
Em entrevista ao jornal chinês de língua inglesa, Global Times, a deputada alemã Sevim Dagdelen, do partido A Esquerda, defendeu a dissolução da OTAN e sua substituição por uma arquitetura de segurança europeia coletiva que inclua a Rússia; afirmou que o conflito na Ucrânia tem de ser resolvido através de negociações sérias e não pela remessa de armas pesadas ao regime de Kiev; e advertiu contra o “suicídio econômico” que a submissão do governo de Berlim às sanções dos EUA contra a Rússia vem acarretando à Alemanha.
Relembrando a política de détente de Willy Brant, ela pediu “esforços diplomáticos sérios na busca de uma solução negociada, como já estava à vista nas negociações em Istambul no final de março”, apontando que “equilibrar interesses pacificamente por meio da diplomacia é a única saída para a espiral de escalada”.
“Não haverá paz na Europa contra ou sem a Rússia”, destacou. “Para salvar a paz, a segurança e a estabilidade na Europa, o confronto e o pensamento baseado em bloco precisam ser superados. Não podemos mudar a geografia. A Rússia faz parte da Europa e temos que lidar com isso”.
Dagdelen enfatizou que o objetivo de Washington é “enfraquecer a Rússia a longo prazo” e para isso se dispõe a aceitar “dezenas de milhares de mortes e sofrimento sem limites, bem como a destruição da Ucrânia”. E o objetivo principal europeu – acrescentou – “deve ser garantir que nosso continente não se torne um campo de batalha nuclear”.
“Embora isso possa parecer utópico para muitas pessoas na Alemanha hoje neste momento, nosso objetivo de longo prazo deve ser dissolver a OTAN e substituí-la por um sistema de segurança coletiva que tenha o desarmamento e a cooperação como seu objetivo principal”.
A parlamentar repudiou a ampliação da OTAN e seu redirecionamento para intervir também no chamado Indo-Pacífico.
Ela chamou a Alemanha e a União Europeia a assumirem um papel de “aposta no equilíbrio e na cooperação no mundo multipolar de amanhã” e conclamou a que o continente não seja arrastado para uma guerra econômica contra a China, onde teria a perder “ainda mais do que em relação à Rússia agora”.
Para concluir, Dagdelen ressaltou que a guerra econômica contra a Rússia está “colocando em risco todo o modelo de prosperidade da Alemanha. As sanções ocidentais não acabaram com a guerra. Em vez disso, elas estão agindo como um bumerangue. Estão nos atingindo, as pessoas e a indústria na Alemanha”.
A seguir, na íntegra, a entrevista de Sevim Dagdelen ao repórter Wang Wenwen.
GLOBAL TIMES: Em junho, a Alemanha aprovou armamentos no valor de 350 milhões de euros para a Ucrânia. Mas você pediu mais esforços diplomáticos em vez de entregas de armas. Que impacto têm vozes anti-guerra como a sua? Que tipo de esforços diplomáticos você está pedindo?
SEVIM DAGDELEN: A Alemanha, como muitos outros países ocidentais, forneceu armas pesadas para a Ucrânia em grande escala. E, ao lado do meu partido A Esquerda, falei contra as entregas de armas desde o início, porque achamos que elas prolongarão a guerra e a perda de vidas na Ucrânia.
As entregas de armas cada vez mais pesadas para a Ucrânia em números cada vez maiores, bem como o treinamento do pessoal de serviço ucraniano, aumentam o risco de a guerra se espalhar para a Terceira Guerra Mundial. Essa preocupação é compartilhada por dois terços da população alemã. Portanto, não estamos isolados nesta questão.
As guerras são travadas com armas, mas terminadas por negociações. Liderado pelos EUA e Reino Unido, o Ocidente está colocando sua fé em uma guerra por procuração e uma guerra de desgaste.
O objetivo é enfraquecer a Rússia a longo prazo e, para isso, o Ocidente está disposto a aceitar dezenas de milhares de mortes e sofrimento sem limites, bem como a destruição da Ucrânia.
A extensão da guerra econômica significa que estamos realmente perseguindo o suicídio econômico no momento, cometido pelo governo alemão através das sanções contra a Rússia.
Precisamos de esforços diplomáticos sérios na busca de uma solução negociada, como já estava à vista nas negociações em Istambul no final de março. E quanto mais a guerra durar, mais terríveis serão seus efeitos, não apenas sobre as pessoas na Ucrânia, mas sobre as pessoas ao redor do mundo, como demonstra a atual crise alimentar.
GT: À medida que a crise na Ucrânia se arrasta, os cidadãos alemães precisam se preparar para o aumento dramático dos custos do gás. Como você vê o fato de que os interesses das pessoas comuns são prejudicados por aqueles que estão por trás da crise na Ucrânia?
DAGDELEN: A guerra econômica com a Rússia está colocando em risco todo o modelo de prosperidade da Alemanha. As sanções ocidentais não acabaram com a guerra. Em vez disso, elas estão agindo como um bumerangue. Elas estão nos atingindo, as pessoas e a indústria na Alemanha.
Afinal, a receita da Rússia com as exportações de energia, apesar da queda nas vendas e nos volumes, é maior do que há um ano, graças às sanções que elevaram os preços.
Assim, o preço dessas sanções sem sentido está sendo pago pelo público em geral que está sofrendo com a inflação alta e os custos de energia e alimentos explodindo, enquanto as corporações petrolíferas e as empresas de armas estão lucrando.
Se as entregas de gás da Rússia cessarem, enfrentaremos um desastre na Alemanha como não conhecíamos desde a crise econômica global durante a República de Weimar.
Calculou-se que, no caso de interrompidas as entregas de gás russas, a produção econômica da Alemanha cairia mais de 12% nos seis meses subsequentes. E mais de 5,6 milhões de empregos estariam em risco. Assim, o governo alemão deve acabar imediatamente com a guerra econômica suicida, para o bem do povo da Alemanha.
GT: O suposto objetivo da OTAN é salvaguardar a paz e a segurança na Europa. Mas, a julgar pela crise na Ucrânia e pelo que aconteceu no Afeganistão e em outros países, você acha que a OTAN está trazendo paz ou incerteza para a Europa e o mundo?
DAGDELEN: A planejada ampliação da OTAN para aceitar a Finlândia e a Suécia demonstra, mais uma vez, que se trata de um vasto pacto militar de natureza expansionista, e todas as promessas que o Ocidente fez à Rússia não passaram de mentiras. Embora nada possa justificar a guerra de agressão da Rússia na Ucrânia, a OTAN tem parte da responsabilidade pelo desenvolvimento do conflito.
Assim, até o Papa Francisco descobriu que “os latidos da OTAN às portas da Rússia” desempenharam um papel.
As guerras da OTAN lideradas pelos EUA em todo o mundo, desde o ataque à Iugoslávia em 1999, 20 anos no Afeganistão com mais de 200 mil afegãos mortos, crimes de guerra e a destruição da Líbia, mostram que a OTAN não é uma aliança defensiva, mas a maior máquina de guerra.
É por isso que precisamos de uma arquitetura de segurança na Europa para a segurança e certeza das pessoas na Europa, o que inclui os países europeus. Não podemos mudar a geografia. A Rússia faz parte da Europa e temos que lidar com isso.
A outra coisa é a ampliação da OTAN e seu conceito estratégico agora. A OTAN é chamada de Organização do Tratado do Atlântico Norte. Agora, em seu conceito estratégico, a OTAN coloca em foco a região do Indo-Pacífico. O Oceano Índico ou Oceano Pacífico está longe do Atlântico Norte.
GT: Qual é o maior obstáculo ao objetivo da UE de alcançar a autonomia estratégica agora?
DAGDELEN: A União Europeia tem interesses existenciais em não se deixar levar pelo conflito entre as grandes potências nucleares como Estados Unidos, Rússia e China. Isso exigirá uma política externa e de segurança autônoma, independente de Washington.
E o objetivo principal deve ser garantir que nosso continente não se torne um campo de batalha nuclear. E mais urgentemente os estados da Europa precisam pressionar por um fim rápido ao conflito na Ucrânia e, a todo custo, impedir que o conflito se espalhe.
Os interesses da Europa e dos países europeus e os interesses dos EUA divergem fundamentalmente neste ponto.
Porque como este último está preparado para lutar até à última resistência ucraniana por causa de uma derrota militar russa – essa é a posição dos EUA-, a União Europeia não deve se submeter ao seu interesse e estratégia.
A maior autonomia não deve levar ao aumento da militarização dos estados membros da União Europeia. Pelo contrário, a União Europeia deve tornar-se uma potência pacífica que busca o equilíbrio na Europa e busca a diplomacia.
GT: Que tipo de mecanismo de segurança a Europa deve buscar? A China promove um novo conceito de segurança, que pistas esse conceito de segurança pode oferecer à Europa?
DAGDELEN: Para salvar a paz, a segurança e a estabilidade na Europa, o confronto e o pensamento baseado em bloco precisam ser superados. Essa é a primeira coisa que temos que fazer.
A política de détente implementada pelo ex-chanceler federal Willy Brandt deve servir de exemplo aqui. Equilibrar interesses pacificamente por meio da diplomacia é a única saída para a espiral de escalada.
Embora isso possa parecer utópico para muitas pessoas na Alemanha hoje neste momento, nosso objetivo de longo prazo deve ser dissolver a OTAN e substituí-la por um sistema de segurança coletiva que tenha o desarmamento e a cooperação como seu objetivo principal.
Não haverá paz na Europa sem ou contra a Rússia. É isso que temos que aprender com a crise atual. Temos que ter uma arquitetura de segurança, que respeite os interesses de cada um.
GT: A UE lida com a China simultaneamente como parceiro de cooperação e negociação, concorrente econômico e rival sistêmico. Recentemente, algumas vozes dos EUA e da Europa estão exaltando que “a China está perdendo a Europa”. O que você acha dessas vozes? Quais são os incentivos para a futura cooperação China-Europa?
DAGDELEN: O ataque à China tomou uma forma cada vez mais agressiva nos EUA, aqui na Alemanha e na Europa. No momento, o governo alemão está planejando desenvolver uma nova estratégia para a China no âmbito da estratégia de segurança nacional. E essa estratégia provavelmente será tão conflituosa quanto o novo conceito estratégico da OTAN.
A Alemanha e a União Europeia devem assumir um papel de aposta no equilíbrio e na cooperação no mundo multipolar de amanhã. E isso é muito importante para preservar a paz e resolver desafios globais, como uma pandemia e mudanças climáticas, e também no interesse da população alemã.
Como a Alemanha tem laços econômicos estreitos com a China, o governo alemão deveria seguir o caminho da cooperação em vez do confronto.
Espero que o governo alemão e a União Europeia encarem com muita seriedade e honestidade os impactos da guerra econômica contra a Rússia que eles iniciaram.
Eles verão que a economia e o comércio em nosso mundo estão tão conectados. Se eles começarem a desacoplar e travar uma guerra econômica contra a China também, eles vão perder ainda mais do que em relação à Rússia agora.
Não acho que a China esteja perdendo a Europa ou a Europa esteja perdendo a China. Acho que ainda é uma luta porque os EUA não escondem que querem a Europa do seu lado contra a China. Portanto, não há agenda oculta; eles estão sendo muito francos. Esta pergunta ainda não foi respondida. E espero que a razão prevaleça no final.
Excelente visão da deputada alemã!! se nada for feito o conflito vai se escalar cada vez mais sem dúvida está se formando uma nova ordem mundial e uma guerra fria 2.0 pela frente está arriscado ficar no continente europeu nos próximos meses!!