“Existe uma verdadeira batalha mundial entre as montadoras para garantir o fornecimento de lítio para os veículos elétricos”, diz a professora da USP, Elaine dos Santos
A professora e pesquisadora da USP, Elaine dos Santos, publicou um artigo no último número do Jornal da USP com severas críticas ao decreto de Jair Bolsonaro que submete o mercado de lítio à ação dos monopólios internacionais em detrimento dos interesses estratégicos do Brasil.
O Decreto nº. 11.110, que passa a permitir operações de comércio exterior de minerais e minérios de lítio, substituiu o Decreto n. 10.577 que protegia esse setor estratégico em todo o mundo pela sua importância na indústria de carros elétricos, na transição energética e na indústria nuclear.
“Com a sétima maior reserva mundial de lítio, e na condição de país subdesenvolvido dependente da venda de commodities, o foco da nossa estratégia deveria estar na criação de uma cadeia de valor e na competitividade do lítio brasileiro e não na liberalização do mercado”, diz a pesquisadora. Confira o artigo.
A liberalização do mercado de lítio brasileiro: qual é a estratégia?
ELAINE SANTOS (*)
Em julho deste ano o governo brasileiro anunciou a revogação do decreto que restringia as operações de importação e exportação de minerais e minérios de lítio e seus derivados.
O lítio tem tido muito destaque e sua demanda cresceu devido ao seu papel importante no desenvolvimento de baterias recarregáveis utilizadas em uma enorme gama de produtos eletrônicos e na eletromobilidade. O Brasil tem potencial para se colocar como um dos grandes produtores de lítio e tem uma história interessante na implementação desta indústria, inicialmente muito atrelada à indústria nuclear. Entender a trajetória da política nuclear brasileira pode nos ajudar a compreender a importância das políticas relacionadas ao lítio. Como referências, menciono o professor Moniz Bandeira, que possui diversos escritos sobre as animosidades políticas que delinearam o desenvolvimento nuclear no Brasil; a dissertação apresentada em 1996 ao Instituto de Geociências da Unicamp, na qual o professor José Marques discute as dificuldades na implantação de uma indústria de sais de lítio brasileira, e os trabalhos do pesquisador do Centro de Tecnologia Mineral (Cetem) Paulo Braga, referência incontornável nesta temática.
Em um breve resumo podemos dizer que, ao longo das últimas décadas, o Brasil desenvolveu uma indústria de lítio. Até o final dos anos 1990 era o único país da América Latina que possuía todos os requisitos necessários para o domínio desta cadeia, no que correspondia a produção de carbonato de lítio utilizado em graxas e lubrificantes; grandes reservas minerais, capital, tecnologia e mercado interno.
Para que o País conseguisse estabelecer a sua indústria de lítio, o Governo Federal emitiu nas décadas de 1980 e 1990 duas exposições de motivos (E.M. 020/89 e E.M 169/94) como forma de proteger a indústria nascente. Esta proteção governamental plasmou-se no Decreto nº 2.413 de dezembro de 1997, que dispõe sobre as atribuições da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) nas atividades de industrialização, importação e exportação de minerais de lítio e seus derivados. Importa referir que o lítio é um elemento definido por lei como de interesse para a energia nuclear e a CNEN sempre teve poderes legais muito amplos, que lhe permitiam intervir no mercado caso fosse de interesse nacional. Esta proteção, inicialmente temporária, permaneceu em vigor ao longo dos últimos anos, sendo alterada pelo Decreto nº 10.577 com vigência até 2020. Em 2020, o Decreto-lei nº 10.577 foi prorrogado por mais dez anos, até 31 de dezembro de 2030.
Contudo, no dia 5 de julho de 2022, o Decreto n. 10.577 foi revogado e substituído pelo Decreto nº. 11.110, que permite operações de comércio exterior de minerais e minérios de lítio. A revogação do Decreto nº 10.577 vem na sequência de uma audiência pública (SEAE/SEPEC/ME/Nº 3/2021- quota de importação de hidróxido de lítio) que avaliou as condições de concorrência geradas pela regulação relacionada à importação do hidróxido de lítio e que alicerçou a revogação.
Desde a implementação de uma indústria de sais de lítio no Brasil, esta proteção governamental foi questionada como uma reserva de mercado que poderia atrapalhar o desenvolvimento da cadeia produtiva, o que faz todo sentido. Apesar disso, é importante ressaltar que muitos países, mesmo os mais capitalistas, mantêm proteções através de reserva de mercado em certos setores considerados estratégicos nos fatores tecnológico, social e principalmente relacionados à segurança nacional, como é o caso do lítio.
Com o novo decreto assinado pelo presidente Jair Messias Bolsonaro, o mercado de lítio tende a ficar mais liberalizado e muito provavelmente a indústria da graxa e a indústria farmacêutica poderão sofrer os impactos de um mercado aberto concorrencial, principalmente porque existe uma verdadeira batalha mundial entre as montadoras para garantir o fornecimento de lítio para os veículos elétricos.
Com a sétima maior reserva mundial de lítio, e na condição de país subdesenvolvido dependente da venda de commodities, o foco da nossa estratégia deveria estar na criação de uma cadeia de valor e na competitividade do lítio brasileiro e não na liberalização do mercado. Até porque, o decreto que regulou esta matéria-prima até julho de 2022 não foi um entrave significativo para a sua exportação, e prova disto é o aparecimento, nos últimos anos no Brasil, de novos players empresariais vocacionados para exportação.
(*) Pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP