
Depois de 110 civis mortos em sete dias de protestos contra a falta de empregos, os apagões e a corrupção no Iraque, o exército iraquiano admitiu o “uso excessivo” da força. Segundo as próprias autoridades iraquianas, mais de seis mil pessoas ficaram feridas. As manifestações começam a exigir a renúncia do primeiro-ministro Adel Abdul Mahdi.
A primeira admissão dos “excessos” é referente à violenta repressão às manifestações em Sadr City, um dos subúrbios mais pobres de Bagdá, na região leste da capital, na noite/madrugada de domingo para segunda-feira, com saldo de 13 civis mortos e barricadas por toda a parte, conforme a France Presse.
“Houve um recurso à força de uma forma excessiva e que ultrapassou as regras de conduta”, registrou comunicado militar emitido na segunda-feira, que joga a culpa sobre oficiais envolvidos na operação, de quem seria “pedidas explicações”. O primeiro-ministro ordenou a retirada das tropas de Sadr City e sua substituição por policiais. Na repressão, vêm participando também forças antiterroristas e milicianos.
As manifestações começaram timidamente na terça-feira (1º) da semana passada em Bagdá e se avolumaram e estenderam ao sul do país, depois que tropas impediram a tiros a ida até à Zona Verde, onde ficam os ministérios e a embaixada norte-americana gigante, símbolo da ocupação e da corrupção.
As áreas onde a indignação tem sido mais intensa são de maioria xiita, que a coalizão no poder diz representar. Em Sadr City e em outras regiões, sedes do partido Dawa, que integra a coalizão governista, foram queimadas. Protestos ocorreram também em Basra – a maior cidade do sul e terceira maior do país -, Nassíria, Najaf, Karbala, Hilla, Diwaniya, Kut e Amara. Os atos também já chegaram ao norte da capital, a Baqba.
JUVENTUDE TOMA AS RUAS
A maior parte dos manifestantes é constituída por jovens, num país onde 60% da população tem idade até 25 anos e o desemprego para os jovens chega a 40%. Jornalistas que cobriram os protestos descreveram espancamentos e tiros dados desde os telhados, além de gás lacrimogêneo, canhões de água e balas de borracha. O governo chegou a decretar toque de recolher em Bagdá e outras cidades e bloqueou as redes sociais.
O fato de que dezesseis anos após a invasão e o assassinato do presidente Sadam o Iraque, um dos países mais ricos em petróleo do mundo, não consiga pagar salários dignos, proporcionar empregos ou pelo menos ter um sistema elétrico que funcione, é expressão da devastação trazida pela guerra de W. Bush, a guerra que passou tristemente para a história como a do “sangue por petróleo” e a da mentira das “armas de destruição em massa”.
A invasão/ocupação matou mais de um milhão de iraquianos, destruiu o que era o mais avançado sistema de saúde e educação do Oriente Médio e uma infraestrutura que fora possível pela nacionalização do petróleo e colocação da renda do petróleo a serviço do povo e do desenvolvimento.
DE PRIMEIRA HORA
Para conter a insurgência contra a ocupação, Washington lançou mão de cooptar partidos e milícias pró-iranianas. O primeiro-ministro Mahdi é um colaboracionista de primeira hora, tendo sido ministro “das finanças” do primeiro governo fantoche sob W. Bush, em 2004.
A “constituição” em vigor, que foi trazida dos EUA já pronta, impôs o sectarismo de cima a baixo da sociedade iraquiana, com cargos, sinecuras e saqueio loteados entre “xiitas”, “sunitas” e “curdos”.
Empresas fantasmas, obras que não ficam prontas nunca e até soldados fantasmas para que oficiais embolsem o salário se tornaram quase a norma nesse “novo Iraque” estranhamente submetido a Washington e a Teerã.
Mahdi se tornou o consenso para primeiro-ministro depois que o repúdio a Nouri Al Malik inviabilizou sua continuação no cargo em 2018, após os enormes protestos contra os apagões em Basra e outras cidades do sul. Também tenta se equilibrar em não desagradar Washington nem Teerã.
AIATOLÁ SISTANI
Para o aiatolá Ali Sistani, principal autoridade religiosa xiita no Iraque, “o parlamento tem a maior responsabilidade pelo que está acontecendo”.
Após lamentas “tantas mortes, baixas e destruição”, Sistani, em carta que foi lida por seu representante durante um sermão, afirmou que o governo e os partidos políticos “não responderam às demandas do povo para combater a corrupção ou melhorar a vida”.
Ele advertiu que se as reivindicações não forem atendidas “o povo voltará ainda com mais força”. O clérigo conclamou a todos os lados a acabarem com a violência “antes que seja tarde demais”.
O escorregadio Muqtada Sadr, que flana entre Teerã e Riad – e conhecido por ter chamado à resistência à invasão inicialmente e depois se bandeado para a violência sectária -, pediu a renúncia de Mahdi e a antecipação das eleições.
Observadores se preocupam que a “pressão máxima” de Trump contra o Irã utilize o Iraque como trampolim, sendo que Israel tem bombardeado o que diz ser alvos de “milícias iranianas” no Iraque. Também a reabertura da fronteira com a Síria em Al Qaim, é apresentada na mídia ocidental como a conclusão da ligação por terra do Irã à Síria.
A Cruz Vermelha Internacional conclamou a que o uso da força pelas forças de segurança seja “proporcional” à situação e “medida excepcional”. “Em particular, armas de fogo e munição viva só devem ser usadas como último recurso e para proteger contra uma ameaça iminente à vida”, disse a chefe da delegação do CICV no Iraque, Katharina Ritz.
PROMESSAS
Tentando aplacar a ira do povo iraquiano, na sessão de emergência do parlamento o governo Mahdi prometeu construir 100 mil apartamentos de baixo custo, dar terrenos aos pobres para construir suas próprias casas, conceder empréstimos sem juros, criar um seguro desemprego de US$ 147 durante três meses, impulsionar a criação de empresas para gerar empregos e estabelecer uma corte superior só para tratar da corrupção.
No discurso em que anunciou o toque de recolher, Mahdi justificou a repressão como um “remédio amargo”, mas necessário. “Temos que voltar à vida normal nas reuniões e respeitar a lei”, afirmou, acrescentando que não faria promessas vazias “que não possam ser cumpridas”.
Preventivamente, Mahdi disse que “não havia solução mágica” para os problemas do Iraque e até asseverou que ele – como os demais colaboracionistas postos no poder pela invasão dos EUA – não viviam “em torres de marfim” – “andamos entre vocês nas ruas de Bagdá”. Horas depois, suas tropas voltaram a disparar contra manifestantes na capital iraquiana.
A conflagração ocorre às vésperas de Arbaeen, uma peregrinação xiita que tem atraído anualmente 20 milhões de fiéis, que caminham durante dias a pé pelo sul do Iraque – um evento que é dez vezes maior que o de Meca. Os conflitos levaram o Irã a fechar uma das passagens de fronteira usadas por milhões de peregrinos.
ANTONIO PIMENTA