Delírios econômicos em uma tarde de segunda-feira

“Estamos finalmente numa fase boa da economia”(foto: Fernando Frazão/Agência Brasil)

Na tarde de segunda-feira, uma senhora (ou senhorita), que exerce a função de “comentarista” de economia em um canal de notícias na TV a cabo, nos deixou algo em dúvida se estávamos vivendo no mesmo país – ou no mesmo mundo.

Era bastante parecido (não a mencionada senhora, mas a sensação que nos acometeu) com aquela espécie de doente mental que fala com tanta convicção de suas alucinações, que até os psiquiatras ficam em dúvida se os loucos não são eles próprios, que não estão vendo, ou ouvindo, nada daquilo.

Pois, disse ela, “vamos falar da coleção de boas notícias na nossa economia” – e haja números ridículos, intercalados com frases do tipo “estamos finalmente numa fase boa da economia”, “a Bolsa bateu um recorde, significa que as ações estão se valorizando com a perspectiva de melhora da nossa economia”. Segundo ela, a Bolsa é um “importante termômetro do crescimento econômico” (e não da especulação – onde, aliás, até nisso, a Bolsa de Valores é inteiramente secundária, no Brasil, há pelo menos 30 anos; em outros países, há muito mais que isso).

O grau de ignorância era supino – pois ela parecia acreditar em tudo o que dizia.

Em seguida, um diretor do Banco Central, entrevistado pela mesma senhorita, apareceu para aconselhar ao cidadão que é preciso “poupar ativamente” (sic) no momento atual – em um país onde 69% da força de trabalho não tem nem salário (cf. IBGE, PNAD Contínua, 3º trimestre 2019, Quadro Sintético).

De quebra, o sujeito esclareceu que os juros ao consumidor vão baixar quando o capital estrangeiro entrar no país (e a gente nem sabia que ele tinha ido embora).

Ao contrário da senhorita, o diretor do BC não parecia acreditar no que dizia – exceto que considera que a maior parte da população brasileira não existe ou não devia existir (ou deve existir apenas como reserva de escravos para meia dúzia de plutocratas, que, por sinal, são serviçais eufóricos dos plutocratas dos EUA).

O único aspecto bom da estupidez extrema – ou da canalhice extrema – é que nos obriga a estudar, nem que seja para não ser iguais a esses anormais.

Comecemos pelos números do Produto Interno Bruto (PIB) do terceiro trimestre.

Vejamos a indústria de transformação (o setor manufatureiro) este ano:

INDÚSTRIA DE TRANSFORMAÇÃO

(taxa acumulada ao longo do ano)

1º trimestre: -1,6%;

2º trimestre: -0,1%;

3º trimestre: -0,2%.

[cf. IBGE, Sistema de Contas Nacionais Trimestrais, 3º trimestre de 2019, Tabelas.]

Este é, como se sabe há muito, o setor mais importante – aliás, o setor decisivo – para o crescimento de qualquer economia.

Porém, pode ser que a indústria extrativa esteja melhor. Não seria uma compensação, mas tornaria o resultado menos catastrófico. Porém, nada há que se esperar daí:

INDÚSTRIA EXTRATIVA

(taxa acumulada ao longo do ano)

1º trimestre: -3,0%;

2º trimestre: -6,3%;

3º trimestre: -2,7%.

Então, nem mesmo a extração de riquezas naturais conseguiu prosperar sob um ministro da Economia e um presidente que são criminosamente incompetentes.

É verdade que, especificamente no 3º trimestre, se comparado ao trimestre anterior, a indústria extrativa teve um aumento de 12%, que, além de não ser sustentável, nem assim foi capaz de tirar o resultado do ano do vermelho (v. acima: -2,7%).

Vejamos, então, o resultado total da indústria (que, além da indústria de transformação e da indústria extrativa, inclui os setores de “Eletricidade e gás, água, esgoto, gestão de resíduos” e a construção civil):

INDÚSTRIA TOTAL

(taxa acumulada ao longo do ano)

1º trimestre: -1,0%;

2º trimestre: -0,3%;

3º trimestre: 0,1%.

Em suma, um desastre para o país (embora não para Guedes e Bolsonaro, cujo problema ou objetivo nada têm a ver com o país).

Uma síntese:

“O PIB cresceu à taxa fantasticamente baixa de 0,6% no período! Vergonhosa taxa. Insignificante. A estagnação continua. Inabalável. (…) Os números do IBGE mostram que a taxa de investimento da economia continua em níveis depressivos. No terceiro trimestre de 2019 foi de 16,3% do PIB, a mesma que foi observada no mesmo período do ano anterior (16,3%). Inabalável. O mesmo acontece com a taxa de poupança: 13,5% no terceiro trimestre de 2019, ante 13,1% no mesmo período de 2018.

“… os ramos industriais que realmente determinam a dinâmica da economia caíram fortemente.

“Vejam a estratégica indústria de transformação, a mais importante da economia, em termos qualitativos. É ela que determina toda a dinâmica da economia. Caiu 1% no 3º trimestre [em relação ao trimestre anterior]. E os igualmente importantes setores industriais das utilidades públicas (eletricidade, gás, água, esgoto, atividades de gestão de resíduos, etc.) recuaram 0,9%. Também recuaram atividades produtivas de transporte, armazenagem e correio. Tudo de acordo, repita-se, com os próprios números divulgados pelo IBGE.

“Em resumo, o PIB só cresceu nas atividades improdutivas da economia. Mesmo assim residualmente, diga-se de passagem. Nos chamados serviços, por exemplo, os resultados positivos foram puxados pelas atividades financeiras, de seguros e serviços relacionados (1,2%), comércio (1,1%), informação e comunicação (1,1%), atividades imobiliárias (0,3%) e outras atividades de serviços (0,1%). Apresentaram recuo: administração, defesa, saúde e educação públicas e seguridade social (-0,6%).

“O que quer dizer estes números de uma porca economia? Que o desemprego continuará nos indecentes níveis atuais. Que a qualidade dos novos empregos (com os criminosos “informais”, “intermitentes”, etc.) continuará sendo brutalmente rebaixada. Que os trabalhadores que conseguirem emprego serão obrigados a vender sua força de trabalho por um salário de fome absoluta. Serão obrigados a aceitar condições de trabalho que nem os animais de carga são submetidos” (cf. José Martins, O pancadão da economia, in Crítica da Economia 07/12/2019).

O resto, concordamos, é palhaçada:

“Normalíssimo. Já está todo mundo acostumado a esse lero do sistema. Assim, nesta repetitiva e monótona ópera bufa, o novo ‘o PIB surpreendeu positivamente’. Como, aliás, já tinha ‘surpreendido positivamente’ no 2º trimestre. E no 1º trimestre, e assim por todos os demais depressivos anos e trimestres passados.

“Qual o roteiro? Simples. Ao invés dos esperados 0,4% de crescimento no 3º trimestre, que havia sido previsto pelo Relatório Focus, do Banco Central, o PIB cresceu 0,6%! Estourem os champanhes, o PIB cresceu mais do que o previsto!

“O que interessa nesta enrolação federal não é o fato de continuar sendo uma merreca de Pibinho, mas sim a ínfima diferença entre o previsto pelo Focus e o realizado pelo IBGE. Mesmo que as duas coisas sejam comparativamente a mesma coisa. Miseravelmente a mesma coisa.

“Assim, só porque o PIB do trimestre cresceu míseros 0,2 pontos percentuais acima do igualmente miserável crescimento previsto pelo Relatório Focus, este ‘desempenho mais positivo da economia brasileira’ no último trimestre impulsionou revisões para as estimativas de crescimento de 2019 e 2020 que também subiram dois ou três décimos de ponto percentual” (idem).

E nem mesmo, acrescentamos nós, há certeza de que esses 0,6% não são uma fraude. Aliás, ninguém discute que Paulo Guedes seria capaz disso.

A lebre (aliás, o rato) foi levantada pelo “Financial Times” (v. Jonathan Weathley, Brazilian economic data glitch stirs concerns among analysts, FT 03/12/2019).

O “Financial Times” é imperialista. Mas não é burro. Nem gosta, até por ser imperialista, de ser trapaceado.

Aliás, quantas vezes, desde 1947, quando o IBGE calculou o PIB do ano pela primeira vez, o “Financial Times” (ou lá quem quer que seja) desconfiou publicamente, seriamente, dos resultados divulgados no Brasil?

Em mais de 70 anos, uma única vez: agora.

C.L.

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