Em entrevista ao HP, o economista David Deccache afirmou que essas áreas já estão sob risco desde a aprovação do Novo Arcabouço Fiscal (NAF), que criou uma incompatibilidade entre o crescimento dos pisos constitucionais e o novo teto de gastos
Na última semana, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, defendeu a implementação de uma agenda de corte de gastos, declarando que “voltam à mesa de discussão” temas como correção de benefícios, redução de gastos públicos e limites ao crescimento real dos pisos da saúde e educação. As declarações têm gerado reações de setores da sociedade, que alertam para o risco de um grave arrocho sobre as áreas sociais mais sensíveis, como o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e abono salarial, que atendem pessoas em situação extrema pobreza.
Em entrevista ao HP, o economista David Deccache afirmou que essas áreas já estão sob risco desde a aprovação do Novo Arcabouço Fiscal (NAF), que criou uma incompatibilidade entre o crescimento dos pisos constitucionais e o novo teto de gastos. “A saúde e a educação, conforme prevê a Constituição de 1988, na sua forma atual, possuem uma taxa de crescimento muito maior do que a taxa de crescimento máximo permitida pelo NAF. É como se o NAF fosse um caminhão correndo a 70 km/h, um grande caminhão, que é o novo teto de gastos, e, atrás, a saúde e a educação correndo a 100 km/h. Ou seja, os carros da saúde e da educação vão bater nesse grande caminhão. Porque eles estão com uma velocidade muito maior do que esse caminhão está permitindo”.
“Eles criaram propositalmente uma incompatibilidade matemática, que é a seguinte: no NAF, os gastos totais podem crescer apenas 70% do que cresceram as receitas. Só que hoje, na Constituição, os gastos com saúde e educação devem crescer, no mínimo, pelo menos 100% do que cresceram em suas receitas. Então é preciso reduzir essa velocidade, de 100 km/h para, pelo menos, 70 km/horas, ou menos. Esse é o primeiro ponto. As duas principais áreas mais afetadas são saúde e educação”, afirma o professor.
“Há uma terceira também, da mais alta importância, que são os benefícios da Previdência Social, que hoje são atrelados ao salário mínimo e destinados a pessoas com deficiência e, cumulativamente, em situação que extrema pobreza, e idosos em situação de extrema pobreza. O que acontece? Como a taxa de crescimento do salário mínimo também é muito mais alta que a taxa de crescimento máxima permitida pelo NAF, eles precisam desindexar esses pisos da Previdência Social e o salário mínimo do BPC, para reduzir o crescimento dessas despesas ao longo dos anos. Logo, quais são as áreas que serão atacadas, a partir do que foi aprovado no Novo Arcabouço Fiscal, e que boa parte da esquerda votou a favor e defendeu como uma política moderada, que forçaria a tributação dos mais ricos, que foi uma das maiores falácias da história?”
“O Novo Arcabouço Fiscal impõe uma significativa redução das despesas ao longo dos anos com saúde, com educação, com os mais pobres da Previdência Social, que vão deixar de ganhar um salário mínimo. Se essa regra, proposta pela Simone Tebet, estivesse valendo desde 2003, para o BPC, para pisos da Previdência Social, hoje os beneficiários em situação de extrema pobreza estariam recebendo R$ 850. Ao passo que o salário mínimo está em R$ 1.412. Se fosse corrigido só pela inflação, eles receberiam R$ 850, enquanto o salário mínimo tem uma política de valorização real. Jogaria as pessoas para a mais absoluta situação de miséria. Definitivamente é um ataque que Simone Tebet declara às pessoas em situação de extrema pobreza, tira a dignidade, reduzindo para muito abaixo do salário mínimo, enquanto o Haddad dá preferência em atacar o SUS e as universidades via redução dos mínimos constitucionais”, afirma.
“META ZERO”
Deccache falou também sobre a meta de “déficit zero”, defendida por Haddad. Para o economista, “é uma meta de primário que não é feita para ser cumprida”, adotada para se aplicar um arrocho ainda maior sobre setor público, porque “se você não cumprir metas de primário, no primeiro ano, o governo fica impedido de dar reajuste para servidores públicos acima da inflação. No segundo ano, fica impedido de recompor, inclusive, a inflação. Deverão ser congelados os reajustes para servidores públicos”.
“O que isso significa? Se o Haddad coloca uma meta de primário inalcançável, ele consegue forçar ataque a servidores públicos, lavando as mãos, falando o seguinte: olha esse ataque não é proveniente da minha vontade, mas ele foi dado por força da lei. Essa é uma armadilha que é muito pouco discutida. Isso é muito pior do que o tripé macroeconômico do FHC. Definitivamente, matematicamente”, afirma.
“Além disso, hoje a regra do NAF permite que os gastos tenham uma taxa de crescimento equivalente a 70% da taxa de crescimento das receitas, mas se não cumprir a meta de primário, a taxa de crescimento de gastos vai ser apenas 50% da taxa de crescimento das receitas. Ou seja, eu adoto uma meta que eu não vou cumprir, mais alta do que a que eu planejo cumprir, e isso faz com que, no ano seguinte, o ajuste fiscal seja ainda mais rigoroso, mais profundo. Eu intensifico a austeridade fiscal. Essa é a lógica da ‘meta zero’, que quase ninguém tem discutido no Brasil e é gravíssimo”.
JUROS
“Obviamente, um estado, quando se trata de dívida na sua própria moeda, ele não tem risco de crise fiscal. Tem risco de crise fiscal quando ele está endividado em uma moeda que ele não emite. É o caso da crise da dívida externa nos países periféricos durante os anos 80. Quando se trata de dívida doméstica, esse risco não está posto, do ponto de vista técnico. Por outro lado, nós percebemos claramente que esse risco ainda existe quando nós vemos que o pagamento de juros da dívida pública se dá rigorosamente na sua data, não há nenhuma hipótese de calote e não há nenhuma restrição orçamentária para que esses pagamentos – hoje na casa dos R$ 700 bilhões por ano, mais do que o dobro dos pisos da saúde e da educação somados – sejam pagos. Ou seja, aceita-se o pressuposto de que o Estado tem dinheiro. Para os gastos sociais, o pressuposto é exatamente o oposto, de que o Estado não tem condições de sustentar nenhum déficit que seja”.
INFLAÇÃO
Deccache falou também sobre a política de meta de inflação no Brasil, determinada pelo Conselho Monetário Nacional. “Ali se define a taxa de inflação a ser perseguida pelo Banco Central. A meta de inflação no Brasil, desde os últimos governos, tem sido colocada muito abaixo do que é percebido na história do Brasil e também olhando-se a trajetória da inflação no resto do mundo. Ou seja, está forçando uma taxa de inflação muito baixa, para que, dentro dos modelos ortodoxos do Banco Central, isso legitime uma taxa de juros muito elevada, para que se cumpra metas de inflação muito rígidas. O Banco Central reage à meta de inflação que o governo federal impõe”.
“A política de taxa de juros do Banco Central é extremamente conservadora”, afirma. “Pratica taxas de juros muito altas no Brasil. Isso tem impacto extremamente regressivos, ao selecionar um gasto sem nenhum tipo de restrição ao sistema financeiro”.
Para Deccache, esse é o elemento principal de política monetária e de controle dos preços da inflação. “Há outros mecanismos de controle de inflação? Há, só que eles devem ser desenhados no âmbito do governo federal e isso ajudaria a reduzir a taxa de juros no Banco Central. Por exemplo, estoques reguladores de alimentos. É possível, formando estoques de alimentos, estabilizar as taxas de crescimento dos preços. Em uma safra ruim, em que se tem um choque negativo de oferta, se houver estoques, evita-se que os preços explodam, o que levaria a inflação para cima. Esse é um exemplo. Outro exemplo: a inflação está altamente atrelada a câmbio e preço, por exemplo, de combustíveis. Mas tanto o câmbio quanto o preço de combustíveis influenciam mais a inflação, a depender da formatação de alguns preços importantes e administrados da economia. Por exemplo, o preço dos combustíveis. Se mantida a política de paridade com preço de importação [PPI], de Michel Temer, o que você faz? Faz com que o preço do combustível esteja atrelado ao câmbio e ao preço do barril do petróleo internacional, diretamente. Atrelado, com graus variados de indexação e de tempo de indexação, mas atrelado”.
“E dessa forma, quando você tem um choque de câmbio – por exemplo, o real desvaloriza frente ao dólar, ou o preço do petróleo aumenta –, o que acontece? Os custos de produção são elevados. Se os custos de produção são elevados e o capitalista, principalmente setores que têm maior poder de mercado, mais monopolistas, entram numa lógica de conflitos distributivos, em que eles têm que recompor uma margem de lucro e aumentam o preço. Decorrente dessa lógica, sempre vai haver uma pressão de custos mais incisiva e desemboca em choques inflacionários via custos. E essa política de PPI, que continua até hoje na Petrobrás, induz essas pressões inflacionárias, e poderia ser o contrário. Nós poderíamos ter uma política de precificação de combustíveis no Brasil macroeconomicamente e socialmente estruturada”, defende.
JÚLIA CRUZ