
“Nenhum jogador consagrado tinha denunciado sem papas na língua os amos do negócio do futebol. Foi o esportista mais famoso e mais popular de todos os tempos quem rompeu lanças na defesa dos jogadores que não eram famosos nem populares” escreveu Eduardo Galeano, em sua crônica sobre Diego Maradona, originalmente intitulada “Uma paixão”, que agora publicamos.
“Esse ídolo generoso e solidário tinha sido capaz de cometer, em apenas cinco minutos, os dois gols mais contraditórios de toda a história do futebol. Seus devotos o veneravam pelos dois: não apenas era digno de admiração o gol do artista, bordado pelas diabruras de suas pernas, como também, e talvez mais, o gol do ladrão, que sua mão roubou”, acrescenta o escritor uruguaio.
Entusiasta do futebol, Galeano registrou em vários momentos sua admiração pelo jogador argentino. E foi retribuído. Após a morte de Galeano, em 2015, Diego lhe faria uma homenagem pública: “Obrigado por me ensinar a ler futebol. Obrigado por lutar como um 5 na metade do campo e por marcar gols aos poderosos como um 10. Obrigado por me compreender, também. Obrigado, Eduardo Galeano: a equipe precisa de muitos como você. Vou sentir saudades”.
A crônica compõe seu livro póstumo “Fechado por motivo de futebol”, que reúne textos do uruguaio sobre o esporte.
Segue o artigo:
EDUARDO GALEANO*
Para começar, uma confissão: desde que era bebê quis ser jogador de futebol. E fui o melhor dos melhores, o número um, mas só em sonhos, enquanto dormia.
Ao despertar, nem bem caminhava um par de passos e chutava alguma pedrinha na calçada, já confirmava que o futebol não era meu negócio. Estava na cara; eu não tinha outro remédio a não ser experimentar algum outro ofício. Tentei vários, sem sorte, até que finalmente comecei a escrever, para ver se saía alguma coisa. Tentei, e continuo tentando aprender a voar na escuridão, como os morcegos, nestes tempos sombrios.
Tentei e continuo tentando assumir minha incapacidade de ser neutro e minha incapacidade de ser objetivo, talvez porque me nego a me transformar em objeto, indiferente às paixões humanas.
Tentei e continuo tentando descobrir as mulheres e os homens animados pela vontade de justiça e pela vontade de beleza, além das fronteiras dos tempos e dos mapas, porque eles são meus compatriotas e meus contemporâneos, tenham nascido onde tenham nascido e tenham vivido quando tenham vivido.
Tentei e continuo tentando ser tão teimoso como para continuar acreditando, apesar de todos os pesares, que nós, os humaninhos, estamos bastante malfeitos, mas não estamos terminados. E continuo acreditando, também, que o arco-íris humano tem mais cores e mais fulgores que o arco-íris celeste, mas estamos cegos, ou melhor, enceguecidos, por uma longa tradição mutiladora.
E em definitivo, resumindo, diria que escrevo tentando que sejamos mais fortes que o medo ao erro ou ao castigo, na hora de escolher no eterno combate entre os indignos e os indignados.
Aqui a história: ao amanhecer, dona Tota chegou a um hospital no bairro de Lanús. Ela trazia um menino na barriga. No umbral, encontrou uma estrela, na forma de prendedor, jogada no chão.
A estrela brilhava de um lado, e do outro não. Isso acontece com as estrelas, toda vez que caem na terra, e na terra se reviram: de um lado são de prata, e fulguram conjurando as noites do mundo; e do outro lado são só de lata.
Essa estrela de prata e de lata, apertada em um punho, acompanhou dona Tota no parto.
O recém-nascido foi chamado de Diego Armando Maradona.
Nenhum jogador consagrado tinha denunciado sem papas na língua os amos do negócio do futebol. Foi o esportista mais famoso e mais popular de todos os tempos quem rompeu lanças na defesa dos jogadores que não eram famosos nem populares.
Esse ídolo generoso e solidário tinha sido capaz de cometer, em apenas cinco minutos, os dois gols mais contraditórios de toda a história do futebol. Seus devotos o veneravam pelos dois: não apenas era digno de admiração o gol do artista, bordado pelas diabruras de suas pernas, como também, e talvez mais, o gol do ladrão, que sua mão roubou. Diego Armando Maradona foi adorado não apenas por causa de seus prodigiosos malabarismos, mas também porque era um deus sujo, pecador, o mais humano dos deuses. Qualquer um podia reconhecer nele uma síntese ambulante das fraquezas humanas, ou ao menos masculinas: mulherengo, comilão, beberrão, malandro, mentiroso, fanfarrão, irresponsável.
Mas os deuses não se aposentam, por mais humanos que sejam.
Ele jamais conseguiu voltar para a anônima multidão de onde vinha.
A fama, que o havia salvado da miséria, tornou-o prisioneiro.
Em 13 de julho de 2002, o órgão supremo do futebol divulgou o resultado de uma pesquisa universal. Escolha: o gol do século XX. Ganhou, por esmagadora maioria, o de Diego Maradona no Mundial de 1986, quando dançando com a bola grudada no pé, deixou seis ingleses perdidos pelo caminho.
Essa foi a última imagem do mundo que foi vista por Manuel Alba Olivares.
Ele tinha 11 anos, e naquele mágico momento seus olhos se apagaram para sempre. Mas ele guardou o gol intacto na memória, e é capaz de relatar esse gol muito melhor que os melhores locutores. A partir daquele momento, para ver futebol e outras coisas não tão importantes, Manuel pede emprestados os olhos de seus amigos.
Graças a eles, esse colombiano cego fundou e preside um clube de futebol, foi e continua sendo o diretor técnico do time, comenta os jogos em seu programa de rádio, canta para divertir a audiência e nas horas vagas trabalha como advogado.
Maradona foi condenado a se achar Maradona e obrigado a ser a estrela de cada festa, o bebê de cada batismo, o morto de cada velório. Mais devastadora que a cocaína foi a sucessoína. As análises de urina ou de sangue, não detectam essa droga.
*Eduardo Galeano, jornalista e escritor uruguaio, autor de mais de 40 livros traduzidos em vários idiomas.
No início dos anos 60, inicia sua carreira jornalística como editor do jornal Marcha. O semanário contava com a colaboração do destacado escritor Mário Benedetti.
Nos anos 70, com o regime ditatorial no Uruguai, foi perseguido pela publicação de seu livro “As Veias Abertas da América Latina” (1971), sua obra mais conhecida, na qual o autor analisa a história da América Latina da colonização ao século 20. Em 1973, foi preso e depois exilou-se na Argentina, onde lançou a revista cultural “Crisis”.
Em 1976, Eduardo Galeano mudou-se para a Espanha, por causa da crescente violência da ditadura argentina. Em 1985, lançou na Espanha o livro “Memórias do Fogo”. Nesse mesmo ano voltou ao Uruguai, onde viveu até sua morte. Faleceu em Montevidéu, no Uruguai, no dia 13 de abril de 2015.