A principal entidade de defesa dos direitos civis dos EUA, a ACLU, se pronunciou contra a indicação do juiz Brett Kavanaugh para a Suprema Corte – o que só fez antes três vezes em 100 anos – após a “audiência” no Senado que antepôs o indicado e sua acusadora, Christine Blasey Ford, que reafirmou ter sido quase estuprada por ele há 36 anos atrás, quando ambos eram estudantes do ensino médio, e menores.
Conforme a ACLU, o “depoimento crível” de Ford e o “testemunho de Kavanaugh” no Senado, assim como a “insuficiente averiguação”, “nos levaram a duvidar da aptidão dele para ser investido na Suprema Corte”. Considerando as “extraordinárias circunstâncias” sobre a “indicação uma vez na vida para a mais alta corte”, a entidade afirmou que o ônus “recai sobre o nominado”.
Na comissão do Senado, Kavanaugh havia sido aprovado por 11 votos (republicanos) a 10 (democratas), com a decisão final adiada por uma semana para uma encenação de apuração, pelo FBI, das acusações. Mais duas mulheres reforçaram as denúncias de Ford. Julie Swetnick afirmou em declaração juramentada ter sido estuprada no ensino médio por um grupo e que Kavanaugh fora um deles, após ser dopada em uma festa. Deborah Ramirez o acusou de violação em Yale, onde ele cursou Direito.
Mesmos pelos atuais parâmetros da política nos EUA, a audiência no Senado de Kavanaugh na semana passada, em matéria de baixarias, superou tudo. As tevês acompanharam o caso por horas seguidas. Talvez o ponto mais deprimente tenha sido a apresentação da negativa, cuidadosamente redigida, de Kavanaugh, sobre se teria “encostado o pênis no rosto de uma colega da classe de Yale quando ambos estavam bêbados”.
Anotações de uma agenda dele da época do ensino médio, quando tinha 17 anos, também foram esmiuçadas, sobre “flatulências”, “vômitos” e coisas do gênero. Ali Kavanaugh reconheceu que bebia, sim, desde adolescente, mas não a ponto de ficar incapaz de se lembrar do que tinha acontecido e que “jamais” assediara alguém. Como estava sob juramento, se mentiu sobre comentários de enésima ordem de seu diário, cometeu perjúrio.
É quase irônico que o principal redator das apimentadas “descrições gráficas” dos relacionamentos com uma estagiária do então presidente Bill Clinton no salão Oval, do relatório de Kenneth Starr de 1998 [“sexo oral enquanto falava ao telefone com políticos” e “charuto apagado enfiado na vagina”], Kavanaugh, seja agora publicamente exposto, ele próprio, como um predador sexual.
Ele jura que não, e é muito difícil 36 anos depois provar qualquer coisa. Nem mesmo Kavanaugh tentou dizer que nada ocorreu com Ford, apenas asseverou que “não era ele”. Segundo a acusadora, na agressão ele foi auxiliado por um amigo, Mark Judge, que também cursava o Georgetown Preparatory. Judge enviou declaração juramentada de que “não recorda” os eventos descritos por Ford. “Nunca vi Brett agir do modo que Ford descreve”.
Enquanto a indicação de Kavanaugh – e a reputação, se é que ele tinha alguma – são incineradas na fogueira das acusações de assédio sexual que se espalha pela América, inquisidores democratas e defensores republicanos têm se calado quanto àquilo de que não há dúvida e que demonstra sua completa inaptidão para o cargo de mais alto magistrado da nação norte-americana.
MEMORANDO DA TORTURA
Ele era conselheiro jurídico da Casa Branca quando o governo de W. Bush em 2002 aprovou os Memorandos da Tortura, que oficializaram o espancamento até à morte, o waterboarding (simulação de afogamento), a indução à loucura pelo impedimento de dormir e outras atrocidades da CIA que Hollywood glamourizou como grandes feitos da Guerra ao Terror.
Outro dos feitos de Kavanaugh foi ter sido um dos mais importantes operativos do esquema jurídico que arrancou da Suprema Corte a legalização do esbulho da eleição de Al Gore, pelo roubo de votos na Flórida, em favor de W. Bush. Não está claro que papel desempenhou na elaboração da legislação da Lei Patriótica, que revogou na prática boa parte da Constituição dos EUA após o 11 de Setembro – mas não deve ter sido insignificante. Ele também já defendeu publicamente o grampeamento em massa cometido pela NSA, elogiando sua “constitucionalidade”.
Kavanaugh, que cursou uma das universidades que formam as elites do país, Yale, ali foi membro daquelas gangues típicas dos campi norte-americanos, conhecidas por treinarem os futuros líderes na falta de limites e de escrúpulos, a Delta Kappa Epsilon. Outro notório membro dessa “fraternidade” foi W. Bush.
Sobre o que cometiam, há o depoimento de uma ex-namorada de Judge ao The New Yorker, dele se gabando de como, com outros do bando, “faziam turnos para fazer sexo” – isto é, estuprar – uma colega de universidade após embebedá-la. Há denúncias de que as garotas também eram drogadas com sedativos.
Se a indicação de Kavanaugh passar, entidades e personalidades dos EUA temem a reversão do caso Roe vs Wade, e conseqüente recriminalização do aborto. No mais, a Suprema Corte tem se superado ultimamente em reacionarismo, como fez ao tornar a interferência dos magnatas para manipular eleições com quanto dinheiro quiserem em ‘liberdade de expressão’. Também descartou a proteção ao voto dos negros e a direitos trabalhistas.
Que ninguém se espante: essa é a corte que revogou a Era Lincoln com as leis racistas “Jim Crow”, só derrubadas pelo levante do movimento dos Direitos Civis de Martin Luther King, muitas décadas depois. Enquanto não falta indignação moral nos meios ditos progressistas de Washington quando se trata das violações sexuais alegadas, é flagrante o silêncio diante dos mais gritantes crimes cometidos pelos EUA no planeta inteiro. Dos milhões de seres humanos assassinados nas guerras a pretexto da ‘Guerra ao Terror’ às sanções que jogam nações inteiras no desespero e fome.
É certo que Trump irá simplesmente substituir Kavanaugh por outro jurista igualmente reacionário e venal, caso a indicação seja bloqueada. No mais, a grande preocupação dos democratas hoje é empurrar os EUA para uma política externa agressiva contra a Rússia e defender os bancos, e tudo o mais fica relativizado.
A.P.