Conforme apontam as lideranças, o decreto do presidente argentino – o “gatilho fácil” – “equivale à pena de morte”, pois permite à Polícia disparar sem se identificar, com munição real contra suspeitos em fuga
A Justiça de Buenos Aires e representantes dos mais variados partidos, movimentos sociais e de direitos humanos condenaram nesta quarta-feira a decisão do governo argentino de modificar o Código Penal para impor a “regra do gatilho fácil”, dando carta branca às “forças de segurança” para disparar a seu bel prazer. Conforme apontaram as lideranças, o decreto 956/2018 ditado pelo governo Macri “equivale à pena de morte”, pois permite à Polícia disparar sem se identificar, com balas de chumbo e pelas costas.
Recém publicada no Diário Oficial, a chamada “Doutrina Chocobar” remete ao ocorrido no caso do policial Luis Chocobar que, em dezembro de 2017, matou pelas costas a Pablo Kukoc, de 18 anos, depois deste ter ferido um turista. Na época a ministra da “Segurança”, Patricia Bullrich, levou o policial até à Casa Rosada para um encontro com o presidente Maurício Macri, que o elogiou por sua “atuação exemplar”.
Nesta terça-feira a Justiça de Buenos Aires aprovou uma medida que declara “inconstitucional” a resolução do governo federal e proíbe sua aplicação no âmbito da capital portenha. De acordo com o juiz Roberto Gallardo, o decreto de Macri representa uma “resposta espasmódica, desleixada e demagógica às demandas sociais, reais ou imaginárias, de seguridade” que, longe de aumentar a segurança, “sujeita os cidadãos a riscos adicionais”.
“A partir desta norma repressiva, o governo neocolonial se converte numa azeitada engrenagem para instalar e consolidar no país a licença para ‘atirar no escuro’, ou seja, disparar antes e perguntar depois”, condenou o líder da Central dos Trabalhadores da Argentina (CTA), Hugo Yasky. “Nem a Macri nem ao seu governo importam o combate à delinquência”, ressaltou, mas “liquidar o conflito social com balas de chumbo”. “Patricia Bullrich primeiro sugere que qualquer um pode andar armado pela rua e agora converte em política de Estado a Doutrina Chocobar, condenada pela Justiça. Esta é a ministra mais perigosa dos últimos 50 anos”, acrescentou.
O problema, denunciam as lideranças, está precisamente na generalização do uso da força desmedida e sem critério, no cheque em branco dado aos policiais, particularmente em um momento em que a fome, o arrocho e o desemprego – consequência da política de submissão ao Fundo Monetário Internacional (FMI), multiplicam a miséria e o desespero, amplificando a tensão nas ruas. Ou o Banco Central da Argentina não elevou a taxa de juros de 45% para 60% em setembro, colocada assim no maior patamar do mundo? Ou a inflação não disparou, destruindo o salário e o consumo interno? Ou o Produto Interno Bruto (PIB) não está ladeira abaixo, variando -4,2 no segundo trimestre deste ano em relação ao de 2017? Ou a especulação financeira não devastou sua indústria – que registrou uma queda de 6,8% em outubro em relação ao mesmo mês do ano passado? Ou Macri não cortou os impostos dos mais ricos, enquanto elevou a cobrança dos trabalhadores?
VIOLÊNCIA NEOLIBERAL
O significado da capitulação macrista à “lógica” neoliberal do arrocho fiscal foi traduzida pelos economistas do Observatório de Políticas Públicas, que avaliam que os aumentos registrados ao longo dos últimos três anos alcançaram 2.057% no gás natural, 1.491% na energia elétrica e quase 1.000% no serviço de água potável. Em matéria de transporte, foram apontados aumentos de 677% em pedágios, 375% no bilhete do trem, 332% nos ônibus de curta distância e 177% na passagem de metrô.
Não é muito difícil imaginar aonde tamanha sensibilidade social, somada ao uso e abuso da repressão e à impunidade, vai levar. Afinal, como não recordar do jovem Santiago Maldonado, de 28 anos, assassinado após uma violenta ação em que dezenas de agentes da Guarda Nacional entraram na ocupação dos índios mapuche em Chubut, província da Patagônia argentina? Como denunciou o jornal Página 12, em fevereiro deste ano um policial da Segurança Aeroportuária matou a tiros um adolescente de 16 anos em Monte Grande logo depois deste tentar assaltá-lo com uma arma falsa. Da mesma forma, em setembro, um menino de apenas nove anos e com problemas mentais foi brutalmente atacado por um policial ao apontar sua arma de brinquedo à patrulha que passava em sua rua.
Para a ex-ministra de Segurança e atual deputada Nilda Garré, “Bullrich elaborou uma resolução que libera as forças de segurança para disparar contra pessoas em situação de fuga, contra quem se recusa a ser detido. Obriga o policial a disparar em quem foge”. “A resolução converte a Doutrina Chocobar em regra”, concluiu.
O último informe da Coordenação contra a Repressão Policial e Institucional (Correpi) avalia que durante os três anos de gestão de Macri o número de casos de “gatilho fácil” ultrapassou a 700, “realidade que se repete constantemente”. Infelizmente, destacou a entidade, “porque este é um governo que não se sustenta sem repressão”.
LEONARDO SEVERO