
Assim como o ministro Bayrou, líderes franceses e europeus denunciam “capitulação” na submissão a tarifas de exportação e do compromisso de compra de US$ 600 bilhões em armamentos aos Estados Unidos
Praticamente todos os setores políticos franceses se manifestaram contra o recém anunciado acordo Trump-Von der Leyen, pelo qual o tarifaço fica definido em 15%, mais extorsões como US$ 600 bilhões em “investimentos” – leia-se compra de armas dos EUA – e ainda US$ 750 bilhões basicamente em GNL ao longo de três anos, enquanto produtos americanos passam a entrar na Europa a zero de tarifa. As exportações de aço e alumínio europeias seguem sobretaxadas em 25%.
“É um dia sombrio em que uma aliança de povos livres, reunidos para afirmar seus valores comuns e defender seus interesses comuns, se resigna à submissão”, disse o primeiro-ministro francês, François Bayrou. “Capitulação”, clamaram personagens tão distantes quanto o líder da França Insubmissa, Jean-Luc Mélenchon, e a da Reunião Nacional, Marine Le Pen.
Esta chamou o acordo, ainda, de “fiasco político, econômico e moral”, acrescentando que foi pior do que o obtido pelo Reino Unido. Mélenchon assinalou que o tarifaço se soma ao “imposto equivalente a 5% do PIB europeu” (aprovado na cúpula da Otan de junho) e chamou à “insubordinação ao Império” e ao não alinhamento como a “única alternativa viável”.
Segundo o ministro francês para a Europa, Benjamin Haddad, o acordo traz “estabilidade temporária”, mas, em geral, é “desequilibrado” e toda situação ficou “insatisfatória e insustentável”.
O ex-ministro da Economia francês e comissário europeu para o Mercado Interno, Thierry Breton, por sua vez, disse duvidar que o resultado das negociações entre Trump e Von der Leyen “possa ser chamado de acordo”, já que a situação das empresas piorou significativamente em comparação a antes do retorno de Trump à Casa Branca.
“As empresas europeias pagavam em média 1,7% em tarifas para acessar o mercado americano”, e o dólar estava “bastante próximo do euro”, lembrou. Mas, com o novo acordo, as empresas não só teriam que considerar o chamado “efeito dólar”, gerado pela desvalorização de 12,7% da moeda americana, como também teriam que adicionar esses 15% em sobretaxas tarifárias. “Isso significa que, no total, temos 25%”, alertou.
Na Alemanha, o primeiro-ministro Friedrich Merz disse que o acordo “conseguiu evitar um conflito comercial que teria atingido duramente a economia alemã voltada para a exportação”, em particular “a indústria automotiva, onde as tarifas atuais de 27,5% serão reduzidas quase pela metade, para 15%.”
O primeiro-ministro espanhol, Pedro Sánchez, disse apoiar o acordo “sem nenhum entusiasmo”. O ministro do Comércio sueco, Benjamin Dousa, que considerou o acordo a “alternativa menos ruim” ao criar “alguma previsibilidade”.
Para a Reuters, a Europa está se perguntando se será capaz de absorver o impacto do acordo comercial fechado neste domingo com os EUA. Acordo que classificou como “banho frio” ainda “mais chocante” já que a UE historicamente se apresentou como “uma superpotência exportadora e defensora do comércio baseado em regras”.
A agência de notícias observou que, embora a Europa evite a recessão, sua economia está “estagnada” : o Banco Central Europeu previu no mês passado um crescimento de apenas 0,5% a 0,9% neste ano.
Os questionamentos também vem da Alemanha, cuja sobrevivência de sua indústria automobilística ameaçada seria, supostamente, a razão para tal submissão. A poderosa federação de grupos industriais BDI afirmou que o acordo teria “repercussões negativas consideráveis”, enquanto a associação comercial química VCI do país afirmou que o acordo deixava as tarifas “muito altas”. A presidente da federação da indústria automobilística VDA, Hildegard Müller, alertou para “enormes custos” que virão pela frente.
A Associação Alemã de Comércio Exterior também descreveu o acordo como um “compromisso doloroso” e uma “ameaça existencial” para muitos de seus membros, instando a Europa a reduzir sua dependência de seu maior parceiro comercial.
“Vamos olhar para os últimos meses como um alerta”, disse o presidente da BGA, Dirk Jandura. Ele pediu que a Europa agora se prepare estrategicamente para o futuro, “precisamos de novos acordos comerciais com as maiores potências industriais do mundo”.
De acordo com estimativas do Instituto Kiel para a Economia Mundial, uma tarifa geral de 15 por cento – juntamente com tarifas mais altas sobre aço e alumínio – reduziria o PIB da Alemanha em 0,15 por cento em um ano, o equivalente a uma perda de 6,5 bilhões de euros (US $ 7,1 bilhões). O PIB geral da UE diminuiria 0,1%.
Julian Hinz, chefe do Centro de Pesquisa de Política Comercial do Instituto Kiel, criticou fortemente o acordo para reduzir as tarifas para 15%, descrevendo-o como “um mau negócio, escassamente melhor do que a ameaça tarifária de 30% do governo Trump”. Ele enfatizou que isso minou o sistema de comércio global baseado em regras e o classificou como um grave erro estratégico.
Robert Basedow, professor de economia política internacional da London School of Economics, disse à revista norte-americana Newsweek que “esses acordos de Trump não são acordos comerciais clássicos que passam pelo parlamento e são de natureza de lei rígida”, acrescentou. “Eles são mais parecidos com acordos políticos, com detalhes técnicos muitas vezes limitados e, portanto, espaço para interpretações divergentes.”
Ele acrescentou não esperar que o acordo “acordo acabe com as diferenças transatlânticas sobre o comércio. Vimos no passado que Trump renega acordos comerciais e procura renegociá-los … Portanto, espero que o governo Trump volte com novas demandas ou reclamações oportunas para ele (normalmente por razões de política interna).
A propósito, Von der Leyen descreveu o acordo como “uma estrutura”. Ela acrescentou que havia certos detalhes ainda a serem resolvidos, informou a France 24, e que isso aconteceria “nas próximas semanas”. O acordo continua sujeito à aprovação dos Estados-membros da UE.
O especialista em direito comercial Anu H. Bradford disse à Newsweek que a UE “poderia ter sido mais assertiva desde o início, pois continua sendo uma potência comercial significativa e tem influência sobre os EUA, inclusive no comércio de serviços, onde os EUA são um grande exportador para a UE.”
“Poderia ter sido utilizada uma retaliação, incluindo a utilização de instrumentos anti-coerção. Nesse sentido, o acordo reflete a aversão ao risco por parte da UE. Agora, a UE envia um sinal de que está preparada para se comprometer e aceitar tarifas ainda dolorosamente altas, o que a deixa vulnerável a futuras extorsões”, acrescentou, chamando a questão sobre um aspecto chave, que vem sendo abafado no noticiário.
Trata-se de que o desequilíbrio no comércio bilateral não é de US$ 235 bilhões, como diz Washington, mas 1/5 disso, quando se inclui na conta os serviços, em que os EUA são amplamente superavitários. Segundo o Eurostat, o órgão de estatística da UE, em 2024, o intercâmbio de bens alcançou € 867,1 bilhões e o de serviços (extremamente favorável aos EUA) em € 816,9 bilhões, com um déficit líquido dos EUA de € 50,2 bilhões.
O analista também apontou a fragilidade de Trump, ao longo desse processo: ele “precisava muito de uma vitória política, já que sua promessa de garantir 90 acordos comerciais em 90 dias começou a soar vazia, questionando suas credenciais como negociador. Era importante para ele mostrar que pode fechar um grande negócio.” Além de que, chamuscado pelo escândalo do pedófilo Epstein, Trump vem tentando desviar do assunto diariamente, até divulgando os arquivos do FBI de Martin Luther King.
Para Bradford, “foi, na melhor das hipóteses, uma vitória defensiva para a UE, garantindo que o pior resultado fosse evitado.”
A cena de Von der Leyen, de cara desamparada e mãos cruzadas sobre os joelhos, ao lado de Trump, em seu clube de golfe privé na Escócia, na cidade em que a mãe dele nasceu, parecia tudo, menos uma “vitória defensiva”. Ainda mais ao reiterar que Trump era um “negociador duro”, até ser interrompida pelo chefe da Casa Branca com um “porém justo” e logo em seguida, o deboche, “mas isso é o que menos importa”.
Para o chanceler russo Sergey Lavrov, o novo acordo comercial EUA-UE ameaça acelerar a “desindustrialização” na Europa, redirecionando investimentos para os EUA e aumentando a dependência do bloco das exportações de energia americanas.
Segundo o primeiro-ministro húngaro Viktor Orban, “Trump devorou Ursula no café da manhã”. Ele acrescentou que “o presidente dos EUA é um negociador de peso, enquanto a presidente da Comissão Europeia é um peso leve.”
“O Reino Unido conseguiu recentemente chegar a um acordo melhor com os americanos”, observou Orban.
Ele também expressou surpresa com relatos de que von der Leyen havia prometido a Trump investimentos europeus no valor de centenas de bilhões de euros. “Quem fará esses investimentos? Em nome de quem é dado este consentimento? Quem dará o dinheiro e canalizará o capital para isso: o chanceler alemão, o presidente francês, o primeiro-ministro húngaro?”, Orban perguntou.
Ele também chamou a atenção para relatos de um acordo sobre a compra de armas americanas pelos europeus. “Mas quem vai fazer isso? A Comissão Europeia não tem um exército”, disse Orban.