mais importantes.
Sem saber da magnitude da derrota militar, eles sabem, em vez disso, que suas próprias economias foram prejudicadas pela política de sanções, especialmente pela interrupção do fornecimento de energia russa barata. Dividir o continente europeu em dois economicamente foi um ato de loucura suicida. A economia alemã está estagnada. Em todo o Ocidente, a pobreza e as desigualdades estão aumentando. O Reino Unido está à beira do abismo. A França está logo atrás. Sociedades e sistemas políticos estão bloqueados.
OCIDENTE SOB PRESSÃO
Uma dinâmica econômica e social negativa já existia antes da guerra e já estava colocando o Ocidente sob grande pressão. Era visível, em graus variados, em toda a Europa Ocidental. O livre comércio mina a base industrial. A imigração desenvolve uma síndrome de identidade, especialmente nas classes populares privadas de empregos seguros e bem remunerados.
Mais profundamente, a dinâmica negativa da fragmentação é cultural: o ensino superior de massa cria sociedades estratificadas nas quais os mais educados – 20%, 30% ou 40% da população – começam a viver entre si, a se considerarem superiores, a desprezar os setores populares e a rejeitar o trabalho manual e a indústria. A educação primária para todos (alfabetização universal) alimentou a democracia, criando uma sociedade homogênea com um subconsciente igualitário. O ensino superior deu origem a oligarquias e, às vezes, plutocracias, sociedades estratificadas invadidas por um subconsciente desigual.
Um paradoxo definitivo: o desenvolvimento do ensino superior acabou fazendo com que essas oligarquias ou plutocracias rebaixassem seu nível intelectual! Descrevi essa sequência há mais de um quarto de século em L’Illusion économique, publicado em 1997. A indústria ocidental deslocou-se para o resto do mundo e, naturalmente, para as antigas democracias populares da Europa Oriental que, libertadas da sua adesão à Rússia Soviética, recuperaram o seu estatuto secular de periferia dominada pela Europa Ocidental. No Capítulo 3, falo em detalhes sobre esse tipo de China interior, onde ainda há muitos trabalhadores industriais. Em toda a Europa, no entanto, o elitismo dos educados deu origem ao “populismo”.
A guerra aumentou a tensão na Europa. Empobrece o continente. Mas, acima de tudo, como um grande fracasso estratégico, deslegitima líderes incapazes de levar seus países à vitória. O desenvolvimento de movimentos populares conservadores (aos quais as elites jornalísticas costumam se referir com termos como “populista”, “extrema-direita” ou “nacionalista”) está se acelerando.
EUROPA SOFRE
Reforma do Reino Unido no Reino Unido. AfD na Alemanha, Rassemblement National na França… Ironia sempre: as sanções econômicas com as quais a OTAN esperava uma “mudança de regime” na Rússia estão prestes a trazer uma cascata de “mudança de regime” para a Europa Ocidental. As classes dominantes ocidentais são deslegitimadas pela derrota, enquanto a democracia “autoritária” russa é relegitimada pela vitória, ou melhor, super legitimada, já que o retorno da Rússia à estabilidade sob Putin assegurou-lhe desde o início uma legitimidade inquestionável.
É assim que nosso mundo se parece à medida que 2026 se aproxima.
A desintegração do Ocidente assume a forma de uma “fratura hierárquica”.
Os EUA estão abrindo mão do controle da Rússia e, cada vez mais, eu acho, também da China. Submetidos ao bloqueio chinês por suas importações de samário, um metal raro indispensável para a aeronáutica militar, os EUA não podem mais sonhar em enfrentar a China militarmente. O resto do mundo – Índia, Brasil, mundo árabe, África – se beneficia disso e escapa deles.
Mas os EUA estão se voltando energicamente contra seus “aliados” europeus e do Leste Asiático em um último esforço de super exploração e também, reconhecidamente, por puro despeito. Para escapar de sua humilhação, para esconder sua fraqueza do mundo e de si mesmos, eles punem a Europa. O Império devora a si mesmo. Este é o significado das tarifas e investimentos forçados impostos por Trump aos europeus, que se tornaram súditos coloniais de um império reduzido em vez de parceiros. A era das democracias liberais solidárias acabou.
O trumpismo é um “conservadorismo popular branco”. O que emerge no Ocidente não é uma solidariedade de conservadorismos populares, mas uma ruptura de solidariedades internas. A raiva provocada pela derrota leva cada país, para dissipar seu ressentimento, a se voltar contra os mais fracos. Os EUA se voltam contra a Europa ou o Japão. A França revive seu conflito com a Argélia, uma ex-colônia. Não há dúvida de que a Alemanha, que de Scholz a Merz concordou em obedecer aos EUA, voltará sua humilhação contra seus parceiros europeus mais fracos. O meu país, a França, parece-me ser o mais ameaçado.
NIILISMO
Um dos conceitos fundamentais da derrota do Ocidente é o niilismo. Eu explico como o “estado zero” da religião protestante – secularização encerrada – não apenas explica o colapso educacional e industrial dos Estados Unidos. O estado zero também abre um vácuo metafísico. Pessoalmente, não sou crente e não milito por nenhum retorno da religião (não acho que seja possível), mas como historiador devo observar que o desaparecimento dos valores sociais de origem religiosa leva a uma crise moral, a um impulso de destruir coisas e homens (guerra) e, em última análise, a uma tentativa de abolir a realidade (o fenômeno transgênero para os democratas americanos e a negação do aquecimento para os republicanos, por exemplo).
A crise existe em todos os países completamente secularizados, mas é pior naqueles cuja religião era o protestantismo ou o judaísmo, religiões absolutistas em sua busca do transcendente, em vez do catolicismo, mais aberto à beleza do mundo e da vida terrena. É precisamente nos Estados Unidos e em Israel que vemos formas paródicas de religiões tradicionais se desenvolvendo, paródias que, na minha opinião, são essencialmente niilistas.
Essa dimensão irracional é o cerne da derrota. Assim, isso não é apenas uma perda “técnica” de poder, mas também um esgotamento moral, uma ausência de objetivo existencial positivo que leva ao niilismo.
Esse niilismo está por trás da disposição dos líderes europeus, especialmente nas margens protestantes do Báltico, de ampliar a guerra contra a Rússia por meio de provocações incessantes. Esse niilismo também está por trás da desestabilização do Oriente Médio pelos EUA, o lugar por excelência de expressão da raiva resultante da derrota americana pela Rússia. Acima de tudo, não cedamos à evidência demasiado fácil de uma autonomia militar do regime de Netanyahu em Israel no genocídio de Gaza ou no ataque ao Irão.
EUA E O CAOS
Zero protestantismo e zero judaísmo misturam tragicamente seus efeitos niilistas nesses acessos de violência. Mas em todo o Oriente Médio são os EUA que, ao fornecer armas e às vezes atacar a si mesmos, são responsáveis pelo caos. Eles empurram Israel para a ação como pressionaram os ucranianos. A primeira presidência de Trump estabeleceu a embaixada dos EUA em Jerusalém, e foi Trump quem primeiro imaginou Gaza transformada em um resort à beira-mar.
Estou ciente de que seria necessário um livro para provar essa tese, um livro que desmantelaria as interações entre os atores um por um. Mas, como historiador de profissão e depois de meio século de geopolítica, sinto que, como a OTAN Europa, Israel não é mais um estado independente. O problema do Ocidente é a morte programada do Estado-nação.
O Império é vasto e se decompõe em som e fúria. Este Império já é policêntrico, dividido em seus objetivos, esquizofrênico. Mas nenhuma de suas partes é independente. Trump é seu atual “centro”; é também sua melhor expressão ideológico-prática, pois combina uma vontade racional de se retirar para sua esfera de dominação imediata (Europa e Israel) com impulsos niilistas que preferem a guerra. Essas tendências – retirada e violência – também são expressas no coração americano do Império, onde o princípio da fratura hierárquica funciona internamente. Cada vez mais autores anglo-americanos estão evocando a chegada de uma guerra civil.
A plutocracia americana é pluralista. Há o dos financistas, o das empresas petrolíferas, o do Vale do Silício. Plutocratas trumpistas, petroleiros do Texas ou recém-chegados ao Vale do Silício desprezam as elites educadas e os democratas da Costa Leste, que por sua vez desprezam os trumpistas brancos no coração, que por sua vez desprezam os democratas negros e assim por diante.
INTERNO E EXTERNO
Uma das particularidades interessantes da América de hoje é que seus líderes estão achando cada vez mais difícil distinguir entre interno e externo, apesar da tentativa do MAGA de impedir a imigração do Sul com um muro. O exército dispara contra barcos pesqueiros que saem da Venezuela, bombardeia o Irã, entra no centro de cidades democratas nos Estados Unidos, ordena que aviões israelenses ataquem o Catar, onde está localizada uma enorme base americana. Qualquer leitor de ficção científica reconhecerá nessa enumeração perturbadora o início de uma entrada na distopia, ou seja, em um mundo negativo em que se misturam poder, fragmentação, hierarquia, violência, pobreza e perversidade.
Vamos continuar a ser nós mesmos, fora dos Estados Unidos. Mantenhamos nossa percepção do interior e do exterior, nosso senso de moderação, nosso contato com a realidade, nossa concepção do que é justo e belo. Não nos deixemos arrastar pelos nossos próprios dirigentes europeus, essas pessoas privilegiadas perdidas na história, desesperadas por terem sido derrotadas, aterrorizadas com a ideia de um dia serem julgadas pelos seus povos, para uma fuga para a guerra. E, acima de tudo, continuemos a refletir sobre o significado das coisas.
[*] Emmanuel Todd é um cientista político, historiador, sociólogo e antropólogo francês
Publicado originalmente em La hine