Pela sua importância e atualidade, publicamos a seguir o texto do debate sobre a China socialista promovido pela União Municipal de Estudantes Secundaristas de São Paulo – UMES-SP, realizado no último dia 22 de dezembro, antes da virada do ano, através de uma Live que contou com a participação da professora da UFRJ Isabela Nogueira e de Haroldo Lima, dirigente nacional do PCdoB e ex-deputado constituinte de 1988, ambos estudiosos do país asiático. O debate foi mediado por Lucas Chen, presidente da UMES.
Sob o tema “Como a China conseguiu erradicar a pobreza e o que podemos aprender com isso”, Isabela e Haroldo consideram como um feito dos mais importantes da Humanidade a retirada de 800 milhões de chineses da pobreza nos últimos 40 anos, bem como a completa erradicação da pobreza extrema alcançada agora no início de dezembro.
Ressaltam, ainda, que isso só foi possível devido ao modelo baseado no predomínio da propriedade social e no controle público do mercado. Os palestrantes destacam, também, o papel ascendente da China no mundo atual, seus avanços em ciência e tecnologia e o expressivo investimento em infraestrutura e em fontes de energia limpa. Rigorosamente, o resultado foi uma formidável arrancada da China socialista no atendimento às crescentes necessidades de seu povo.
Uma boa leitura
A Redação
LUCAS CHEN:
Bem-vindos a mais um debate promovido pela União Municipal de Estudantes Secundaristas. Meu nome é Lucas Chen, sou presidente da UMES, além de descendente chinês. Este é o nosso segundo encontro com convidados para tratar de temas relevantes da atualidade e pretendemos realizar outros.
Nossos convidados de hoje são Isabela Nogueira, professora da UFRJ e coordenadora do Laboratório de Estudos da China, do Instituto de Economia da UFRJ, e Haroldo Lima, engenheiro e destacado dirigente nacional do PCdoB, ex-deputado federal por cinco mandatos, inclusive como constituinte em 1988, ex-diretor-geral da Agência Nacional do Petróleo (ANP), que esteve várias vezes na China e é um estudioso daquele país asiático.
É um grande prazer recebê-los aqui hoje.
Para iniciar, proponho 15 a 20 minutos para cada explanação inicial de Isabela e Haroldo sobre esse tema que desperta a atenção de todos mundo afora: Como a China conseguiu erradicar a pobreza; que país é esse que alcançou tal feito e, certamente, reflexões sobre o que podemos aprender com isso.
Este é um momento único que a China vive. Recebemos com grande felicidade a notícia de que 1,4 bilhão de habitantes desse grande país livraram-se da pobreza extrema. De 2015 a 2020, foram 55 milhões de pessoas que saíram dessa condição pelas ações do governo, além de uma série de inovações tecnológicas que modernizam a produção e promovem o desenvolvimento. Acho que temos muito a aprender com a China e esse debate é muito importante para todos nós.
Então, convidamos Isabela para iniciar sua exposição.
ISABELA NOGUEIRA:
Lucas, muito obrigado pelo convite. É muito legal estar aqui com vocês partilhando deste espaço, mesmo que virtual e, sobretudo, parabéns pelo tema.
Muito se fala sobre a China, acerca do seu rápido crescimento econômico, de sua industrialização, alguns falam de super-exploração de mão de obra, trabalho escravo e muito pouca atenção é dada para isso que é, do ponto de vista histórico recente, um dos feitos mais importantes da Humanidade, que é uma radical e brutal redução da pobreza na história chinesa nos últimos 40 anos.
Então, eu vou ter que voltar um pouco na História, não só porque sou professora mas porque nada acontece do dia para noite. O Lucas falou um número importante, são 50 milhões de pobres a menos nos últimos cinco anos, mas quando a gente pega os últimos 40 anos, aí estamos falando de alguma coisa em torno de 800 milhões de pobres a menos. São quatro Brasis. É uma redução muito abissal da pobreza. Não existe nada parecido na história da Humanidade, do ponto de vista de uma redução assim tão expressiva na pobreza.
Então vou voltar um pouquinho até os anos 80 para tentarmos ter uma noção do que os chineses fizeram. Afinal de contas, o que é que foi essa mágica, o que está por trás de um feito tão impressionante, tão extraordinário?
Não dá para a gente recuar muito na história da China, que é milenar. Mas um pouco da China que a gente conhece hoje, que os chineses chamam de um socialismo de mercado com características chinesas – e eu chamo de capitalismo de Estado com característica chinesa – ganha forma e vai se incrementando aos poucos a partir de 1978, que é quando o presidente Deng Xiaoping inicia um processo radical de reformas. E algumas das reformas mais importantes que aconteceram na China e que são determinantes para essa redução da pobreza abissal hoje em dia, começaram exatamente na década de 80.
Do que estamos falando? Quais sãs essas reformas tão importantes assim para a redução da pobreza? São reformas que estão concentradas essencialmente no campo, nas zonas agrárias. São reformas que estão muito concentradas no universo rural, onde estava nada mais nada menos que 80% da população chinesa lá nos anos 80.
Estamos falando de um país agrário, muito pobre, na verdade nem tão agrário assim porque há uma primeira industrialização e uma primeira transformação estrutural que se dá sob Mao Tse Tung, que vem aí nos anos 50, 60 e 70 e que a gente não vai conseguir falar. Mas se você olhar o PIB chinês naquela época já não é majoritariamente agricultura, já é essencialmente indústria. No entanto, 80% da população chinesa na década de 80 estava vivendo nas zonas rurais, numa condição de vida muito próxima da subsistência. O que significa, planta come, planta come; chove demais ou tem uma seca, não come.
Portanto, está muito próximo da insegurança alimentar e várias políticas foram aplicadas na tentativa de contornar essa situação ao longo do tempo. Com isso, o maoísmo conseguiu resultados importantes em termos de transformação estrutural da economia chinesa mas ele foi muito ruim do ponto de vista do aumento da produtividade agrícola. A produção agrícola per capita durante o maoísmo fica estagnada durante os anos 50, 60 e 70 na China.
Vai ser por aí que as reformas começam: um boom de produção agrícola na China, para um país que é essencialmente agrário, que está ali na margenzinha da insegurança alimentar, um aumento brutal na produção e na produtividade agrícola significa uma redução brutal na pobreza. Quando analisamos os sete primeiros anos de reformas na China, que vão de 1978 até 1985, a gente vai assistir a mais rápida e mais radical redução da pobreza na história da Humanidade. São 400 milhões – são dois Brasis – de pobres a menos no curtíssimo espaço de sete anos, ali no começo da década de 80.
Por isso é que estou dizendo que, o que assistimos hoje não é algo assim que caiu do céu, do nada, mas é uma coisa que começa lá nos anos 80 e vem dessa reforma da terra. Que reforma da terra é essa? Que milagre do ponto de vista da transformação rural eles estão fazendo? A primeira coisa é o estabelecimento de um modelo de uso da terra que chamamos de sistema de responsabilidade familiar. Isso significa que essas famílias não têm a propriedade da terra; a propriedade continua sendo do Estado, essencialmente do Partido Comunista, neste caso.
A propriedade da terra não é das famílias mas elas têm o direito de uso renovável, inclusive por um determinado período de tempo, em torno de 20 a 30 anos. Esses lotes são muito pequenos. Então significa que a gente está falando de uma agricultura familiar, de pequenas unidades produtivas e com um sistema de propriedade da terra muito particular e muito diferente daqui do Brasil. Ou seja, o ponto de saída é o Brasil ao contrário. É uma grande desconcentração da propriedade da terra, unidades de produção familiares, pequenos lotes de produção e de altíssima produtividade. Essa estória de que a pequena propriedade não é produtiva, isso é mentira. Não aceite isso, juventude!
A China é autossuficiente em arroz, milho e trigo, que são as principais commodities alimentares voltadas para o mercado interno. Obviamente que há um olhar estratégico para isso, ou seja, em caso de guerra, o país é autossuficiente. Na soja, que o Brasil exporta a rodo para China, eles abriram mão da produção doméstica, terceirizaram para o terceiro mundo, para o Brasil, dado que é uma commodity muito intensiva em terra e água. Então pegam essa soja e processam e transformam a maior parte em ração para animais, que são na maioria criados na própria China.
Então, temos na verdade uma China que mesmo nestas pequenas unidades de produção vai se transformar em uma superpotência agrícola, ao contrário do que muita gente acha. A China consome loucamente produtos agrícolas e é uma superpotência agrícola; eles exportam enormemente vegetais, frutas para a Ásia, eles têm uma superprodução agrícola.
Mas voltando aos anos 80, temos as pequenas unidades de produção familiar, muito subsídio do Estado. Até meados dos anos 80, o Estado comprava tudo que os agricultores produziam, havia a garantia de compra pelo Estado que por sua vez, depois abastecia escolas, hospitais, revendia para regiões onde está faltando, enfim há um grande gerenciamento do Estado nessa produção agrícola e muito subsídio agrícola. E depois, em terceiro lugar, há a criação da indústria rural, as chamadas empresas de vila e município, que são unidades de produção industrial nas zonas rurais, voltadas para a industrialização rural e que garantiu emprego e renda para esse morador rural que foi saindo aos poucos da agricultura.
Então, notem que a gente tem um modelo de desenvolvimento que, ao contrário do que muita gente pensa, não começa puxado pelo investimento estrangeiro direto, não começa puxado pelas exportações, não é orientado para fora. Eles fazem isso que é a verdadeira lição de casa para o desenvolvimento: uma enorme reforma das condições da base da pirâmide social, nos 80% mais pobres. É aí que eles começam as reformas, nas zonas rurais, nas regiões mais pobres.
E aí vem os anos 80 com uma enorme transformação na economia e é a partir dos anos 90 que começa a entrada do investimento estrangeiro direto, as grandes unidades produtivas, grandes fábricas, fábricas- dormitório chinesas, voltadas na sua maioria para a exportação. Mas notem aqui, ao contrário do que muita gente diz, essas grandes fábricas não estavam simplesmente recebendo investimento estrangeiro direto de braços abertos.
A China disciplina o investimento estrangeiro direto de uma forma fenomenal: obrigatoriedade de ter parceiro local, daí a obrigatoriedade de formar joint venture; obrigatoriedade de transferência de tecnologia; cotas para exportação para não competir com o mercado doméstico e atrair dólares; localização geográfica dessas fábricas, todo mundo quer ficar perto de Xangai e Pequim. O que o governo chinês falou? Não, de jeito nenhum. Vão para as regiões pobres do país; para Mongólia, para Manchúria, para as regiões mais remotas, para o oeste chinês onde o desenvolvimento está mais atrasado. E com isso eles conseguem levar adiante um processo de industrialização com menos heterogeneidade estrutural.
Aí estou usando um termo que é muito caro ao pensamento latino-americano, Furtado, Aníbal Pinto, que vão falar: vejam, o desenvolvimento da América Latina tem uma heterogeneidade brutal, São Paulo não tem absolutamente nada a ver com o Pará, com outras regiões do ponto de vista do desenvolvimento humano, de industrialização, há diferenças muito grandes. Isso é o subdesenvolvimento. É você ter uma região de alta produtividade e um mar de baixa produtividade.
O que os chineses fazem é romper ao longo dessas décadas com a heterogeneidade estrutural visando equalizar isso, não deixar um gap tão grande entre as regiões, evitar uma desigualdade imensa e isso é muito importante para evitar os bolsões miseráveis. Ao mesmo tempo é um país que vai controlar a migração enormemente via um sistema de registro doméstico muito autoritário e conforme vai se emaranhando com o sistema capitalista, o país vai absorvendo as várias contradições desse modo de produção, dentre as quais a gente descobre que, quanto mais controle no sistema capitalista, melhor. E que a China vai incorporando.
Ao mesmo tempo vem com um brutal aumento da produtividade, seja agrícola ou seja industrial. E com a repartição disso, no caso da China, do ponto de vista da distribuição de renda, uma distribuição de renda moderada e tudo isso vai acontecendo sem ter uma disparidade tão grande como no caso do Brasil, da Índia, da África do Sul e os demais BRICs, que são anomalias completas do ponto de vista da distribuição de renda. E sobre a distribuição de renda, avaliamos hoje em dia como um pouco melhor que a dos Estados Unidos, por exemplo. Isso faz com que, não tendo essa enorme disparidade, esse processo que já é mais igualizante de saída e pensado de forma a ser mais igualizante, há um plano por trás disso.
Depois, o que vimos nos anos mais recentes, sobretudo nos anos 90 e anos 2000, conforme vai se desmontando a antiga estrutura de produção socialista, baseada no emprego vitalício, nas grandes empresas estatais, também houve nesse período na China um enorme vácuo do ponto de vista da proteção social; uma ausência de quem vai fornecer cuidados com a saúde; quem vai fornecer educação; como é que vai ser esse sistema. E isso foi sendo desenhado, então, a partir do surgimento da sociedade harmoniosa, ainda com o presidente anterior, Hu Jintao, e reforçada com o presidente atual, Xi Jinping, de criação de um estado de bem-estar social na China, que chamamos de produtivista porque está muito vinculado ao lugar do trabalhador no mercado de trabalho. É bem estratificado. Se você é um trabalhador rural, o acesso que você tem à saúde e educação é pior do que se você é um trabalhador assalariado, com carteira assinada, na cidade.
Então, é bem segmentado. No entanto, o sistema universaliza o atendimento, por exemplo em saúde. Mas, é importante dizer, universaliza mas não é gratuito. Não existe tal coisa como um SUS onde todos entram e acessam o tratamento por ser cidadão. Na Covid houve o atendimento universalizado, gratuito, sem burocracia, mas normalmente, não. Se há uma consulta, um exame, a pessoa desembolsa um pouco no formato de um seguro co-participativo.
Do ponto de vista da educação, a China também segue essa ideia. Não é gratuita e universal, não é um estado de bem-estar generoso, mas ele é produtivista e centrado nessa ideia de harmonia social. Por exemplo, a universidade na China é pública mas não é gratuita e todos pagam para estudar. As creches, por exemplo, são 50% particulares. O ensino primário é gratuito em sua maioria. O ensino secundário, sobretudo o de melhor qualidade, vem se tornando pago também.
Finalmente, voltando para a questão da pobreza. A China já tinha eliminado a pobreza extrema massiva. No país não existe nada parecido com grandes favelas, nem regiões rurais extremamente pobres. Há universalização de água potável e infraestrutura básica. Quem visita a China sabe que é assim.
Então, a questão mais atual desse período com Xi Jinping foi eliminar o que ainda havia de pobreza extrema de difícil acesso, o que exige programas de intervenção de maneira focalizada, para atingir grupos mais vulneráveis, em regiões mais remotas, com programas e objetivos mais específicos. E isso foi conseguido e a pobreza extrema foi erradicada em todo o país.
Em termos de condições de vida, hoje, é muito melhor ser pobre na China do que no Brasil, sem dúvida.
Paro por aqui e estou à disposição para dúvidas, comentários e perguntas.
Obrigada, Lucas.
LUCAS CHEN
Isabela, muito obrigado por sua bela explanação sobre o tema. Falar sobre tudo isso, em tão pouco tempo, imagino a dificuldade que é. Mas acho que tivemos um início muito bom.
Após a fala do Haroldo Lima, vou abrir para as perguntas e quem quiser já pode enviar suas questões para uma rodada rápida de perguntas e respostas que faremos.
Passamos a palavra para o amigo Haroldo Lima fazer sua explanação inicial
HAROLDO LIMA
Primeiramente, como a Isabela começou, eu também quero parabenizar vocês pela iniciativa de discutir a China. Isso tem razão de ser, isso se justifica plenamente. Primeiro, vocês querem conhecer o quê?
Vocês querem conhecer o país que é a maior economia do mundo hoje, após mais de 30 anos de crescimento ininterrupto de 10% ao ano, a China se transformou na maior economia do mundo.
Tem, segundo o FMI e levando em conta a paridade de preços de compra, em outubro de 2020, PIB de US$ 24,1 trilhões, PIB per capita, e os Estados Unidos, em segundo lugar, com US$ 20,8 trilhões.
Vocês então querem conhecer isso. E o que é isso? É o maior parceiro comercial de quase todos os países do mundo. É considerado a fábrica do mundo, a locomotiva econômica do Planeta. Agora, nessa epidemia, perdeu menos de 5 mil pessoas, enquanto os Estados Unidos perderam 315 mil pessoas, o Brasil, 190 mil pessoas. [dados de 22/DEZ/20]
É o único país que, segundo o FMI, vai crescer no ano de 2020. O único país do mundo que vai crescer.
Acaba de, como vocês disseram aí e a Isabela comentou, cumprir a meta de erradicar a pobreza absoluta, o que é uma coisa estupenda, fenomenal, estou de acordo com os comentários que ela já fez sobre o assunto.
Daí a importância de se conhecer a China. Hoje, a China é a coqueluche do momento.
A questão de fundo que se coloca é o que estará fazendo esse país, de diferente dos demais 193 países, capitalistas em toda a sua ampla maioria, e com ampla experiência capitalista, muitas vezes maior do que a da China, para que ela esteja dando um banho em todos eles?
Por que a China sabe fazer mais capitalismo do que eles? Não, a China não tinha experiência nenhuma disso. Não é por aí que se explica a coisa, na minha opinião.
Estou de acordo com a Isabela quando ela diz que isso não caiu do céu. Não é um raio em céu azul, isso vem de uma história.
Muito rapidamente, eu queria dizer a vocês que a China é um país cuja identidade está muito intimamente ligada à sua história. Se a pessoa não souber alguma coisa da História da China, não entende bem o que está acontecendo. Vou dizer algumas coisas bem rápidas, porque o tempo é muito curto.
Vocês sabem que na China se escreve através de caracteres, os chamados caracteres chineses. Esses caracteres começaram a ser feitos há 2.000 anos antes de Cristo, quando Atenas e Esparta não existiam, quando a Roma só surgiu dez séculos depois, aí eles começaram a fazer os tais caracteres
A Grande Muralha, que todo mundo sabe, essa coisa monumental que tem aí, ela tem no seu veio central 8.850 km, se incluir as ramificações, dá 21.000 km. 8.850 km leva em conta que, de Porto Alegre a Belém do Pará, são 4.000 km. Então, só no veio central da Grande Muralha, dá para ir e voltar de Porto Alegre a Belém do Pará.
É uma coisa estupenda, que se fez ao cabo de 18 séculos construindo essa coisa. Goethe, nosso famoso autor do Fausto, disse a seguinte frase: a China já conhecia uma florescente literatura quando nossos antepassados europeus viviam em bosque.
Esse é que é o país de que estamos falando, um país que deu um banho em todos há tempos.
A China tem um papel proeminente em toda a História humana. Henry Kissinger, o ex-secretário de Estado norte-americano todo poderoso, disse sobre a China: “a parcela de contribuição da China no PIB mundial foi maior do que a de toda a sociedade ocidental em 18 dos últimos 20 séculos”. Ou seja, em 18 dos últimos 20 séculos, a China foi a maior potência do mundo, foi quem mais se desenvolveu. Esse negócio de se desenvolver é com a China, ela entende disso.
Disse ainda Henry Kissinger: em 1820, a China produziu mais de 30% do PIB mundial, mais que toda a Europa Ocidental, toda a Europa Oriental e todos os Estados Unidos, juntos. Isso é o que é a China.
Registre-se, paralelamente, ainda, muito de passagem, que essa sociedade se plasmou, se formou em um processo muito complexo, com muita guerra e tudo mais, mas também com um pensamento unificador desse povo, uma espécie de doutrina da vida, através da figura e do pensamento de Kung Fu Tse, que viveu aí 500 anos AC e deixou codificados seus ensinamentos nos Anacletos.
São pensamentos com diversos aforismos, voltados para o que ele chamava de sociedade justa e harmoniosa. Esse tal Kung Fu Tse é conhecido aqui no Ocidente pelo nome de Confúcio. É essa sociedade que chega até meados do século XIX, ela vem com esse passado extraordinariamente opulento.
Em meados do século XIX, há uma virada trágica na história chinesa, através das duas Guerras do Ópio, que a Inglaterra provocou contra a China, articulando-se com a França, Rússia, Portugal, Japão, Alemanha, Estados Unidos, Itália.
Oito países entraram na China nesse período e arrebentaram com o país, tomaram Hong Kong, tomaram Macau, tomaram outros territórios, tomaram Taiwan e ameaçaram tomar o Tibet. Destruíram o patrimônio artístico, uma coisa dramática, e estabeleceram indenizações extraordinariamente grandes. Tudo isso fizeram através de tratados que os chineses chamaram de Tratados Desiguais.
A consequência disso foi a redução drástica no nível de vida dos chineses, corrupção, tudo que é defeito que é muito conhecido no Ocidente e no mundo capitalista entrou na China nessa época.
Tem início o século XX, é o século da China Crucificada. Estavam dentro da China oito potências, a Áustria também. Repartiam regiões, repartiam cidades. Xangai tinha uma parte que era da França. Ali eu conheci uma praça, não sei se é mantida assim até hoje, com uma placa com os dizeres ‘Proibido a permanência de chineses e cachorros’.
O certo é que, através de uma luta prolongada, que teve muita guerra, a famosa Longa Marcha, o Exército Popular de Libertação, tendo à frente o Partido Comunista da China, não vamos esquecer que tudo isso está relacionado com a existência desse partido, toma-se o poder.
Vamos ver o que simbolicamente Mao Tse Tung disse na hora da tomada do poder. “Está proclamada a República Popular da China. De hoje em diante o povo chinês vai se pôr de pé”. Isso nos lembra os dizeres de Napoleão Bonaparte muitos anos antes, quando disse que “quando a China se levantar, o mundo estremecerá”.
A partir daí, começa a construção do socialismo na China, com o Partido Comunista à frente e o Exército Popular, que desbancou o Kuomintang. Uma construção extremamente complexa, tortuosa, cheia de idas e vindas, com problemas complicados.
A Isabela fez referência de passagem a problemas que foram criados, foi isso mesmo. Teve o período do Grande Salto à Frente, que foi de 58 a 60, foi um desastre. O período da Revolução Cultural, esse eu peguei, participei de certas coisas lá, de 66 até 76. Foi um desastre.
O fato é que Mao Tse Tung morre em 76 e em 78 há a reunião do Comitê Central do Partido Comunista da China a partir do que muda a situação. Muda que situação?
O socialismo que estava sendo construído não estava dando certo.
E Deng Xiaoping, grande dirigente comunista, introduz mudanças discutidas com o conjunto do partido com o objetivo de alterar, modernizar a construção do socialismo.
Ele verifica que não é uma coisa normal na doutrina marxista essa história de socialismo num país paupérrimo. Ele chegou a perguntar: será que é possível ter socialismo aqui? E depois dessa experiência toda com Mao Tse Tung, não deu certo, como vai ser?
Ele responde, é possível sim, mas esse socialismo tem características peculiares, que eles chamam de chinesas. E esse socialismo não é um socialismo desenvolvido, é um socialismo que está na fase primária, eles classificam.
Etapa primária não significa a primeira, que tudo tem que ter uma. Não é a isso que eles estão se referindo: é à etapa primitiva, atrasada, um socialismo primário.
E que características tem esse socialismo, essa questão está sendo muito discutida na China. Os chineses discutem muito na minha opinião um certo ressentimento da intelectualidade ocidental que elabora muito sobre a China, sem escutar uma palavra do que os chineses dizem.
O texto chinês, os três volumes da obra de Deng Xiaoping estão aqui. O tempo todo diz que o que estamos fazendo é construir um socialismo novo, renovado, que nunca existiu, que está na etapa primária, que está indo em frente, que está dando certo.
E o pessoal de fora, que não leva em conta o que eles dizem, afirma que o socialismo que está aí não é socialismo, socialismo verdadeiro é o que não deu certo.
O socialismo verdadeiro foi o da União Soviética, o que não deu certo, esse que está dando certo não é socialismo, dizem, é uma outra coisa.
E aí vamos devagar com o andor. Na China eles têm um lema que diz: ‘conheça a China pelo que ela diz de si própria’. Eu procuro me inspirar nisso.
E aí fizeram essa mudança, mudança bastante grande, lá na construção do socialismo. Começando pelo campo, onde eles introduziram o contrato de responsabilidade, que se baseava na propriedade estatal da terra. Contratos de 15 anos pelo qual o arrendatário da terra produzia determinados produtos e entregava ao Estado sob determinado preço, e o excedente ele podia levar ao mercado.
Isso nunca existiu. Isso é uma criação do socialismo moderno. O socialismo anterior é um socialismo sem mercado. Essa ideia de que se entrou mercado não é socialismo é uma ideia atrasada, porque o mercado é muito anterior ao capitalismo.
O capitalismo se apossou do mercado e fez do mercado uma coisa importantíssima para ele. O socialismo não pode se apossar do mercado também, não? Pode – e fazer do mercado uma coisa importante para o socialismo na China.
Aí chamam isso de etapa primária do socialismo na China e criam uma economia toda vinculada a esse formato novo, que eu vou colocar aqui só as ideias básicas:
1.É uma economia diferente do socialismo na União Soviética que eles tentaram fazer e não deu certo;
2.Eles introduziram múltiplas formas de propriedade. Opa! Isso é uma novidade no socialismo;
Dentro dessas múltiplas formas de propriedade, tem o predomínio da propriedade social. Opa! Não perde de vista o interesse social, o controle social.
Depois tem a planificação da economia – não a planificação anterior, a da União Soviética, de algum tempo atrás, que era absolutamente minuciosa, precisa, que não levava em conta as leis do mercado.
Dessa vez, faz-se a planificação, não minuciosa na sua generalidade, leva-se em conta as leis de mercado, e além do mais se promove o mercado também, com a compreensão de que o mercado e a planificação são duas formas de regulação.
Essas são as determinações básicas que saem dessa reunião a que eu estou me referindo. Qual a diretriz? O Estado regula o mercado, e o mercado orienta as empresas. Isso é uma criação nova, nenhum país capitalista do mundo faz isso. Nenhum país socialista fez isso no passado. O Lenin tentou fazer isso no final de vida, mas não deu certo, não teve mais muito tempo para isso.
Passaram a chamar de economia mercantil planificada socialista, que passou a uma forma mais simples, de economia socialista de mercado. O controle econômico dessa economia é feito pelo Estado, o Estado dirigido pelo Partido Comunista.
São 97 conglomerados, que controlam todos os setores estratégicos do país, ao lado de uma multidão de empresas de mercado, capitalistas, que não interferem no rumo da economia.
Algumas questões do momento, só para encerrar rapidamente.
Uma já foi falada pela Isabela e eu estou de acordo com o destaque que ela dá a isso que é o fim da pobreza absoluta, que é uma questão que foi registrada na história da Humanidade pela primeira vez agora.
Segunda questão: ajuda países mais pobres, mas aqui não se escuta dizer que a China suspendeu em $10,7 bilhões o pagamento do serviço da dívida dos países mais pobres. Isso não se divulga. Por que não divulga? Porque promove o socialismo. Se fosse uma nação capitalista, como os Estados Unidos, Inglaterra, França. Ninguém faz isso.
Terceira questão: a Nova Rota da Seda, a engenhosidade com que os chineses a criaram, basicamente no tempo de Xi Jinping. Revitaliza a nova Rota da Seda em termos absolutamente novos, introduzindo uma metodologia no contato da China com todos os países da Rota da Seda, uma política que eles chamam de ganha-ganha.
Faz acordos industriais de criação de infraestrutura com mais de 70 países e os convoca a discutir com a China um acordo de investimento, é o chamado ganha-ganha. Isso é fenomenal. Quem está no ganha-ganha? Mais de 70 países e, da América Latina, que eu saiba, Argentina, Chile e, possivelmente, o Peru. Brasil está fora, não toma nota disso, é contra, acha que é coisa de chinês.
Reparem bem, o investimento chinês no exterior caiu 3,2 % por ano entre janeiro e outubro e subiu 23,1% nos países da Nova Rota da Seda. Ou seja, a China está privilegiando os países da Nova Rota da Seda.
Tem outro problema complicado, que é o problema da guerra do 5G, que é um problema da competição entre a China e os Estados Unidos, que vamos ver como a coisa se devolve mais para a frente.
Não tenho mais tempo, eu fico por aqui. Em todas essas questões, há uma esperança no mundo, eu acho. É que há uma economia moderna socialista, planificada, que leva em conta a existência de mercado, que na primeira experiência do socialismo não se levou em conta e por isso o negócio pifou.
Esse caminho já vem sendo seguido pelo Vietnã, pelo Laos, já vem sendo seguido inicialmente, não muito, por Cuba. Ele abre um horizonte novo para nós todos no mundo inteiro que nos interessamos por ter uma vida justa e harmoniosa. Terminei.
LUCAS CHEN
Valeu Haroldo! Passou um pouquinho do tempo, mas está tudo em ordem. Como eu disse no início para Isabela, esse tema é complexo mesmo e precisa de tempo para conseguir desenvolver.
Antes de abrir para as perguntas, queria fazer uns breves comentários, inclusive se vocês quiserem comentar depois, sintam-se à vontade.
Eu estava analisando o PIB chinês e acho que isso é uma boa demonstração do que vocês falavam sobre a liderança mundial e a participação na economia. De 2012 até 2017, houve o anúncio do grande salto do PIB chinês de 54 trilhões de yuans para 80 trilhões, enquanto o restante do mundo continuava em crise aberta, e de 2017 para 2019, mesmo com a guerra comercial movida pelos EUA, cresceu de 80 trilhões para 99 trilhões. E, neste período, como foi dito, da crise em especial por conta do Covid, ainda assim, a China consegue manter o seu crescimento numa taxa acelerada em relação ao resto do mundo, o que é mais importante e significativo neste momento da pandemia.
Acho que isso é uma demonstração da forma como o povo chinês conseguiu encontrar o caminho para desenvolver o seu trabalho e distribuir a renda, ainda mais juntando essas duas informações mais recentes que tivemos sobre a erradicação da miséria no país. Acho que isso para o Brasil é um caminho de esperança.
A Isabela fez algumas comparações que ressaltam a grandeza do feito chinês ao retirar da pobreza extrema o equivalente a dois Brasis em termos de população.
Acho que para nós fica a lição de que é possível acabar a exploração, a miséria, ao contrário do que muitos dizem. Em primeiro lugar, é necessário que o Estado consiga atuar apontando o caminho para o desenvolvimento, distribuindo o trabalho e a renda para o conjunto de sua população, em especial para as regiões que mais necessitam. Algo que é tão lógico, mas que o exemplo vivo da China só ajuda, e muito.
Ao passo que isso é feito, o desenvolvimento tecnológico, cultural e educacional me parece algo surpreendente, tanto do ponto de vista da renovação energética que eles buscam com a descoberta e o uso das fontes renováveis, solar, eólica e nuclear. Além disso, é de imensa importância o fomento para as conhecidas tecnologias 5G, impressoras de 3D, e também o seu desenvolvimento científico e tecnológico aeroespacial. Isso é muito interessante porque o Brasil hoje caminha a passos largos no caminho contrário.
Quando estivemos discutindo acerca deste debate, vimos a sua importância pelos temas que levanta, em primeiro lugar, e também para enfrentar as fakenews espalhadas a rodo, em especial as mentiras sobre trabalho escravo, trabalho infantil e a péssima remuneração que existiria na China. A Isabela em sua intervenção já tratou isso devidamente.
Agora vamos às perguntas. O Haroldo começa respondendo e em seguida a Isabela, com cinco minutos para cada um.
LUCAS CHEN: A Mônica Pimenta, a quem agradeço a presença, perguntou o seguinte: Quando se fala em educação pública, porém não gratuita, é possível fazer um paralelo com o custo de nossa educação, no Brasil?
Acrescento, que se quiserem comentar um pouco mais sobre a educação, para a gente é um tema muito caro.
Nós somos uma entidade estudantil que defende em primeiro lugar a educação pública, gratuita, de qualidade. E eu vi recentemente, no relatório de 2017 do presidente Xi Jinping ao 19º Congresso do Partido Comunista Chinês, que ele estabelecia isso como a primeira meta do Plano de Desenvolvimento Social. O desenvolvimento da educação para o conjunto da população.
Então, se puderem comentar um pouco sobre isso e a forma como isso foi melhorando ao longo do tempo, temos todo o interesse .
HAROLDO LIMA
Sobre a educação pública e a gratuidade. Acho que era bom a gente ver que são coisas realmente diferentes. Pode existir a educação pública e gratuita. Pode existir a educação pública não gratuita. Agora, isso depende muito das condições do país, das condições de desenvolvimento do país. Eu tenho para mim que na China no período de Mao Tse Tung, um pouco antes, no período de 1976 em que eu estive por lá mais demoradamente, a educação que eu via por lá era toda gratuita.
Agora, eu percebo que na proporção que foi aumentando o nível aquisitivo do povo, o PIB per capita crescendo, etc., a educação pública deixou de ser gratuita. Aí tem que examinar a sabedoria do chinês. O socialismo não é o igualitarismo da pobreza, não é a distribuição da pobreza. O estado não é o financiador do povo. O estado, pelo contrário, é uma criação do próprio povo. O povo mantém o estado e o estado equilibra a distribuição das coisas de tal maneira que, se num determinado local, já é possível que o poder aquisitivo do povo já comporte que uma escola boa do Estado seja ajudada por uma contribuição mensal que não é exorbitante, isso deve ser feito. E isso não cria nenhum problema.
Agora os chineses estão dizendo que nos locais que acabaram com a pobreza absoluta, os cerca de 832 condados em que tinha uma renda per capita de 1,5 dólar por dia, que chegava a 250 reais por mês, a forma através da qual eles combateram a pobreza foi botando a educação pública e gratuita. E mais do que isso, a educação pública e gratuita, a previdência, a saúde – muito investimento na saúde. Por quê? Porque lá, se fosse para cobrar um pouquinho de todo mundo ninguém tinha para pagar. Lá era pobreza absoluta.
Agora, onde não é pobreza absoluta, você chega lá em Xangai ou em Pequim por que que o Estado vai ser patrocinador de regalias, de benefícios? Não é bem isso que é o caso de um socialismo. O socialismo precisa não ser explorador, não um Estado que vai exorbitar na cobrança de mensalidades para massacrar o povo, etc. Como uma primeira observação é isso.
LUCAS CHEN
Obrigado, Haroldo. Isa?
ISABELA
Vou falar primeiro sobre seus comentários e depois eu passo para a questão da educação.
O que o Lucas pontuou, que é interessantíssimo, sobre essa transformação chinesa é que não é simplesmente crescimento econômico; não é só uma taxa de crescimento grande ao longo do tempo, porque podia ser, por exemplo, um país que tivesse se transformado em uma maquiladora do mundo, aquele que importa muita coisa, processa e depois exporta tudo e poucas riquezas ficam domesticamente. Ou então ficam ali numa elite muito concentrada, descolada do resto da sociedade.
Não foi isso que aconteceu na China. Não foi uma economia de enclave, não se transformou em um país dependente de suas exportações, não foi isso. O que vimos foi um país que, por meio do crescimento econômico, foi fazendo uma mudança estrutural na economia. Foi subindo nas cadeias globais de valor e sofisticando enormemente a sua pauta exportadora e, mais do que isso, sua estrutura produtiva. A tal ponto que se transforma hoje no desafio competitivo e estratégico para os Estados Unidos nesse momento. Como o Japão foi lá na década de 70. Tanto que a gente está discutindo na universidade esse debate sobre transição hegemônica, se a China estaria fazendo um processo de transição hegemônica em relação aos Estados Unidos, em várias frentes.
A gente estava conversando com o Lucas sobre uma grande amiga em comum, a Esther Majerowicz, professora na UFRN, que estuda especificamente essa questão tecnológica chinesa hoje e a liderança tecnológica chinesa em vários setores que vão de trens de alta velocidade, energias renováveis, tecnologias de informação 5G, a Huawei é um caso desses, infraestrutura de maneira geral, linhas de transmissão de alta velocidade que têm tudo a ver com a possibilidade depois de uma nova transição energética agora para energias verdes. A China quer ser líder em tecnologias verdes!
Quem está pensando numa China com super-exploração do trabalho, trabalho infantil escravo, esse blá-blá-blá, está atrasado 30 anos. É basicamente isso: Se atualize urgentemente! Porque você nasceu e a China já era outra coisa em relação ao que você acha que a China é até hoje.
As coisas mudaram, mudaram muito rapidamente lá.
No entanto, isso não significa de forma nenhuma a ausência de problemas estruturais gravíssimos. Isso não significa de forma nenhuma a ausência de exploração do trabalho. E eu, nesse sentido, tenho uma interpretação diferente do Haroldo.
Acho que a divergência é super importante no debate, não vejo problema nenhum nisso, mas eu tenho uma interpretação diferente da do Haroldo e acho que é uma interpretação mais de fundo sobre a pergunta inicial do que é capitalismo, o que é socialismo. Acho que é aí que a gente diverge.
Eu não tenho dúvidas que a China hoje é um país capitalista de Estado, com enorme interferência do Estado. E aí o capitalismo percebido enquanto uma relação social, uma relação social que coisifica as pessoas, que coisifica as coisas, que artificializa essa relação e coloca – o exemplo primeiro disso, ali na abertura do Capital de Marx – é o fetiche, o fetiche da mercadoria, que te impede de ter uma relação efetivamente humana, uma relação sempre mediada por coisas. E passa pela coisificação do ser humano, que se transforma não mais em ser humano, que no fazer humano por meio do trabalho, mas na venda de sua força do trabalho para alguma coisa completamente alienada, um processo continuo de alienação que vai fazendo o capitalismo, que vai gerando uma angústia humana permanente nas pessoas, inclusive em países onde a pobreza extrema foi eliminada.
Se for para os países nórdicos, se for para países onde a pobreza não é um problema, por que essa angústia humana, essa insatisfação permanente em relação a como a sociedade se organiza continua? Por quê? Tem alguma coisa nesse desconforto em relação à forma como a alienação e a fetichização e essa relação mediada por coisas vai se estabelecendo.
E na China é isso que a gente assiste, ao longo do tempo. Guiado pelo Estado um processo de fortalecimento nacional muito forte, um projeto de modernização nacionalista muito forte, nacional desenvolvimentista muito forte que, no entanto, foi levando também a um processo de alienação profunda dessa classe trabalhadora, a problemas gravíssimos da forma como se estrutura a produção e em concomitância com a eliminação radical da pobreza.
Vocês vão me falar: o que você está me dizendo Isabela? Bem-vindo, isso é capitalismo. É a contradição na sua forma final.
E isso é muito claro na educação. A educação na China é gratuita e universal nos primeiros 9 anos do ensino, o que a gente chama aqui hoje de ensino básico. Nos outros níveis aí a coisa depende, já tem uma mercantilização da educação, há essas mediações que passam a definir ali um processo maior de segregação, segmentação, e de coisificação, de transformação em mercadoria também da educação.
Quando você vai para o ensino superior, por exemplo, que é público, de qualidade, mas não é gratuito, todo mundo paga. Isso vale para a pré-escola e vale para o ensino secundário, para os 3 ou 4 anos do ensino secundário de qualidade na China que cada vez mais é pago. Crescentemente pago.
E o que define se uma sociedade vai oferecer saúde gratuita? Como falei, na China a saúde também não é de graça. Você tem seguros universais obrigatórios, vários países têm esse sistema, não é uma particularidade chinesa. O que define se você vai ter um sistema de saúde a la Reino Unido, por exemplo, universal e gratuito, ou com seguro, tipo Suíça, por exemplo, tipo China? É o contrato social que se estabelece. Não é uma questão de falta de recursos.
Essa historinha da falta de recursos que os economistas ortodoxos empurram para a gente, como se o cobertor fosse curto, não desse para cobrir, como se o orçamento da família fosse a mesma coisa que o orçamento do Estado. Isso não é verdade. Quando o Estado gasta, quando investe, ele gera um negócio chamado demanda efetiva. O que significa, por exemplo, se o Estado constrói uma ferrovia ele está gerando emprego. Esse trabalhador que recebeu esse salário vai comprar comida, ou xampu com isso, ou seja, isso gera uma dinâmica econômica. Uma coisa levando a outra.
Não é a mesma coisa que eu, como professora. Se eu gasto mais do que eu recebo eu vou ter que me endividar, isso não vai gerar demanda efetiva para meu orçamento doméstico. A lógica do orçamento doméstico não é a mesma lógica do Estado. O que define se um Estado vai ser um Estado solidário, amplo, que oferece as coisas gratuitamente ou se vai ser um Estado que mede tudo mercantilisticamente é a luta, a luta política. É o contrato social que se estabelece a partir das lutas políticas de seus diferentes agentes.
Nesse sentido, do ponto de vista da educação pública e gratuita, é exatamente a capacidade de vocês irem lutando pela permanência do ensino público de qualidade. É essa capacidade de mobilização das diferentes classes sociais, dos diferentes grupos que vão definindo a situação. Não é uma lógica de cabe no bolso, não cabe no bolso.
LUCAS CHEN
Obrigado. Vamos dar continuidade, inclusive fomentando um pouco essa discussão e a diferença que existe hoje em nosso debate. Eu estou adorando a discussão porque é um debate sobre as duas principais vertentes que existem sobre a forma de discutir a China. E é bem legal que a gente possa presenciar isso ao vivo.
Para continuar, nossa diretora de Escolas Técnicas, Taine, enviou uma pergunta que é a seguinte:
“A energia é a base do mundo e possui uma importância gigantesca. Gostaria que vocês falassem mais sobre como a China tem tratado essa questão e de como seu desenvolvimento tem interferido nas relações globais.
ISABELA
A energia é um belo tema hoje para pensar a China. Os chineses estão investindo pesadamente nesta ideia de uma transição energética, num mundo que dependa menos de petróleo e que se torne mais verde. Sobretudo há uma visão muito clara nas lideranças chinesas de que é necessário ser líder, ter marcas líderes, ser aquele que detém o padrão tecnológico.
Então se você pega indústrias mais velhas, como a automotiva, do século passado, são líderes do ponto de vista de ser centro dinâmico industrial, as marcas estabelecidas que puxam a inovação tecnológica – Volkswagen, Ford, Fiat, Honda – são todas marcas europeias, estadunidenses ou japonesas. É difícil, a China está entrando nesta competição meio atrasada. No entanto, quando você pega energias renováveis, como a eólica e solar, são segmentos que não estão consolidados no mundo, são de fronteira tecnológica, onde a China percebe a grande possibilidade muito grande de se transformar em líder global. E investe pesadíssimo.
Ao mesmo tempo não é à toa que já é a maior base instalada e o maior produtor tanto de eólica, quanto de solar, seja de máquinas e equipamentos ou de bases produtivas instaladas. E está com as principais marcas, as principais tecnologias, as que vão se transformar em tecnologias de referência para o mundo daqui pra frente.
HAROLDO
Se olharmos direito, a primeira experiência socialista que se fez no mundo foi a da União Soviética e do campo do chamado Leste Europeu onde, em um determinado momento, tiveram um ímpeto desenvolvimentista muito grande. O desenvolvimento é da natureza da economia, todo o referencial básico dos marxistas é um regime que tenha mais produtividade. Ganha quem tiver mais produtividade. O socialismo vigora ou vale a pena lutar pelo socialismo, posto que tem mais produtividade que o capitalismo. Se não for isso não vale a pena, pelo contrário, o capitalismo é melhor, tem mais produtividade, desenvolve mais, etc.
Naquela época da experiência socialista soviética, o desenvolvimento se deu muito na base da produção massiva. Começaram com a socialização dos grandes meios de produção, a parte de metalurgia, a parte de transportes, de educação. Mas se olhar a partir de um determinado instante, entrou em cena a Guerra Fria e começou a se ter que investir muito no armamentismo para poder enfrentar seus problemas, o que fez com que aquela primeira experiência – a partir de determinado instante – ficasse atrás da corrente capitalista do mundo, posto que esta corrente se desenvolveu mais em tecnologias de ponta.
O início da robótica começou pelos Estados Unidos e pela Europa central, e isso sufocou a primeira experiência socialista do mundo.
Um dos fatores que levaram aquela primeira experiência a soçobrar foi que não conseguiu concorrer com o capitalismo que vinha com força nas tecnologias de ponta, que eram muito mais produtivas e mais eficientes.
Como gastaram muito dinheiro, isso acabou sufocando o processo de desenvolvimento da antiga União Soviética.
Posto isso, o que está acontecendo hoje com a China é o oposto. Esta é uma das novidades do socialismo chinês de hoje. Qual é a novidade? É que à luz da experiência anterior, levando em conta isso, desde tempos eles começam a investir em tecnologia de ponta, em energia renovável, em transição energética e começam a surpreender o mundo quando em 5G estão à frente de todos os demais países. E aí é o resto do mundo capitalista que não está conseguindo acompanhar. Eles têm uma dificuldade enorme e aí vem uma reação primária, como a do Trump, de que aqui o 5G chinês não entra. Um desses imbecis aqui do Brasil também dizendo que aqui o 5G chinês não entra. Você não pode se contrapor ao desenvolvimento tecnológico na base de levantar muros para ele não entrar, ele entra pelas ondas, entra por tudo.
Da mesma forma a vacina, que alguns grupos aqui do Brasil disseram não à vacina chinesa. E então descobriram que todas as vacinas que estão em cogitação hoje no mundo, as da linha de frente, todas, têm componentes da China. Umas vacinas têm completo, outras menos, mas têm. Então o que a China está fazendo é colocar o desenvolvimento tecnológico a um nível sem precedentes na transição energética, que está na linha de frente.
Mesmo nesta questão das grandes montadoras, Isabela, e é verdade, são suecas, alemãs, francesas e italianas e os chineses saíram atrasados, mas correndo para chegar na frente, sem percorrer o mesmo caminho. O caminho que eles estão percorrendo é o do carro elétrico ou híbrido, mais avançado do que por aqui.
As formas de energia eólica, como a Isabela falou. A energia solar, que até um tempo atrás era uma energia em tese muito promissora, mas cara. Os chineses diminuíram brutalmente o preço e hoje faz painel solar em cima do mar. O mundo capitalista não está conseguindo acompanhar o desenvolvimento da tecnologia de ponta nestes setores avançados.
E o Partido Comunista Chinês, sob a direção do Xi Jinping, está em caminho mais promissor, que é o da ecologia. Então a pergunta que você fez em relação ao 19º Congresso do Partido Comunista da China – que é quem dá a linha para o país – fala: nós vamos construir o socialismo ecológico. A temática da ecologia.
Até pouco tempo atrás a China era a maior produtora de gases de efeito estufa do mundo. E está diminuindo muito. Não acaba do dia para a noite, mas está reduzindo. E, paralelamente, está crescendo muito o potencial dessas energias renováveis com muito menos produção de gases de efeito estufa, etc. Era isso o que eu tinha a dizer.
LUCAS CHEN
Muito obrigado. Agora temos duas perguntas um tanto quanto relacionadas sobre a atuação do Estado frente à organização da economia interna, em especial.
A primeira é sobre a corrupção. O comentário é o seguinte: A China lida de uma forma muito efetiva contra a corrupção. Quais as medidas que foram tomadas e como os países que sofrem deste mal, a exemplo do Brasil, podem tomá-las como exemplo?
Como funciona a relação do governo chinês com as empresas privadas? Tem muita coisa que não chega de informação por aqui, parte por boicote das mídias tradicionais, parte por dificuldade de entendimento, de formação cultural e social.
HAROLDO
– A primeira questão é esta da corrupção. Eu sei que o combate que a China faz contra a corrupção é muito grande, muito rigoroso e a quantidade de gente que foi apanhada em atos de corrupção e que foi posta na cadeia e perdeu emprego é significativa. Tendo inclusive a dizer que as mudanças nas lideranças no 19º Congresso do Partido Comunista da China, permitindo a continuidade do Xi Jinping, estão relacionadas à luta contra a corrupção. Que uma das razões foi a luta contra a corrupção. Achou-se que na luta contra a corrupção ele liderou um processo que colocou tanta gente importante, que seria imprudente sair ele e colocar um novato, uma pessoa de menos experiência à frente do partido. Achou-se que era o caso de permanecer mais um tempo para dar continuidade a essa política intransigente.
Ele diz lá no seu informe uma coisa que eu também acho chocante. Ele diz que o problema principal que tendemos a enfrentar no partido e no Estado socialista chinês é o problema da corrupção. Problema principal? Eu fiquei assim… Rapaz! Mas ele diz isso, está neste livro dele. Esta é uma questão. Leve em conta que é um país gigantesco, são sete Brasis, com um socialismo primário, em que você vai desenvolvendo ao lado do desenvolvimento do mercado, de um mercado que é capitalista, que, como dizia o Deng Xiaoping, nós temos que fazer a abertura, nós temos que abrir a janela. E quando se abre a janela o ar puro entra, mas entram também os mosquitos, os percevejos, um montão de coisa que não presta, justamente a corrupção, a prostituição… Essa coisa vai entrando como mecanismo da chamada abertura. Eu acho que isso eles vão continuar, na minha opinião não vejo nenhuma vacilação na política do partido na China em relação à corrupção.
Sobre as relações do Estado chinês com as empresas, a Isabela já deu algumas indicações logo no início, na primeira fala dela. Eu conheço o microempresário brasileiro que envolvido com isso de que a China cria infraestruturas foi para lá a todo vapor para abrir uma fábrica e não sei o que lá nas vizinhanças de Xangai.
Eu conheço uma pessoa que pretendeu isso. Ela disse: olha nos receberam muito bem, mas disseram: aqui é diferente, aqui nós precisamos de uma fábrica sua, mas queremos receber ali. E ali é no Oeste, que é uma espécie de Nordeste brasileiro. Você coloque lá sua fábrica. O Estado é que dirige o mercado, não é o mercado que dirige o Estado, essa é a diferença essencial. Não existe no mundo nenhum sistema capitalista em que o mercado não dirija o Estado. O Estado é dirigido pelo mercado. Lá não. O Estado dirige o mercado, que estabelece as normas, estas coisas todas, inclusive do que produzir, a quantidade do que produzir, a parcela que será enviada ao exterior para não concorrer com as parcelas internas. Estes mecanismos dizem respeito à concepção básica do Estado chinês do momento.
ISABELA
– São dois grandes temas, tanto a corrupção quanto a relação do Estado com os seus capitalistas privados, com a sua burguesia doméstica. Vamos começar pela primeira pergunta, pela da corrupção. A pessoa que fez tem toda a razão. Há uma campanha desde que Xi Jinping, o presidente atual, assume o poder leva adiante uma campanha anticorrupção, como o Haroldo já falou, muito robusta, como uma das diretrizes essenciais da sua política.
São mais de cem mil pessoas condenadas por atos de corrupção num altíssimo nível. Estamos falando não é de médio escalão, não. Estamos falando inclusive do órgão máximo de tomada de decisão, o Comitê Permanente do Politburo, do Partido Comunista, composto por, de sete a nove pessoas, dependendo da época. Agora são sete membros, as sete pessoas mais poderosas da China. Para vocês terem ideia, um destes sete foi preso por uma campanha. Foi preso o governador de uma das províncias mais importantes e visto por muita gente como a possibilidade de ser novo presidente da China no futuro. Líderes de altíssimo escalão, inclusive o líder máximo da comissão militar também foi preso, e muita gente do setor financeiro. Pegou de tudo, envolvendo altíssimo escalão, militares, empresários e setor financeiro. Foi uma campanha massiva anticorrupção.
No entanto, há problemas graves nesta campanha. Quando essa pessoa me perguntou se queremos isso para Brasil eu disse que não queria. Você vai ter vários casos de pessoas que são presas, acusadas sem um processo jurídico formal contra elas. No Brasil também, não é ? Aqui quando você começa um processo de judicialização, de uso jurídico destes instrumentos como forma de perseguição política isso também vai se transformar numa coisa corriqueira. Mas, no Brasil, o que você vai ter efetivamente é um uso político muito forte da campanha anticorrupção.
Então tem uma manobra política que está por detrás disso. É impossível falar de uma campanha anticorrupção sem pensar qual é a economia política da disputa de poder que está associada a ela, numa campanha desta dimensão.
Com isso eu quero dizer que na China não tinha corrupção? É claro que tinha. Disseminada, espraiada por todos os cantos, com práticas várias, inclusive muito introjetadas na cultura política chinesa dos grandes banquetes, dos grandes jantares, dos grandes presentes, de uma relação de toma lá, dá cá, de uma relação que tem problemas estruturais e que está sendo neste momento reformada ou transformada. Mas há também, evidentemente, uma luta política que veio acompanhada nessa luta de titãs que levou então à consolidação do Xi Jinping como próximo presidente da China e provavelmente de maneira vitalícia, até a morte dele.
Como é a relação do Estado com as empresas privadas? O Estado na China foi o grande criador das empresas que existem hoje do ponto de vista privado. Eu tenho escrito um pouco sobre isso, como é esse processo. Em vários casos, quando veio a privatização das antigas estatais, que tinham uma enorme parcela da economia nacional e vão reduzindo a sua proporção na economia – e o Haroldo está certíssimo – sem, no entanto, deixar de ser empresas posicionadas em setores estratégicos e nevrálgicos da acumulação de capital. Mas nesse processo, o Estado vai se livrando de várias empresas que não são estratégicas, várias empresas vão sendo privatizadas e uma burguesia nacional nasce em uma estreita relação com o partido.
Essas pessoas são pesadamente beneficiadas por esta transferência de ativos, que eram ativos estatais e vão se transformar, então, em empresas privadas. Então nasce, com isso, os chamados capitalistas vermelhos, ou seja, uma burguesia encrustada no partido, são relações muito estreitas entre as empresas privadas e o partido.
Isso significa que há uma relação sempre tranquila, sempre pacífica e de interesses muito convergentes? Na maioria das vezes sim, mas nem sempre. Recentemente a gente teve o caso do Jack Ma que é um dos homens mais ricos da China que fez uma crítica muito forte ao próprio Xi Jinping, de resistência ao ritmo em que as coisas veem acontecendo, ao ritmo de abertura financeira. Jack Ma fez uma crítica e dois dias depois ele foi impedido de fazer um lançamento público, de lançar as ações de seu braço financeiro, da sua seguradora, no mercado de ações, enfim, uma interferência direta do Estado, uma espécie de punição a este homem que é um dos homens fortes do setor privado na China.
Há um controle intenso do Estado sobre essa burguesia nacional que, por sua vez, não é completamente dócil. Ela tem seus instrumentos e vai caminhando e vai, também, influenciando o Estado de alguma forma e vai tentando encaminhar as coisas para o sentido que lhe interessa.
E o ponto é que, até aqui, há uma convergência enorme entre os interesses dessa burguesia de enriquecer e os interesses do Estado de crescer na inserção global e internacional. Então há uma grande convergência de interesses, que na enorme maioria dos casos é uma relação de mão dupla, de benefício mútuo entre o Estado e sua burguesia nacional.
Isso não significa que é sempre assim, não quer dizer que vá continuar sendo assim. Como toda relação, ela está sujeita a seus movimentos históricos, a suas transformações históricas. E há um movimento, sobretudo agora, internacional, que vai tornar mais pungente essa disputa estratégica, geoestratégica, tecnológica, comercial, enfim, entre China e Estados Unidos. Então, nesse sentido, como é que essa burguesia doméstica vai se comportar, os movimentos dela, vão ser muito importantes.
LUCAS CHEN
– Muito obrigado. E para encerrar, eu gostaria de agradecer a ambos convidados por sua disposição de realizar esse debate com a gente e ressaltar inclusive o nível do debate que foi trazido aqui, para que nós pudéssemos esclarecer uma série de dúvidas e que vai nos permitir avançar sobre esse tema.
Inclusive, espero que possamos nos reencontrar nos próximos debates que vamos realizar, em especial em 2021, e lhes desejo boas festas e que possamos nos reencontrar, de preferência imunizados, se possível com a vacina aqui produzida em parceria com a China. Acho que isso é um importante fator no relacionamento do nosso país com a China nesse quadro de enfrentamento da pandemia.
Queremos agradecer a vocês dois e passar a palavra a Isabela, depois ao Haroldo, para suas considerações finais.
ISABELA
– Eu só tenho a agradecer a Lucas, é uma satisfação ter a oportunidade de estar com as novas gerações, sobretudo com a UMES que tem um papel essencial na defesa da educação pública, gratuita e de qualidade e, aí, eu acho que a UMES tem um papel importante nessa luta contra as fake news, contra o empobrecimento do debate, contra essa visão absolutamente equivocada do governo brasileiro de, em um momento em que mais se teria de dar uma guinada no desenvolvimento brasileiro, que são os momentos ou de transição hegemônica ou de embate por hegemonia.
Há duas grandes potências aí, se digladiando e com interesses diferentes aqui, no Brasil, ou na América Latina. Então seria um momento de se aplicar um não-alinhamento, uma vez que o alinhamento automático atual do governo Bolsonaro ao governo Trump é a coisa mais estúpida que se possa fazer do ponto de vista de política externa, então seria um momento de não-alinhamento, em termos estratégicos mesmo.
Momento de observar o que está acontecendo na arena internacional e extrair para o Brasil um posicionamento estratégico, do ponto de vista da atração de investimentos, de acordos de cooperação, do ponto de vista de uma inserção comercial um pouco mais virtuosa e daí vai.
Enfim, tudo que a gente fala sobre China hoje é o contrário do que o Brasil está fazendo, sobretudo do ponto de vista de política externa e há, nesse momento, um equívoco extraordinário, que esperamos que seja revertido o mais breve possível para que possamos ter algum sopro de esperança, em particular quando a gente fala de algumas das transformações que estão acontecendo na China.
Muito obrigada, um bom final de ano para vocês, um prazer rever o Haroldo nos debates sobre a China, saúde para todo mundo aí e um bom final de ano a todos.
HAROLDO
– Eu queria também agradecer a vocês, a sua presença dirigindo esse debate, uma presença verdadeira, com suas opiniões, eu também tenho essa opinião que a Isabela acabou de expor.
Eu acho que estamos vivendo um período funesto da nossa história, uma fase muito sombria – nós nunca tivemos tão mal. Eu faço política há cerca de 70 anos intensamente. Pois bem, nós nunca tivemos isto. Mesmo na época da ditadura militar, eu fui preso, fui torturado, passei anos, décadas na clandestinidade, essa foi dura, mas era diferente. Naquela época existia uma elite militar muito soberba, intransigente, truculenta, muitas vezes entreguista, mas não era obscurantista. Não era estúpida. E existia embaixo dessa elite uma turma que vivia no porão. Era lá no porão que a gente era torturada; muitas vezes era torturado no porão e o cara lá em cima provavelmente sabia, desconfiava, mas não era ele que mandava diretamente torturar.
Em alguns casos, as atitudes são variáveis, mas, grosso modo, tinha essa turma de cima e a turma do porão.
Mas a turma de cima tinha uma certa elite. Castelo Branco, era um cara instruído. O Geisel, que dizia, se é para suspender o acordo militar Brasil – Estados Unidos, vamos suspender, e agora vamos fazer um acordo com a Alemanha para construir as usinas de Angra I, Angra II, Angra III. O americano ficou chocado com isso. Que autonomia é essa? Quem disse que era possível construir usinas nucleares no Brasil, sem o americano? O Brasil bancou. Começou a fazer e está aí até hoje.
Hoje não tem nada disso não.
Hoje a turma que está mandando é a turma do porão. Essa turma subiu. Arrogante. E, como diria o Nelson Rodrigues: os idiotas perderam a vergonha, subiram e começaram a fazer um discurso e descobriram que a quantidade de idiotas que batiam palmas para eles era muito grande e foi assim que agora os idiotas estão mandando, estão por cima.
E é isso. Eu estou usando essa terminologia um pouco pesada mas, na minha opinião, é isso. São pessoas absolutamente embrutecidas, sem nenhuma educação, sem nenhum traço de entendimento, sem nenhuma compreensão dos interesses que estão em curso, dos interesses dos brasileiros, dos trabalhadores, sobre o que afeta a mulher, o negro. Eles não têm nada a ver com isso, tudo eles menosprezam, passam por cima desse negócio todo.
O que existe é a corrupção e eles estão, hoje, Lucas, um pouco na ignorância do povo.
Eu vi, há poucos dias, uma análise, uma pesquisa do Datafolha, na qual dizia que a camada média, muita gente da camada média e muita gente de certo nível superior está envergonhada dessa situação. A mesma turma que votou neles, está envergonhada, está fazendo uma autocrítica. Não imaginavam uma coisa assim.
Mas enquanto isso, tem uma outra turminha que não está envergonhada não, está dizendo é isso mesmo. É possível encontrar uma pessoa na rua e lhe perguntar: ‘Você gosta do Bolsonaro?’, e é capaz que ele responda: ‘Gosto sim’.
E, continuando, ‘Mas, e por que você gosta dele?’ E esse sujeito vai responder: ‘Ah, porque ele é contra a corrupção e a favor do desenvolvimento econômico do país”.
É de espantar. Ele é contra a corrupção? A corrupção está na casa dele! Os filhos, a mulher… é todo mundo da família, ele próprio… é uma gangue que está aí.
Desenvolvimento econômico? Não existe isso. Não há nenhuma preocupação com essas coisas.
Quer dizer, existe uma deformação hoje, no Brasil, que é muito grande. E eu acho que vocês, Lucas, que são estudantes e que têm acesso a essas informações, que têm a iniciativa de planejar um debate como este e outros, vocês têm também uma responsabilidade grande, a juventude estudantil, os que labutam pela escola pública, universal, gratuita e de qualidade, essa turma também tem uma responsabilidade com o povo brasileiro, com o Estado nacional, eles estão dilapidando o Estado brasileiro, é uma vergonha o que está acontecendo. Nós estamos discutindo agora a China… O Brasil criou uma boa relação com a China através dos BRICS, os países Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul.
Esse moço que está aí, liquidou com essa história, ele acha isso um absurdo, para ele isso não tem cabimento. Fazendo o jogo primário de outro elemento que foi derrotado agora que é o Trump. Então, como é que vai ser essa nova situação que está sendo criada agora? Nós estamos na virada do ano. Essa virada do ano vai trazer à tona uma outra situação nos Estados Unidos, da qual não sabemos direito o que vai ser. E vai trazer à tona uma situação nova aqui no Brasil, porque ele está ficando, cada vez mais, no canto da parede.
A dinâmica do Estado brasileiro, desse Estado meio desorganizado que está aí, está enfraquecido, mas ele tem uma dinâmica, no Legislativo, no Judiciário – no Congresso Nacional, no Supremo – apesar de todos os pesares, tem uma que manda prender hoje o prefeito do Rio de Janeiro e que está relacionado com os dois filhos do próprio presidente.
Então, pode acontecer neste início de ano muitas manifestações novas aqui no Brasil. E nós esperamos que vocês tenham a vanguarda do processo, os jovens, vocês têm tudo para isso. No passado, foi assim. Aqui no Brasil, nós, no passado, tivemos um papel de vanguarda. Se ia para as ruas, tínhamos ideias, conscientizávamos o povo. Na Argentina havia os famosos “Cordobazos”. Dos “Cordobazos”, nenhum de vocês conheceram, a Isabela nunca ouviu falar nos “Cordobazos”. O “Cordobazo” era uma manifestação estudantil realizada em Córdoba e que parou Córdoba. Passou a ser conhecida na América Latina como “Cordobazo”, parece que houve dois Cordobazos.
Aqui no Rio, também, a gente fazia isso, aqui, no Brasil. É preciso que vocês voltem a fazer isso, aqui, em nosso país.
Muito obrigado.
LUCAS CHEN
– Vamos finalizar com essa mensagem que é de esperança e lhes dando os parabéns.
Parafraseando um amigo nosso, o velho é a hegemonia com base na truculência, o novo é a Rota da Seda, é o BRICS. O velho é a ditadura, o obscurantismo, e o novo é a democracia. A gente vai vencer e em breve a gente se reencontra. Vamos em frente, boa noite.
HAROLDO – Muito obrigado e até mais.
ISABELA – Muito obrigada.