Na contramão do que exige a sociedade brasileira em termos de acesso às informações da administração pública, o governo publicou um decreto no Diário Oficial da União desta quinta-feira (24) autorizando que servidores comissionados e presidentes de fundações e autarquias decretem sigilo ultrassecreto e secreto a dados públicos. A temerária medida sinaliza que o governo pretende esconder informações da sociedade.
Ela permitirá que uma série de decisões tomadas pelo governo sejam a partir de agora classificadas como ultrassecretas por funcionários de segundo escalão e só sejam conhecidas da população muitas décadas depois de colocadas em prática. A medida vem logo em seguida da decisão de enfraquecer a atuação do Conselho de Acompanhamento Financeiro (Coaf) no combate à corrupção.
Antes, só podiam impor esse tipo de restrição de acesso a informações o presidente, o vice-presidente, ministros de Estado e autoridades equivalentes, além dos comandantes das Forças Armadas e chefes de missões diplomáticas no exterior. De acordo com a Lei de Acesso à Informação, o prazo máximo para classificação de sigilo é 25 anos para as informações ultrassecretas – podendo ser prorrogado uma única vez por igual período. Já as informações classificadas como secretas permanecem em sigilo por 15 anos, prazo que não pode ser prorrogado. O prazo de sigilo é contado a partir da data de produção da informação, e não de sua classificação. Muita coisa poderá ser colocada para debaixo do tapete.
O novo decreto parece ter sido encomendado para acobertar ações de responsabilidade de agentes públicos, tanto de primeiro como do segundo escalão do governo. Ele foi feito para dificultar o controle por parte da sociedade e dos órgãos responsáveis pelo combate à corrupção. Ele altera um decreto anterior (Decreto 7.724/2012 ) que regulamentava a Lei de Acesso à Informação e proibia a delegação dessa competência. O Decreto foi assinado pelo vice-presidente, Hamilton Mourão, que ocupa interinamente a Presidência da República.
A medida permite ainda que as autoridades com o poder de decretar sigilo deleguem essa função a dirigentes de autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista. Ou seja, além de ampliar os leque de servidores com credenciais para decretar que um documento seja classificado como ultrassecreto, essa medida do governo permite a delegação de autoridade para tal. Com a mudança, passam a ter esse poder assessores comissionados do Grupo DAS nível 101.6 ou superior – que podem ou não ser servidores públicos em funções de direção ou assessoramento superior.
Especialista em direito de propriedade intelectual, o advogado Jhones Ferreira, do escritório Di Blasi, Parente & Associados, diz que o decreto se contrapõe a uma série de avanços institucionais no acesso a informações públicas no Brasil. “Desde 1988, há toda uma evolução jurídica e um caminhar legislativo para que a publicidade dos atos administrativos se fortalecesse cada vez mais. Qualquer ato, seja um decreto, lei ou portaria que de alguma forma mitigue essa regra de acesso a informações de atos públicos impacta na sociedade como algo negativo”, afirma.
Em entrevista, Hamilton Mourão – que assumiu a Presidência interinamente com a viagem de Jair Bolsonaro à Suíça -, alega que o decreto “diminui a burocracia” no acesso a informações públicas. Segundo ele, tem que haver equilíbrio entre informação e segurança. Mas, ele próprio admite que há “raríssimas” informações no Brasil consideradas ultrassecretas. Estranho que informações consideradas raríssimas pelo próprio Mourão – só se ele não pretende mais que elas continuem raras – passem a ser de responsabilidade de funcionário de segundo e terceiro escalão do governo. Em nota, a Casa Civil afirma cinicamente que a mudança “desburocratiza o acesso às informações e garante transparência à administração pública”.
A advogada Daniela Colla, também especialista em direito de propriedade intelectual, critica o fato de o decreto ter sido publicado sem que a sociedade fosse consultada sobre o tema. Segundo a advogada “as pessoas que tiverem pedidos negados com o argumento de que as informações requeridas são ultrassecretas poderão continuar recorrendo a uma comissão para questionar a validade da decisão”, disse ela. A Lei de Acesso à Informação instituiu a criação de uma Comissão Mista de Reavaliação para avaliar a classificação de informações sigilosas. “O comportamento da comissão é que determinará se haverá mais informações consideradas ultrassecretas”, acrescenta a advogada.
Veja como ficou o artigo 30 do Decreto 7.724/2012
Art. 30. A classificação de informação é de competência:
I – no grau ultrassecreto, das seguintes autoridades:
a) Presidente da República;
b) Vice-Presidente da República;
c) Ministros de Estado e autoridades com as mesmas prerrogativas;
d) Comandantes da Marinha, do Exército, da Aeronáutica; e
e) Chefes de Missões Diplomáticas e Consulares permanentes no exterior;
II – no grau secreto, das autoridades referidas no inciso I do caput, dos titulares de autarquias, fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista; e
III – no grau reservado, das autoridades referidas nos incisos I e II do caput e das que exerçam funções de direção, comando ou chefia do Grupo-Direção e Assessoramento Superiores – DAS, nível DAS 101.5 ou superior, e seus equivalentes.
§ 1º É permitida a delegação da competência de classificação no grau ultrassecreto pelas autoridades a que se refere o inciso I do caput para ocupantes de cargos em comissão do Grupo-DAS de nível 101.6 ou superior, ou de hierarquia equivalente, e para os dirigentes máximos de autarquias, de fundações, de empresas públicas e de sociedades de economia mista, vedada a subdelegação.
§ 2º É permitida a delegação da competência de classificação no grau secreto pelas autoridades a que se referem os incisos I e II do caput para ocupantes de cargos em comissão do Grupo-DAS de nível 101.5 ou superior, ou de hierarquia equivalente, vedada a subdelegação.
§ 3º O dirigente máximo do órgão ou da entidade poderá delegar a competência para classificação no grau reservado a agente público que exerça função de direção, comando ou chefia, vedada a subdelegação.
§ 4º O agente público a que se refere o § 3º dará ciência do ato de classificação à autoridade delegante, no prazo de noventa dias.