
Ex-secretário do governo Bolsonaro, Alexandre Magno Fernandes Moreira, afirma em “curso” sobre homeschooling que “o castigo físico sempre tem de ter uma finalidade”. 81% dos casos de violência física contra crianças acontecem em casa
Treinamento oferecido pelo maior grupo de promoção da educação domiciliar (homeschooling) no Brasil encoraja pais a bater em suas crianças “calma e pacientemente” como forma de educar, revela uma investigação da Agência Pública e da openDemocracy.
O grupo tem livros, sites e vídeos que dão dicas aos pais de como bater em crianças e driblar a lei – evitando lesões graves, marcas visíveis e humilhação pública. Materiais também afirmam que pais que não castigam os filhos com a “vara” não amam a Deus ou aos seus filhos.
“É o negacionismo na educação, é o protecionismo às práticas abusivas contra as crianças, afirma Claudete Alves, presidente licenciada do Sedin – Sindicato dos Educadores da Infância no Município de São Paulo, em entrevista à Hora do Povo.
Aprovado na Câmara Projeto de Lei (PL) que busca regulamentar a educação domiciliar no Brasil, era uma promessa assumida por Jair Bolsonaro desde a campanha de 2018. A proposta, que conta com repúdio de especialistas em educação e da Oposição pode ser analisada no Senado ainda neste ano.
“É na escola que os abusos e violências são descobertos”, afirma a deputada federal e educadora Sâmia Bomfim, do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). “Sem o acesso à escola, crianças que sofrem violência física ficam ainda mais vulneráveis.” 81% dos casos de violência física contra crianças acontecem em casa.
A pauta é defendida há anos por grupos conservadores e membros do alto-escalão do governo, apesar de essa modalidade de ensino alcançar apenas 0,03% das crianças em idade escolar, segundo estimativas.
Estatística do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), estimam que no Brasil, há 46,7 milhões de estudantes matriculados na educação básica, enquanto 1,4 milhões de crianças estão fora da escola.
Em contrapartida, apenas 15 mil crianças são educadas em casa, segundo a Associação Nacional de Educação Domiciliar (ANED), principal promotora do homeschooling e defensora da legalização da modalidade por órgãos federais, estaduais e municipais.
“Com tantas questões urgentes na educação, só um lobby muito poderoso explica a aprovação de um PL que interessa a um grupo de apenas 15 mil pessoas”, observa Bomfim.
CASTIGOS PRIVADOS
Em um curso online, o ex-secretário nacional de Proteção Global do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) Alexandre Magno Fernandes Moreira, outro defensor da ideia diz aos pais que “o castigo físico sempre tem de ter uma finalidade […) é algo que deve ser feito com calma, paciência e dentro de situações específicas.”
“O absurdo de proporem castigos físicos não tem precedentes desde o Século XX. A Escola Nova, mesmo sendo de origem liberal, negava esse aspecto abjeto da Educação Tradicional Conservadora”, afirma Célia Cordeiro, diretora do Simpeem – Sindicato dos Profissionais em Educação no Ensino Municipal de São Paulo, em conversa com o HP.
Em um curso online, ministrado a pais, o ex-secretário nacional de Proteção Global do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) do governo Bolsonaro, Alexandre Magno Fernandes Moreira, diz que “castigo físico sempre tem de ter uma finalidade […] é algo que deve ser feito com calma, paciência e dentro de situações específicas.”
“O castigo, se for realizado, tem de ser feito de maneira prudente, protetiva, proporcional e de forma privada, não em público. O castigo físico sempre tem de ter uma finalidade educacional”, defende trecho do curso online “O Direito da Família”, de Alexandre Magno Moreira.

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Em entrevista ao canal My News, na internet, a professora Carlota Boto, diretora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) disse que essas pessoas estão incitando à violência doméstica e agem e devem responsabilizadas judicialmente.
“O abusador utiliza desse recurso para não deixar marcas físicas, o que demonstra a covardia do agressor. Sendo que isso é contra a legislação, evidentemente, à incitação à violência física contra a criança deve ser punida nos termos da lei”, defende a educadora.
“A criança que sofre castigos físicos deixa de confiar no adulto que lhe infringiu esse castigo, afirma Boto.
Punições não educam, condicionam, afirma psicanalista
Nessa perspectiva, a psicanalista Karen Faza, que atende crianças em sua clínica, disse ao HP que “castigos e punições físicas ou psicológicas são formas mais imediata de resolver um problema, mas, não prepara as crianças para se responsabilizarem ou aprenderem a fazer escolhas mais saudáveis”,
“Além de afetar a relação com os pais, pois, geram medo, afastamento emocional, rebeldia, baixa estima, sentimentos de inadequação”, continua. “E como consequência, adultos pouco preparados emocionalmente e desconectados de seus próprios sentimentos”, analisa. “As punições, assim como castigo, não ensinam ou educam e sim CONDICIONAM!”, afirma Faza.
“DISCIPLINA BÍBLICA”
Desde 2014 os castigos físicos estão proibidos nas escolas brasileiras, porém há mais de 30 anos o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990, assegura o direito à criança à sua proteção integral.
“No grupo de Moreira no Telegram, chamado “A família e seus direitos” – que tem mais de 10,8 mil inscritos -, uma enquete sobre castigos físicos foi lançada em maio de 2021; Das 664 respostas, 51% assinalaram que “sim, eu uso castigo físico (p. ex. palmadas)”, diz trecho da reportagem da Agência Pública.
O seu curso “O Direito da Família”, está disponível na plataforma audiovisual da Brasil Paralelo, produtora conhecida como a ‘Netflix da direita’, informa a reportagem.
Moreira foi secretário nacional no MMFDH de Bolsonaro de 2019 a 2020, e diretor jurídico da ANED de 2010 a 2019, à qual ainda presta assessoria jurídica.
A reportagem informa ainda que ele é ligado ao grupo ultra-conservador estadunidense Home School Legal Defense Association (HSLDA), na sigla em inglês, e foi conselheiro por oito anos da Global Home Education Exchange (GHEX, Intercâmbio Global de Educação Domiciliar), uma plataforma para as atividades internacionais da HSLDA.
Fundada em 2010 e sediada em Brasília, a ANED exerce lobby sobre o Congresso e mantém uma rede de representantes locais em diversos estados brasileiros.
A associação não defende explicitamente o uso de violência contra crianças em suas comunicações oficiais, mas distribui materiais de apoio que o fazem. Através do Clube ANED, a entidade mantém um programa de descontos para membros com 25 empresas parceiras.
A Pública apurou que ao menos quatro dessas empresas oferecem livros ou materiais didáticos que promovem ou naturalizam castigos físicos.
Entre as empresas, destaca-se a “Família que Educa“, criada por Flávia Saraiva, representante da ANED na Bahia, que oferece livros e materiais didáticos sobre matérias como matemática, ciência e geografia com links para vídeos no YouTube e grupos de Telegram, incluindo o canal de Moreira.
Outra parceira do Clube ANED, informa a reportagem, é a empresa Homeschoolarizando, que mantém uma pasta aberta na nuvem, onde disponibiliza materiais didáticos gratuitamente. Nos materiais são encontrados versículos bíblicos como: “A vara e a repreensão dão sabedoria, mas a criança entregue a si mesma envergonha a sua mãe”.
A Kairós Consultoria Educacional – outra empresa parceira da ANED, que vende treinamentos de educação domiciliar para famílias – divulga o trabalho da – no mínimo – polêmica, autora Simone Quaresma.
“O que toda mãe gostaria de saber sobre a disciplina bíblica”, livro da autora, teve a venda proibida em 2020 por defender o uso de castigos físicos. Na obra, Quaresma orienta pais a usarem varas de silicone para bater em seus filhos em áreas não visíveis do corpo.
Ela defende ainda que, tão logo o bebê consiga se manter sentado, “você terá que começar a dar leves tapinhas no seu bumbum ou na sua mãozinha (…) Logo, logo, porém, já será a hora de partir para o uso da vara propriamente dita”.
“ […] E para além deles não serem desmascarados – quando falam desses métodos, usando a Bíblia, (dizendo) que não pode ferir violentamente, mas que a as crianças têm que entender que a Bíblia ensina a castigar, – eu acho que o que está por trás (é a intenção) de proteger os agressores, os pedófilos, os alienantes”, denuncia Claudete.
Apesar da proibição, o livro continuou a ser vendido pela plataforma de produtos e serviços do Simpósio Online de Educação Domiciliar, o Simeduc. A empresa pertence à militante do homeschooling Gaba Costa, que ajudou a trazer o programa ultra-conservador cristão britânico Classical Conversations para o Brasil.
Outra parceira da ANED, a Comunidade Educação no Lar comercializa um curso online com dois módulos inteiros sobre autoridade, obediência e correção, que incluem trechos do livro de Simone Quaresma.
Além do esdrúxulo livro, em palestras e textos, Simone Quaresma recomenda argumentos a serem doutrinados às crianças para eventuais questionamentos sobre a violência física em casa: por exemplo, que o uso de castigos físicos é um assunto privado.
Ela também sinaliza que “possuir alguma deficiência não seria motivo para isentar uma criança de castigos físicos”.
Em 2020, uma decisão da Justiça que proibiu a venda de seu livro, também ordenou que conteúdos sobre “disciplina bíblica” publicados por Quaresma em suas redes sociais e em seu site fossem tirados do ar.
No entanto, a medida judicial não vem sendo cumprida na sua integralidade. Um texto publicado após a decisão e outros artigos, datados de 2014, que descrevem como usar a vara, continuam disponíveis em seu site, Mulheres Piedosas. Quaresma recorreu da decisão, mas foi negada.
MASCARAMENTO DAS AGRESSÕES
A violência doméstica contra crianças é algo comum no Brasil. Um levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, com base em dados de 12 estados, revelou que “maus tratos” foram a segunda forma de violência mais registrada (após estupro) contra menores de 18 anos entre 2019 e 2021. A maioria absoluta das vítimas (90%) tinha menos de 15 anos.
Segundo a Agência Pública, apenas três dos sete pais adeptos da educação domiciliar entrevistados pela reportagem consideram que castigos físicos são cruéis ou inapropriados.
Uma das entrevistadas, que falou em condição de anonimato, uma mulher de 38 anos de Florianópolis, disse que iniciou a educação domiciliar de seus três filhos em 2018.
Ela alega que nunca bateu em seus filhos, mas mostra compreensão pelas “famílias que vão usar a vara da disciplina, no sentido de bater em suas crianças de forma agressiva”, o que para ela não é um problema.
“Fico muito assustada pela ousadia de se assumir algo que já é absolutamente ultrapassado, porque é algo que depõe contra o direito fundamental das crianças, o direito à sua preservação integral e à sua dignidade”, afirma a professora da USP.
Contrária ao homeschooling, Célia Cordeiro diz que a aprendizagem cotidiana se dá no âmbito escolar, que “atende às diretrizes e parâmetros curriculares, num ambiente que, além da aquisição de conhecimento, favorece à formação integral do aluno”.
Já Faza cita o comportamento pós- pandemia para ressaltar o papel da escola. ”Crianças que nasceram na pandemia ou foram afastadas das escolas nesse período retornam para o consultório atualmente apresentando quadros de depressão, inadequação ao retorno escolar, dificuldades de aprendizado, perda de referências, entre outros fatores”.
“Dessa forma, fica comprovado que o afastamento escolar para estudos em casa não é um método funcional, pois as consequências (negativas) são maiores que os benefícios”, conclui.
Para Claudete, a defesa ferrenha da modalidade do ensino domiciliar traduz a fome dos apoiadores do governo Bolsonaro em “pegar dinheiro público” e de “esvaziar a escola pública”. “[..] Mas tem um outro fator que tá por trás dessa defesa, que é de pegar dinheiro público. É uma outra forma de esvaziar a escola pública”, denuncia.
“E daqui a pouco, eles vão defender transferência do gasto que custaria essa criança na escola para essas famílias. Então é uma forma também de invadirem os cofres públicos”, prevê Claudete.
“É preciso que a sociedade se mobilize para que a institucionalização do ensino domiciliar não se concretize, pois caminha na contramão da necessidade de o governo oferecer educação pública gratuita, laica e de qualidade para todos, em todos os níveis e modalidades de ensino, com investimentos na ampliação da rede física, infraestrutura e valorização dos profissionais de educação”, conclui Célia Cordeiro.
Em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que os pais não poderiam tirar suas crianças da escola para ensinar em casa sem que uma legislação específica fosse aprovada pelo Congresso Nacional.
Diversas cidades e dois estados, Santa Catarina e Paraná, em 2021, chegaram a aprovar legislações pró-ensino domiciliar, mas estas foram suspensas pelas cortes estaduais.
JOSI SOUSA