Ícone da música latino-americana, o “cantautor” embalou o sonho e a luta de gerações por um mundo mais fraterno
Ícone da música latino-americana, o “cantautor” uruguaio Daniel Viglietti faleceu na última segunda-feira aos 78 anos em sua cidade natal, Montevidéu. Filho de mãe pianista e pai violonista, desde pequeno manteve estreito contato com a música clássica e popular, sustentando até o último suspiro a harmonia nos acordes e a voz em alto contra a injustiça.
Pegando gosto por suas canções, os povos da Nossa América as transformaram do Sul do rio Bravo à Patagônia em verdadeiros hinos de amor e rebeldia contra o gigante do Norte. Como declarou em seu programa radiofônico antes da visita de George W, Bush ao Uruguai, em março de 2007, “quero assinalar que é representante de um império que através da história muda de nomes, mas não de propósitos”.
Com “ética e estética”, como assinalavam os poetas que rodearam o teatro Solís, no centro da capital uruguaia para darem o último adeus ao maestro, Viglietti denunciou o preconceito e exortou a todos para que valorizassem a identidade comum com as raízes populares mais profundas. Assim enfatizou em Canción para mi América: “Dale tu mano al índio, Dale que te hará bien, Y encontrarás el camino, Como ayer yo lo encontre… La piel del indio te enseñará, Toda las sendas que habrás de andar, Manos de cobre te mostrarán, Toda la sangre que has de dejar”. Condenou os arames farpados do latifúndio e embalou a luta pela reforma agrária em A desalambrar: “Yo pregunto a los presentes, Si no se han puesto a pensar, Que la tierra es de nosotros, Y no del que tenga más. Yo pregunto si en la tierra, Nunca habrá pensado usted, Que si las manos son nuestras, Es nuestro lo que nos den, A desalambrar…”
Desde a década de 60, por toda a Pátria Grande, suas melodias envolveram as manifestações populares, ritmando o ondular das bandeiras e as marchas, injetando sonoridade e compromisso com a construção de um ser humano melhor.
Nas suas prospecções do processo revolucionário cubano, em 1967, afinou sua relação com a nova trova, se irmanando com nomes maiúsculos como Silvio Rodríguez, Pablo Milanês e Sara González. Data deste ano seu disco “Canções para o homem novo”, em que aparecia na capa com o violão embaixo do braço, empunhado quase como arma, sinalizando a identidade com a convocatória do Che para criar “um, dois, muitos Vietnãs”. Uma relação militante que se transformou em comoção, em um processo efervescente e solidário, reconhecido de forma emotiva pelo comandante Fidel Castro.
Devido à identidade com os seus e o socialismo, Daniel foi preso em 1972, sendo libertado após uma ampla campanha internacional que envolveu personalidades como Jean Paul Sartre, Oscar Niemeyer e Júlio Cortázar. Foi obrigado a viver 11 anos no exílio.
O passar do tempo só serviu para temperar ainda mais suas convicções sobre o inimigo comum dos nossos países e povos. “Permanece o latifúndio, sobrevive, se realimenta, se redimensiona. O jugo da banca internacional segue nos submetendo, salvo raríssimas exceções como são os casos de Cuba e do processo bolivariano, ou uma experiência altamente positiva como a Bolívia com Evo Morales. Todos estes elementos que permanecem, fazem que a canção – no meu caso – tenha um eco e possa encontrar novos ouvidos”, declarou recentemente.
Combatente de primeira linha contra os grandes conglomerados privados de comunicação, Viglietti alertava sobre seu papel altamente daninho para a democracia e para a integração. “Nos envolvem e manipulam em uma hipnose que rompe consciências, que adormece o sentido crítico. Não é fácil nem é habitual exercitar a contra-leitura do que vemos, do que lemos, do que escutamos, neste tipo de nova igreja inquisidora que é a mídia. As imagens tentam dominar o imaginário coletivo, e muitas vezes conseguem. E o cultural é infiltrado pela sedução das mensagens do poder”, denunciava.
Como declarou na despedida o compositor e professor uruguaio Rubén Olivera, “o grau de verdade e credibilidade em Viglietti era muito alto”. “Se pudesses separá-lo em um prisma, terias um arco-íris de ternura, humor, segurança, coerência, solidez. Hoje todos tinham algo para contar de sua conexão direta com cada ouvinte. Era uma fonte”, concluiu.
LEONARDO WEXELL SEVERO