A manobra do primeiro-ministro Boris Johnson para transformar a saída da União Europeia em um ‘Brexit para o colo de Trump’ foi duplamente derrotada na quarta-feira (4), quando o parlamento britânico proibiu um Brexit sem acordo de transição e ainda barrou simulacro de eleição proposto por ele com exatamente o mesmo objetivo.
A recusa ao Brexit sem acordo foi aprovada por 327 a 299. Para sua ‘antecipação da eleição’, Boris precisava de dois terços dos votos, mas faltaram 136. A maior parte dos trabalhistas e todos os nacionalistas escoceses do SNP se abstiveram.
No processo, o governo Johnson tornou-se um governo de minoria, após a saída de um ex-ministro, Phillip Lee, e o primeiro-ministro expulsou nada menos que outros 21 deputados por terem votado contra seu Brexit sem acordo.
Na semana passada, manifestações em Londres e mais 80 cidades inglesas repeliram o fechamento do parlamento por cinco semanas no momento mais crítico da conclusão da negociação do Brexit, imposição de Johnson.
Com antecipação de eleição ou sem antecipação, o objetivo de Boris Johnson é desvirtuar a decisão do referendo de 2016 – de um Brexit que restaure a soberania e remova os miasmas do thatcherismo – para a vassalagem a Trump sob um acordo comercial.
Questão evidenciada na troca de imputações entre Corbyn e Johnson no plenário. Com o líder da oposição denunciando Johnson por deixar a Grã Bretanha “à mercê de Trump e das corporações norte-americanas em um acordo comercial unilateral”, enquanto o primeiro-ministro o acusava de “rendição à Europa”.
Ainda como apontou Corbyn, “não há consenso nesta Casa para deixar a UE sem um acordo, não há maioria para um não-acordo no país”. Ele também chamou o governo Johnson de “sem mandato” e “sem moral” – e, a partir de agora, “sem maioria”.
TRAVA
A legislação aprovada após três votações obriga Boris Johnson a pedir à União Europeia uma extensão de três meses do prazo para o Brexit se nenhum acordo de transição estiver decidido até o dia 19 de outubro – dia seguinte à cúpula europeia que discutirá a questão.
A suspensão do parlamento por Johnson pretendia mantê-lo fechado e sem como decidir nada de 9 de setembro a 14 de outubro, e ocupado até o dia 20 em debater o discurso da rainha de abertura de legislatura.
Nesta quinta-feira, caberá à Câmara dos Lordes votar a legislação que, se confirmada, irá a sanção da rainha Elizabeth, virando lei. Caso os lordes alterem o projeto, ele teria de voltar à Câmara dos Comuns para nova votação.
Tudo isso precisa acontecer até terça-feira, a menos que alguma corte derrube o decreto de fechamento do parlamento por cinco semanas. Ações com essa meta foram apresentadas a três tribunais, uma delas com apoio do ex-primeiro-ministro conservador John Major.
BUFÃO BORIS
Boris Johnson, que aprecia muito ser tido como “o Trump inglês”, é notório por seus arroubos, escândalos e falta de noção – e de escrúpulos. Sua investida atual, do golpe com a suspensão do parlamento ao expurgo em massa no próprio partido, tem como pressuposto que, para ganhar uma eleição, tem que ser antes do desastre anunciado do Brexit sem acordo que está propondo. E uma eleição sob seu controle e de seu marqueteiro, Dominic Cummings, o “Lorde das Trevas: “o povo contra o parlamento”…
Para isso, o jeito é se fantasiar de ‘campeão’ do Brexit e do ‘referendo’; afinal, Trump não encenou ser o ‘campeão dos trabalhadores brancos pobres’ ?
Farsa eleitoral que foi recusada por Corbyn, que a comparou à “maçã envenenada da Branca de Neve” ofertada pela Bruxa Malvada, que “esconde o veneno de um Brexit sem acordo”.
O líder oposicionista reiterou que “respaldaremos eleições quando a lei para frear um Brexit sem acordo houver cumprido todos os trâmites e for referendada pela rainha”.
No afã de insuflar seus seguidores, Johnson não poupou achincalhes. Chamou Corbyn de “frango clorado” – tentando fazer uma paródia das críticas às normas sanitárias dos EUA feitas pelos opositores a um acordo comercial com os EUA – e até usou uma gíria que equivale a afeminado.
Também classificou Corbyn de “amigo de Caracas” e considerou a política econômica do oposicionista – acabar com a austeridade, garantir a saúde pública (NHS), reindustrializar e renacionalizar setores estratégicos – de “bosta” e “fracasso”.
TERAPIA DE CHOQUE
Quanta à eleição em “15 de outubro”, o líder trabalhista assinalou que o objetivo dos parlamentares foi impedir que Johnson mude a data ou a saída da UE “no meio de uma campanha eleitoral que deixará o veredicto da cidadania vazio de conteúdo”.
Como o objetivo é o Brexit pró-Trump, a ação de Johnson e seus sequazes é tentar emplacar uma “terapia de choque”, atropelando qualquer questionamento. Como alertou o dirigente trabalhista, Richard Burgon, o que o louro Boris quer é impor um modelo econômico “ainda mais neoliberal nas costas da maioria”.
O que não impede a encenação feita por seu ministro das Finanças, Sajid Savid, que pomposamente anunciou que “vai virar a página” da austeridade desencadeada desde o crash de 2008 e ainda acenou com o aumento mais rápido dos gastos sociais “em 15 anos”.
O que não coaduna com o Brexit anárquico em que estão empenhados e com a piora na economia já em curso. Sobre isso, o diretor do Instituto de Estudos Fiscais (IFS), Paul Johnson, disse que o plano de Javid sinalizou uma “verdadeira mudança de direção nos gastos sociais, mas na maioria das áreas dos serviços públicos os gastos ainda estavam muito abaixo dos níveis de 2010”. Conforme o IFS, os gastos ainda estariam “3% abaixo do nível de uma década atrás” e “mais de 9% menor em termos per capita”.
Fora do setor da saúde, os gastos reais “ainda serão 16% mais baixos (21% mais baixos em termos per capita) no próximo ano do que em 2010-11”. As promessas não impressionaram o número dois de Corbyn, John McDonnell: “não insultem a inteligência do povo britânico”.
EXPURGO
Entre os conservadores, vai levar tempo para cicatrizar o estrago feito pela política de terra arrasada de Boris Johnson. Talvez a expulsão mais reveladora do alcance da sangria cometida por Johnson seja a do neto de Winston Churchill, Nicolas Soames, deputado há mais de três décadas.
Boris já anunciou que todos os deputados conservadores que votaram contra seu governo estão expulsos. Inclusive os ex-ministros das Finanças, Kenneth Clarke – este, decano da Casa -, e Philip Hammond.
Em sua despedida, Soames disse que “sempre defendeu” que o resultado do referendo de 2016 “deveria ser respeitado” e que votou por três vezes a favor do acordo de May. “Mais do que meu honorável amigo, o primeiro-ministro, e outros membros de seu governo, cuja deslealdade em série tem sido uma inspiração para todos nós”, ironizou.
Ele anunciou, com certo tremor na voz, conforme a BBC, que não estaria na próxima eleição. “Estou chegando aos 37 anos de serviço a esta Câmara, dos quais tenho orgulho e honra”, assinalou. “Estou realmente triste por terminar assim.”
O deputado Alistair Burt apontou: “eu digo aos meus colegas, se estamos sendo expurgados agora, quem é o próximo?”. “Vou sair daqui olhando para o céu, não para os meus sapatos”.
BACKSTOP
A questão pendente de maior tensão é o chamado ‘backstop’, sistema que visa evitar uma fronteira dura inter-irlandesa e que é considerado por muitos defensores do Brexit como uma questão que violaria a soberania britânica e dificultaria ou impediria que a Grã Bretanha venha a completar acordos bilaterais com outros países.
A imposição de uma fronteira alfandegária acarretaria também a violação dos acordos de Sexta Feira Santa, que pacificaram a Irlanda e mantiveram os vínculos da Irlanda do Norte com Londres.
O jornal progressista inglês, The Morning Star, salientou que a recente proposta de “dupla autonomia” merece consideração. Ela prevê que, ao invés de controles alfandegários fronteiriços, a Grã Bretanha e a Irlanda “assumam a responsabilidade de fiscalizar seus próprios exportadores, com o conhecimento de exportação de mercadorias não conformes com as regulamentações no território do outro sendo considerado crime”.
A União Europeia afirmou que, até agora, o governo Johnson não apresentou qualquer alternativa para a questão irlandesa.
A outra grande questão, como reiterou Corbyn, é garantir que se evite “um Brexit selvagem em 31 de outubro”. Ou seja, impedir um desacoplamento anárquico depois de uma integração de quatro décadas da economia britânica com o continente – que é o que o Brexit sem acordo significa.
Como registrou The Morning Star, “metade dos alimentos da Grã-Bretanha é importada, e 30% disso vem da UE, além de outros 11% de países não pertencentes à UE como parte dos acordos comerciais da UE. Se não houver acordo, resultarão tarifas e atrasos”.
Estudos do próprio governo conservador mantidos em sigilo advertiram sobre problemas com o fornecimento, também, de remédios e insumos.
Um Brexit sem acordo também teria um forte impacto negativo no PIB. Segundo o presidente do Banco da Inglaterra, Mark Carney, devido às medidas já tomadas, a queda no PIB seria de 5,5% e não de 8%, como avaliado anteriormente.
Há também muita ansiedade, tanto de parte dos migrantes do continente radicados na Grã Bretanha, quanto dos britânicos que vivem no continente, sobre como vão ficar seus direitos. Um Brexit mal resolvido também representa ameaça à própria continuidade da Grã-Bretanha. Além do problema irlandês, há a Escócia, em que 62% votaram pela permanência na UE, e a discussão sobre a independência volta a ganhar fôlego.
ANTONIO PIMENTA