
A Procuradora Geral da República, Raquel Dodge, entrou no Supremo Tribunal Federal (STF) com pedido de anulação do acordo realizado pela força-tarefa da Operação Lava Jato em Curitiba com a Petrobrás e com autoridades norte-americanas, para destinar US$ 682.560.000 (682 milhões e 560 mil dólares) – correspondente a 80% do que a empresa brasileira aceitou pagar nos EUA -, a uma organização de direito privado.
A nós pareceu estranho que a força-tarefa da Lava Jato tivesse realizado um acordo internacional – pela Constituição, os acordos internacionais necessitam da apreciação e aprovação do Senado –, ainda que através da Petrobrás (formalmente, o acordo da força-tarefa é com a Petrobrás, mas o acordo desta com as autoridades dos EUA, segundo o texto do primeiro, dependeria do acordo com a força-tarefa).
Na terça-feira, o atual coordenador da força-tarefa da Lava Jato em Curitiba, Deltan Dallagnol, desistiu do acordo – que, por sua iniciativa, já fora aprovado pela 13ª Vara Federal de Curitiba (essa aprovação era uma das condições do acordo, segundo o texto divulgado pelo procurador).
Resta saber onde estava a cabeça de Dallagnol ao promover um acordo que somente serve para enfraquecer a Operação Lava Jato, e, concretamente, o combate à corrupção.
Provavelmente, Dallagnol estava mais preocupado em aparecer, do que em combater, de verdade, a corrupção – ou seja, levar à frente a Operação Lava Jato.
Pois, se é verdade que o acordo não era o que disseram os lulistas, também não é verdade que as críticas a ele vieram somente de “investigados” pela Operação Lava Jato, como disse o procurador Roberson Pozzobon.
Está fazendo falta, na força-tarefa da Lava Jato, o experiente procurador Carlos Fernando dos Santos Lima, que, infelizmente, aposentou-se em setembro passado.
Dallagnol, desde o notório “powerpoint” de Lula, vem se esmerando em colocar a Operação sob risco – e, portanto, o combate à corrupção – fornecendo motivos para que corruptos envolvam pessoas de boa fé no desgaste à Lava Jato (v. HP 21/09/2016, A encenação de Lula e do procurador Deltan Dallagnol).
Mas vamos ao mérito da questão.
AS CLÁUSULAS
Um dos maiores absurdos do governo Temer foi a aceitação, pela Petrobrás, de pagar US$ 853.200.000 (853 milhões e 200 mil dólares) ao governo dos EUA para que cessassem os processos de “investidores” (proprietários de ações da Petrobrás nos EUA) por supostos prejuízos, devido aos acontecimentos investigados pela Operação Lava Jato.
Esses US$ 853,3 milhões, bem entendido, não eram (e não é) para “ressarcir” os supostos investidores – que, aliás, encheram as burras com os resultados da Petrobrás, nos anos anteriores ao estouro dos esquemas de corrupção.
Esse dinheiro era para o governo dos EUA, segundo diz o “acordo” assinado pelo procurador Dallagnol:
“Conforme previsto no acordo com a SEC [que corresponde à CVM na fiscalização das Bolsas dos EUA] e DOJ [Ministério da Justiça dos EUA], na ausência de acordo com o Ministério Público Federal [do Brasil], 100% do valor acordado com as Autoridades Norte-Americanas será revertido integralmente para o Tesouro norte-americano”.
Sendo assim, as iniciativas para repatriar esse dinheiro pareciam – e parecem – justas.
Mas não da forma que Dallagnol encaminhou a questão.
Diz o acordo assinado por ele:
“Por iniciativa do Ministério Público Federal e da Petrobrás, as Autoridades Norte-Americanas consentiram com que até 80% (oitenta por cento) do valor previsto nos acordos com as autoridades dos Estados Unidos da América sejam satisfeitos com base no que for pago no Brasil pela Petrobrás, conforme acordado com o Ministério Público Federal.”
Não há mais detalhes sobre essa “iniciativa” conjunta do “Ministério Público Federal” e da Petrobrás – mas é algo que merece atenção.
Em primeiro lugar, e sobretudo, merece atenção porque o “Ministério Público Federal” não é a força-tarefa da Lava Jato. A força-tarefa da Lava Jato é uma parte do Ministério Público Federal, aliás, pequena.
Então, como pode a força-tarefa da Lava Jato assinar um acordo – e um acordo internacional, segundo o próprio texto que ela divulgou (“por iniciativa do Ministério Público Federal e da Petrobrás, as Autoridades Norte-Americanas”, etc.) – em nome do Ministério Público Federal, que tem como chefe a Procuradora Geral da República, que sequer foi informada sobre esse acordo?
Mais: quem determina para onde vai o dinheiro repatriado?
O procurador Dallagnol? A força-tarefa da Lava Jato?
O procurador, no acordo com a Petrobrás – e com as autoridades dos EUA – destina-o a uma entidade privada, sob aprovação da 13ª Vara Federal de Curitiba, que teria como objetivo incutir uma “cultura republicana”, etc.
Isso, para gerir um fundo de US$ 682.560.000, ou seja, R$ 2 bilhões e 500 milhões.
Especifiquemos:
Metade desse dinheiro é destinado à própria fundação, a ser criada, de direito privado.
A outra metade é destinada a “satisfação de eventuais condenações ou acordos com acionistas que investiram no mercado acionário brasileiro e ajuizaram ação de reparação, inclusive arbitragens, até a data de 08 de outubro de 2017, sendo certo que a reserva desse montante para tal finalidade não limita a eventual responsabilidade da Petrobrás em demandas judiciais e arbitrais decorrentes de possíveis prejuízos ocasionados a seus acionistas”.
É claro que isso é totalmente ilegal.
Sem contar que só existe uma razão para o governo dos EUA destinar dinheiro que extraiu da Petrobrás para ressarcir prejuízos de acionistas no Brasil: esses acionistas são americanos.
Quanto à fundação privada, quem escolheria a sua direção?
Na verdade, a força-tarefa do procurador Dallagnol, aqui chamada de “Ministério Público Federal”:
“Cláusula 2.4.2. O Ministério Público Federal ficará responsável por buscar meios para a constituição de fundação privada (inclusive a redação de sua documentação estatutária), com sede em Curltiba/PR, e poderá contar com o auxílio de entidade(s) respeitada(s) da sociedade civil, do poder público, ou do Ministério Público para conferir o máximo de efetividade às finalidades do acordo.
“2.4.3. O Ministério Público Federal constituirá, ou zelará para que seja constituído, um Comitê de Curadoria Social (CCS), até 90 (noventa) dias após a assinatura deste acordo, composto por até 5 (cinco) membros, com reputação ilibada e trajetória reconhecida em organizações da sociedade civil, no investimento social e/ou áreas temáticas cobertas na destinação deste recurso, o qual supervisionará a constituição da fundação.
“2.4.3.1. O Ministério Público Federal solicitará a pelo menos 5 entidades reconhecidas da sociedade civil a indicação de nomes para comporem o CCS, acompanhados de descritivo breve do currículo ou experiência que embasa a indicação.
“2.4.3.2. O Ministério Público Federal submeterá os nomes, escolhidos dentre os indicados e outros que atendam os critérios supramencionados, para que a composição final do CCS seja aprovada pelo Juízo que homologar este acordo”.
E, mais à frente:
“3.1. Fica assegurado ao Ministério Público Federal, por meios próprios, o direito de fiscalizar o cumprimento das obrigações assumidas…”.
E, em seguida:
“3.2. Sem prejuízo da disposição supra, a Petrobrás se compromete a:
“(i) manter o Ministério Público Federal sempre atualizado dos andamentos dos Processos Judiciais e Arbitrais de que tratam as destinações do item 2.3.21;
“(ii) encaminhar ao Ministério Público Federal, sempre que solicitado, cópia integral dos autos dos Processos Judiciais e Arbitrais;
“(iii) não se opor a eventual pedido de ingresso do Ministério Público Federal nos Processos Judiciais e Arbitrais;
(iv) fornecer documentos e informações solicitados pelo Ministério Público Federal em conexão com o objeto do presente acordo”.
Achamos que não são necessárias mais demonstrações de quem mandaria na fundação do procurador Dallagnol.
Sempre com o cuidado de observar que o “Ministério Público Federal” a que ele se refere, não é o mesmo que as pessoas – inclusive a sua chefe, Raquel Dodge – entendem por Ministério Público Federal.
INCONSTITUCIONAL
Surpreendentemente, mesmo antes de constituída essa fundação, a Petrobrás já depositou 2 bilhões, 567 milhões, 756 mil e 592 reais em uma conta gerida pela 13ª Vara Federal de Curitiba, para depois serem transferidos para a “fundação” do procurador Dallagnol.
A Procuradora Geral – que é a chefe do Ministério Público – tem toda razão quando diz, em seu pedido ao STF para que anule a decisão da 13ª Vara que homologou esse acordo, que a decisão – e, portanto, o acordo – “viola preceitos fundamentais e, portanto, é inconstitucional”.
Isto porque essa decisão “atribui a um órgão do Estado brasileiro – o Ministério Público Federal – o desempenho de função e obrigações que extrapolam os limites constitucionais de sua atuação e que implica verdadeira concentração de poderes entre a atividade de investigar e atuar finalisticamente nos processos judiciais e a de executar um orçamento bilionário, cuja receita provém de acordo internacional do qual não é parte nem interessado” (PGR, ADPF, grifo nosso).
Mais adiante, depois de destacar que a força-tarefa da Lava Jato não podia assinar em nome do Ministério Público Federal:
“A análise sistemática dos termos deste Acordo, acima destacados, evidencia que a responsabilidade pela gestão e aplicação desses vultosos valores foi entregue aos Procuradores que integram a Força-Tarefa Lava Jato Curitiba, que foram signatários de um pacto de natureza administrativa, sem terem poderes constitucionais e legais para tanto, e levaram-no à homologação em juízo sem competência jurisdicional para a matéria, que assim agindo feriu o artigo 109-I da Constituição.
“Assim, desviaram-se de suas funções constitucionais ao assumir o compromisso de desenvolver uma atividade de gestão orçamentária e financeira de recursos, por meio de uma fundação de direito privado, em situação absolutamente incompatível com as regras constitucionais e estruturantes da atuação do Ministério Público, violando a separação das funções de Estado e da independência funcional dos membros do Parquet [Ministério Público].
“Não pode o Parquet, por mais louvável que seja a finalidade de sua intervenção, perder a essência da sua atuação, que é a independência funcional pela equidistância das partes envolvidas nos litígios. (…) E, com muito mais rigor, esta vedação aplica-se às entidades privadas – como a fundação a que se refere o Acordo – ainda que sem fins lucrativos.
“Ocorre que se, como relatado pela Juíza Federal autora do ato ora questionado, provas dos fatos que conduziram ao Acordo firmado entre a Petrobrás e as autoridades americanas tiveram como base probatória as investigações e ações penais da Operação Lava Jato em Curitiba, esta é exatamente a razão pela qual o Ministério Público Federal ou de quaisquer de seus membros é obstado, pela Constituição, de receber ou participar da gestão do dinheiro devolvido à Petrobrás e ao Brasil pelos Estados Unidos da América.
“Os membros do MPF que investigam e atuam ou atuaram em processos penais, de improbidade ou cíveis devem permanecer isentos para o exercício de suas atribuições, e não se imiscuir na formatação e gestão de instituição de direito privado para gerir recursos disponibilizados pela empresa cujos ex-gestores e funcionários praticaram atos de corrupção, de lavagem de dinheiro e de organização criminosa”.
Aqui, a Procuradora aponta algo falso (v. acima) no texto do acordo:
“A cláusula do Acordo estabelecido entre a Petrobrás e o Departamento de Justiça americano, abaixo transcrita, não estabelece condição alguma para que o MPF seja o gestor desses recursos, ou defina sua aplicação em finalidades estabelecidas por ele.
“Ainda que houvesse uma cláusula nesse sentido, ela não poderia ser aplicada, justamente por ferir preceito fundamental do ordenamento constitucional, que trata do limite funcional da atuação dos membros do Ministério Público”.
Em seguida, ela transcreve o texto, em inglês, com a tradução, do acordo da Petrobrás com as autoridades norte-americanas, onde é dito que “as obrigações de pagamento da Companhia para os Estados Unidos estarão completas mediante o pagamento de US$ 85.320.000,00, equivalente a 10 por cento da Pena Criminal Total, desde que a Companhia pague os valores remanescentes ao Brasil e à SEC de acordo com seus respectivos contratos”.
São mencionados o Tribunal de Contas da União e a Comissão de Valores Imobiliários (CVM), mas não o Ministério Público.
Por fim, diz a Procuradora:
“Não compete ao Ministério Público Federal ou ao Juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba administrar e gerir, por meio de fundação, recursos bilionários que lhe sejam entregues pela Petrobrás.
“A legislação penal brasileira regula com clareza a destinação de recursos desviados dos cofres públicos e limita a aplicação discricionária desses valores.
“Devem, primeiramente, recompor o patrimônio da vítima; destinar-se à própria União nos casos em que o crime é federal e não se trata de ressarcimento; destinar-se a fundos específicos, como é o caso do Funpen ou do Fundo de Direitos Difusos.
“O sistema não permite – justamente em razão dos princípios constitucionais fundamentais da correta gestão dos recursos públicos – que haja desvio desta destinação, de modo discricionário, pelo juiz”.
Temos uma grande sorte no Brasil de hoje, apesar de vários azares: temos um Ministério Público que está vigilante – inclusive, em relação a possíveis desvios de seus membros.
CARLOS LOPES