Atendendo como administrador e dono, Álvaro Cabrera Durán denunciou o fato de ver tombarem pessoas pelo único fato de lutar por direitos coletivos, contou ter sofrido inomináveis torturas e deu o seu testemunho sobre a importância da vitória de Petro e Francia Márquez à presidência
LEONARDO WEXELL SEVERO
Era para ser mais um dia normal como o de qualquer desses que antecede a uma disputa eleitoral em tom maior… Sempre tão cordial e educado, Álvaro Cabrera Durán, o proprietário do hotel que nos acolheu em Bogotá no primeiro e no segundo turnos das eleições presidenciais colombianas demonstrava que havia razões para sonhar. E eram fartas. A proximidade da vitória oposicionista, estampada no otimismo reluzente, demonstrava que a perseverança contra o terrorismo de Estado tinha valido a pena.
As duas filhas e a esposa também se encontravam sintonizadas com o clamor mudancista de Gustavo Petro com a “Mudança pela vida” e de Francia Márquez para “viver saboroso”. E elas foram testemunhas de que foi o dia de Dom Álvaro se soltar e de me tornar cúmplice da bela confissão. Como trabalhadoras do local, puderam presenciar a conversa fluir, e o depoimento do pai e companheiro calar como referência explicando o otimismo quanto à projeção das ruas para as urnas.
Ao contrário, o clima artificial em prol dos inimigos do Pacto Histórico foi visto nas letras garrafais das manchetes que antecederam o confronto, nas palavras ocas e altissonantes dos apresentadores da mídia venal, no cenário e no figurino espalhado com afinco ao longo de dias, meses e anos.
Se evidenciava nos livros espalhados em bancas, feito estandartes, como “E se ganha Petro? Guia para sobreviver à extrema esquerda”, em bancas de comércio pintadas com as cores e nas listas ianques.
Mas era evidente a desconfiança da capacidade da ultradireita, fascista e neoliberal, de dobrar o clamor coletivo que irrompia. A automutilação cobrava seu preço e havia reduzido o bando inimigo a ser o que eram em forma e conteúdo: intrusos na festa com o uniforme bastante manchado de sangue e merda.
Naquelas águas sombrias, até mesmo um porta-aviões de montar trazia a bandeira estadunidense tremulando com a tripulação de marinheiros colombianos de brinquedo. Pequenos marionetes que abdicavam diariamente da soberania em troca de alguma medalha made in United States. Vencia no joguinho de faz-de-conta quem gritasse mais alto e desse o “sim, meu comandante” como resposta, pronto para invadir vizinhos irmãos como a Venezuela ou o Equador. O capachismo insistindo em se manter à espreita, seja na figura do atual presidente Iván Duque (2018-2022) ou do mais do que passado Álvaro Uribe (2002-2010).
HERNÁN GIRALDO, ASSASSINO E ESTUPRADOR
“Sou um cidadão colombiano a quem os grupos paramilitares à margem da lei, em 1991, assassinaram o pai por ser líder da região da Serra Nevada de Santa Marta, departamento de Magdalena, por ordem de Hernán Giraldo, um dos paramilitares mais poderosos que pode ter havido neste país, o qual estuprou cerca de 186 meninas”, contou Dom Álvaro.
Após ter sido extraditado por uns tempos para os Estados Unidos, “Hernán Giraldo já regressou à Colômbia e até hoje ainda não foi julgado, apesar de ter cometido um sem-número de assassinatos”. Entre outras práticas, “o senhor da Serra”, comandante da Frente de Resistência Tayrona da Autodefesa Unidas da Colômbia (AUC) – paramilitares de extrema-direita – são acusados de assassinato, estupro, tráfico de drogas, deslocamento e desaparecimento forçado.
“Já para alguém ser executado de forma vil pelo governo basta ser líder social. Assim, o fato é que a perda fez com que nossa família tivesse de se deslocar do campo para a cidade, que fica distante. Então vim para Bogotá”, explicou Dom Álvaro, lembrando que está há 40 anos. “Trabalhei em vários estabelecimentos hoteleiros da capital e hoje sou proprietário de um pequeno hotel. Atendendo como administrador e dono, passaram mais de 300 pessoas que foram mortas pelas mãos assassinas do governo. Trabalhadores da Empresa Colombiana de Petróleo, da Central Unitária de Trabalhadores (CUT), da Federação Colombiana de Educadores (Fecode), de diversos territórios, representantes da negritude e indígenas, pessoas que tiveram de vir para reclamar seus direitos e que por isso foram executadas. Imaginem, só eu conheci mais de 300 clientes que foram assassinados de uma ou outra forma em crimes em que o Estado sempre está envolvido”, informou.
TORTURA, BARBÁRIE E IMPUNIDADE
“Eu, casualmente trabalhava em um hotel, quando foi feito um roubo pela janela. Fui torturado quatro dias pela Polícia no edifício que ficava em frente ao Cárcere de Menores de Bogotá. Fui barbaramente torturado. Eu era um menino jovem de 22 anos, em 1986, castigado pela Polícia por algo que não cometi. Assim como eu, torturaram meu companheiro de quarto, nos tratando como se fôssemos cúmplices”, condenou Álvaro, extremamente emocionado. Logo depois foi descoberto que os dois eram inocentes, mas o estrago já estava feito, absurdos indescritíveis e inomináveis.
Diante do olhar solidário dos familiares, ele relatou que aqueles dias lhe deixaram em um “estado terrível”, com marcas para as quais precisou de “mais de 15 anos de tratamento”. “Foi somente graças a profundos estudos de neurolinguística e a Deus que sobrevivi”, revelou.
Acreditando em um novo tempo, deseja que tudo isso passe a ser página virada. “Vivi 58 anos em um país totalmente maravilhoso, porém espero não ir à tumba sem ver uma mudança em nossa história como agora, através de uma pessoa como Petro, em quem nutrimos fé e esperança de transformação. Porque hoje aquele que luta por seus direitos é morto, vivemos no país considerado o mais corrupto do mundo”, condenou.
O hoteleiro explicou que a história colombiana é rica em exemplos de levar embora quem diverge e isso tem se repetido tragicamente, o que fez a preocupação estar presente nos discursos ao enxergar Petro com escudos à prova de balas e Francia com lasers fazendo mira.
“O governo assassinou líderes, presidentes, candidatos à presidência como Jaime Pardo Leal (executado em outubro de 1987), Luis Carlos Galán (agosto de 1989), Bernardo Jaramillo (março de 1990), Carlos Pizarro Leongomes (abril de 1990) e Álvaro Gomes Hurtado (novembro de 1995). Cinco candidatos à Presidência da República. Nomes que se foram porque os governos mandaram eliminar. Por isso chamam o Departamento de Administração (DAS) de Desaparecimento de Administração, pois é onde se escondem todas as mentiras”, lembrou.
De acordo com Dom Álvaro, “há uma esperança que o país mude totalmente, pois também contamos com um Congresso renovado. Com a renovação de um alto percentual do legislativo e o executivo chegando com propostas progressistas, muita juventude e gente experiente, há um novo alento”.
Infelizmente, aponta o hoteleiro, “temos entre 12 e 15 milhões de colombianos que tiveram que migrar ao longo destes 50 anos de história. E precisamos sair rumo à Venezuela, Espanha, Equador, Argentina e Estados Unidos. Em função da incerteza, fomos em direção a uma vida melhor, à tranquilidade, porque o Estado colombiano hoje não nos oferece garantias mínimas”. “Dos 51 milhões de colombianos, temos 22 milhões de pobres, pessoas que tiveram de deixar o seu lar, se deslocar, enquanto somente 58 famílias são donas da terra. Temos um Estado que retrocede mais e mais a cada dia, um país onde teus filhos não podiam estudar, porque não havia maneira, sem perspectiva de futuro. Daí a importância desta vitória: confiança”, enfatizou.