Traduzimos e publicamos a seguir coluna divulgada pelo jornal israelense Haaretz, autoria de Hagai El-Ad diretor da organização israelense, B’Tselem, dedicada à denúncia das agressões aos direitos humanos dos palestinos nos territórios ocupados por Israel, com o título “Não Gantz, democracia não combina com anexação”.
No artigo, Hagai El-Ad condena a submissão do opositor Benny Gantz ao premiê Bibi Netanyahu indiciado por fraude, suborno e quebra de confiança. Para entrar para o governo de Ntanyahu, Gantz aceitou firmar documento conjunto no qual se propõem a anexar o Vale do Jordão, um território que abarca um terço da Cisjordânia, território palestino ocupado que integra a base central para a constituição da Palestina livre da ocupação e integrada à solução de paz dos Dois Estados.
No dia em que a Suprema Corte de Israel debate ação movida contra a continuidade de Netanyahu, uma vez criminalmente indiciado, à frente do governo israelense, consideramos oportuno publicar a matéria de Hagai denunciando a característica antidemocrática do governo que se forma com base no assalto a terras palestinas.
NATHANIEL BRAIA
HAGAI EL-AD*
Agora que um acordo de coligação entre o Likud [partido de Netanyahu] e o Kahol Lavan [Azul e Branco, lista com a qual o ex-opositor, Benny Gantz, concorreu ao parlamento e se esfacelou durante o acerto com o governo] foi assinado, vale examinar o seu significado, em particular em duas questões centrais. Para a Kahol Lavan, a folha de figueira que ostensivamente justifica sua entrada no governo de Netanyahu e prova que está se mantendo fiel a seus princípios é a preservação da “democracia e do primado do direito”. Para este fim, o partido concordou em “se comprometer” e consentir em movimentos que adiantam a “anexação do Vale do Jordão” programada para o 1º de julho.
Isto é basicamente tudo que se necessita saber acerca do que aqui se pensa, em todos os sentidos, com relação a “democracia”. Afinal de contas, não há qualquer conexão entre “democracia e primado do direito” e a continuada dominação sobre milhões de palestinos que não têm nenhum direito.
O que Israel está fazendo para além da linha verde [como são denominadas as fronteiras de Israel até antes da Guerra dos Seis Dias, de 1967] é antidemocrático por sua própria natureza. Os palestinos não têm direitos políticos, não tomam parte em qualquer processo democrático, e todas suas vidas são controladas por sistemas israelenses sobre os quais não possuem nenhuma representação. Nenhuma questão palestina jamais foi parte de alguma eleição, indicação ou promoção para a Suprema Corte, para as cadeiras do Knesset [parlamento israelense], para promover oficiais militares ou indicar ministros do governo, todos estas, instituições que tomam decisões diárias sobre o que ocorre nos territórios.
Como estes são os fatos, toda essa conversa elevada sobre democracia não faz o menor caso, nem há qualquer sentido em se falar sobre primado do direito. Não apenas no senso superficial da ausência de qualquer demanda contra os membros das forças de segurança que matam palestinos, ou da inexistência da força da lei sobre os colonos que os agridem, mas no sentido mais profundo também: como pode o primado do direito fazer qualquer sentido quando este é determinado, interpretado e aplicado de acordo com os interesses daqueles que controlam e oprimem os a eles sujeitos com a intenção de perpetuar seu domínio por meio deste mesmo “direito”?
Como Humpty Dumpty [personagem de Lewis Carol em “Alice através do espelho”] explicou a Alice: “A questão é – quem vai mandar, só isso.” E, portanto, o significado de uma palavra é “apenas o que eu escolher – nem mais nem menos.” Nos territórios, o significado da palavra “lei” é apenas aquele que Israel escolher. Assim, é legal atirar em manifestantes desarmados, arrasar prédios, roubar terras e fazer faltar água, eletricidade e acesso a serviços de saúde essenciais às pessoas.
Mas, Kahol Lavan juntou-se à coalizão para salvar a democracia e o primado do direito. Como isso funciona? Não há problema aqui: eles estão, no máximo, pensando apenas nos vários casos de corrupção envolvendo Netanyahu e sobre “a corrupção pública”, não nos milhares que levaram tiros, ou acerca da corrupção moral na raiz do regime israelense. Os líderes do Kahol Lavan nem se importam em esconder isso, e estão até ávidos em esclarecer sua intenção em toda essa celebração da democracia que defendem. É uma incrível democracia cujo governo sobre milhões de sujeitos não a mina nem de leve, ao ponto em que não é preciso nem os mencionar.
Mas Kahol Lavan não se contenta com o silêncio pacífico acerca desses sujeitos. Em uma seção do acordo de coalizão, há roteiros de um movimento proativo com respeito ao futuro: com apenas uma variação ou outra – a ser acordada com o poderoso de Washington, da ”anexação”, com, como de costume, os palestinos nem mesmo serem consultados sobre ela.
As implicações práticas deste ato de anexação não estão claras neste estágio – uma vez que Israel, em qualquer caso, age nos territórios como se dentro de suas próprias fronteiras; tem, para todos os efeitos já os anexado, e sua intenção, que é perpetuar seu domínio sobre os palestinos, já há tempos tem sido clara.
Mas sua contribuição é grande em ambos os contextos: primeiro ao expor o fato de que nada separa Kahol Lavan do Likud quando se trata do uso cínico da democracia como um rótulo vazio, incluindo o trato com os palestinos, não como seres humanos, mas como mercadoria política nas negociações da coalizão. E, em segundo, quando se trata de reduzir a distância entre o que Israel já faz, com o patrocínio da América, e aquilo que ambos estão, agora, dizendo.
O apartheid não está esperando pelo 1º de julho – já está por aqui há algum tempo – mas, com uma declaração oficial israelense, vai ficar mais difícil olhar para fora do reflexo no espelho.
Sim, em termos de expor a realidade em toda sua feiura, o acordo de coalizão está dando uma real contribuição ao significado dos propósitos: Perpetuar o domínio sobre milhões de sujeitos sem direitos? Confira; Democracia? Confira; Primado do Direito? Confira. Voltando a Alice: “A questão é”, disse Alice, “saber se o senhor pode fazer as palavras dizerem coisas diferentes.” Mas Humpty Dumpty lembra a ela: “A questão é quem vai mandar – isso é tudo.”
*O autor é diretor da organização israelense B’Tselem (focada em denunciar a agressão aos direitos humanos dos palestinos), colunista do jornal Haaretz. Em janeiro acompanhei juízes brasileiros à sede da organização dirigida por Hagai em Jerusalém. A partir da conversa foi realizada uma matéria acerca do debatido durante a visita. A matéria está no link: