80% são menores de idade. Dos detentos agora livres dois terços estavam na chamada “detenção administrativa” de Israel, onde palestino preso não tem direito a advogado nem a saber de que é acusado, e o regime não acha que precisa de provas para decretar a prisão por até 10 anos
A libertação de 150 palestinos, grande parte deles, crianças, sob o acordo de troca com Israel durante a trégua humanitária, expôs uma questão que vinha sendo varrida para debaixo do tapete sob a rotineira desumanização perpetrada pela ocupação colonial israelense na Palestina: 80% eram menores e dois terços estavam encarcerados sem sequer acusação formal.
Em suma, sob a “democracia” do apartheid, dois terços dos seus reféns palestinos agora libertados dos cárceres israelenses não tinham direito a advogado ou sequer a saber do que eram acusados, e podendo ser presos sem provas.
Para criar esse status oficial de refém da ocupação, Israel usa um mecanismo do tempo da ocupação colonial britânica na Palestina, a “detenção administrativa”, que autoriza a prisão de qualquer pessoa “suspeita de ter cometido” ou “planejar cometer” um crime no futuro.
INSTRUMENTO COLONIAL HERDADO DOS BRITÂNICOS
O instrumento colonial, mantido pelo regime israelense, permite que a prisão possa ser estendida por um período de até 10 anos com base em “evidências secretas”, e serve para fazer palestinos serem encarcerados, sem acusação formal, por meses e até anos.
Quando as acusações são formalizadas, vão desde “atirar pedras” até “tentativa de homicídio”, incluindo ainda “apoio ao terrorismo”, “dano à segurança da área” ou “pertencimento a uma organização desconhecida”. Agora uma simplesmente mensagem pela internet denunciando a ocupação ou o bombardeio de Gaza pode ser razão suficiente para o sequestro e decretação de prisões em massa.
Assim, além de prisões sem provas, o depravado sistema prisional do apartheid israelense também permite julgamentos de menores por tribunais militares e, em muitos casos, o réu é condenado com base não na idade que tinha quando havia supostamente cometido o crime, mas pela idade que tinha no julgamento.
Quando presos, grande parte dos interrogatórios acontece sem a presença dos responsáveis ou de advogados e, se a detenção ocorrer por motivos de segurança — como em muitos casos envolvendo crianças palestinas —, as sessões não precisam ser no idioma que as crianças e adolescentes compreendem.
A partir dos 16 anos, adolescentes palestinos já podem ser julgados e condenados como adultos, pela lei do apartheid. Lei iníqua, que foi alterada em 2016 para que crianças menores de 14 anos pudessem ser acusadas criminalmente, e assim resolver um atropelo flagrante ao direito.
No caso, a condenação de Ahmed Manasra, preso com 13 anos, a 12 anos de cárcere, cuja acusação de “tentativa de homicídio” só foi oficializada quando ele já havia completado 14 anos e poderia responder pelo crime. Mais tarde, a pena foi reduzida para nove anos.
No final de setembro, o serviço penitenciário israelense declarou que tinha 146 crianças e adolescentes palestinos sob sua custódia em centros de detenção, prisões ou o que chamou de “zonas de segurança”, de acordo com um comunicado da ONG B’Tselem.
Desde então, esse número se multiplicou por mais de três, com a adição dos 350 menores de 18 anos detidos em Jerusalém Oriental e na Cisjordânia desde o ataque do Hamas, disse, em entrevista por telefone desde Belém, na Cisjordânia, Abdallah Zgari, presidente do Clube dos Prisioneiros Palestinos.
MARWAN TAMIMI ESTÁ DE VOLTA
Os emocionados vídeos da recepção das famílias às suas crianças e filhos que deixaram no cárcere de serem crianças são por si mesmos uma eloqüente denúncia dos desmandos da ocupação israelense.
Como a volta para casa de Wisam Marwan Tamimi, preso em 9 de junho na cidade de Nabi Saleh, na Cisjordânia, a 20 quilômetros de Ramallah, aos 16 anos, de onde foi levado para o Centro de interrogatório Al Masqubiyya em Jerusalém, notório pelas torturas.
Então estudante do último ano do ensino médio, ele passou 45 dias em total isolamento, sem advogado e sem que os pais tivessem notícias sobre ele. Dali foi transferido para a prisão israelense de segurança máxima de Ofer, no território palestino ocupado da Cisjordânia, até entrar na lista de troca.
Sua tia, Manal Tamini, disse à Al Jazeera que Marwan “nunca teve problemas com a lei”, acrescentando que a maioria dos jovens sendo libertados pelo acordo patrocinado pelo Qatar foi “detidos ao acaso”, com “acusações fabricadas”.
O SOBRENOME TAMIMI
Para ela, o único “crime” de Marwan é “ser palestino” e ter o sobrenome Tamimi, “o que é um crime em si para Israel”. Ahed Tamimi, a filha de um de seus primos, então com 16 anos, passou oito meses na prisão em 2017, por enfrentar dois soldados que eram o dobro dela e tentavam prender o irmão de 14 anos. Confronto que, mostrado em vídeo, viralizou. Aliás, ela voltou a ser presa em 6 de novembro.
Manal relatou que, oito dias antes da prisão de Marwan, soldados israelenses “fraturaram o crânio dele” com uma granada de gás lacrimogêneo que jogaram contra o telhado da casa de seus tios em Nabi Saleh. Naquele 1º de junho, ela disse, os militares israelenses “mataram um menino de dois anos da aldeia com um tiro no pescoço ao atirar contra o carro de sua família”.
“Quando ouvimos os tiros, subimos ao telhado para ver o que estava acontecendo e então os soldados começaram a jogar granadas de gás lacrimogêneo contra nós. Um deles feriu Marwan na cabeça”, diz a mulher, mostrando em seu celular um vídeo em que um profissional de saúde do Crescente Vermelho palestino é visto enxugando sangue de uma ferida profunda no crânio do adolescente, que passou cinco dias no hospital. Três dias depois de ter alta, “os soldados vieram e levaram-no sob custódia”, conta a tia. Sem explicações, sem acusações e sem mandado de prisão. Seu sobrinho, diz a mulher, só teve acesso a um advogado 45 dias depois, quando foi transferido de Al Masqubiyya para a prisão de Ofer.
Desde que Marwan Tamimi foi preso em junho, seus pais “só puderam visitá-lo uma ou duas vezes e vê-lo no tribunal por cinco minutos”. A família deu aos seus carcereiros os medicamentos de que precisava para tratar a fratura no crânio que sofreu, explica o seu familiar, apenas para descobrir “que não lhes tinham sido dados”.
APARTHEID
As detenções de adolescentes e jovens palestinos “não começaram a 7 de outubro”, sublinha Manal, que destacou o abismo que separa o tratamento dado aos palestinos e aos colonos judeus nos territórios ocupados por Israel.
“Os palestinos na Cisjordânia e em Gaza estão sujeitos à lei militar, enquanto os colonos que vivem ao lado são julgados ao abrigo da lei civil. Se duas crianças, uma palestina e outra um colono, atirarem pedras uma na outra, o judeu será mantido em boas condições até que seus pais venham levá-lo para casa. A criança palestina será levada para um centro de detenção”, denunciou Manal.
“Onde será interrogada por horas e privada de todos os seus direitos, como estar acompanhada de um dos pais, ser assistida por um advogado ou ter seu interrogatório gravado em vídeo”, enfatizou a ativista. Duplo padrão que – acrescentou – está entre as razões pelas quais a Anistia Internacional e a Human Rights Watch acusam Israel de impor “um regime de apartheid aos palestinos”.