Principal infectologista norte-americano reafirmou que “o mais provável” é que coronavírus tenha “saltado de animal hospedeiro para humano”
No início da semana, uma enxurrada de e-mails vazados do principal infectologista norte-americano, Anthony Fauci, tomou as manchetes dos maiores jornais e emissoras de tevê dos EUA, o que se somou ao alvoroço sobre o “vazamento no laboratório de Wuhan”, desencadeado pela matéria do Wall Street Journal sobre “três cientistas de Wuhan hospitalizados em novembro de 2019” e pelo anúncio do presidente Biden de que a CIA em “90 dias” iria dar seu ‘parecer’ sobre “a origem do vírus”.
Pesquisador e chefe do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas desde 1984 e o mais conhecido integrante da força-tarefa da Casa Branca sobre a Covid-19, Fauci se tornou símbolo do esforço dos cientistas nos EUA durante a pandemia para limitarem o desastre causado pelo negacionismo e incúria de Trump. A ponto de a recusa ao uso de máscara se tornar um símbolo trumpista por excelência.
NEGACIONISMO TRUMPISTA
Em entrevista à CNN na quinta-feira, o próprio Fauci contestou ilações apressadas e fora de contexto sobre esses e-mails, que visaram reabilitar teorias da conspiração tão do agrado dos negacionistas e racistas, bem como “envenenar com a politização” a busca pelas origens da pandemia que é responsabilidade da Organização Mundial da Saúde, conforme observou o diretor de emergências da OMS, Mike Ryan.
Duas questões desses “e-mails Fauci” mereceram os holofotes desses recém chegados adeptos do “vírus que escapou do laboratório”: um comentário sobre uso das máscaras, de fevereiro do ano passado, e um agradecimento, recebido por ele em abril, por ter se manifestado pela ‘origem natural’.
O motivo do agradecimento, feito por um executivo da EcoHealth Alliance, a organização sem fins lucrativos global que ajudou a financiar algumas pesquisas no Instituto de Virologia de Wuhan, era que Fauci declarou publicamente que as evidências científicas apoiam que o coronavírus tenha uma origem natural e não um vazamento de laboratório.
VAZAMENTO “EXTREMAMENTE IMPROVÁVEL”
Questão que, aliás, só foi reforçada pela investigação de campo da OMS na China realizada pela equipe de especialistas de dez países durante quatro semanas, que foi ao Wuhan Lab, e concluiu que a hipótese de “vazamento” era “extremamente improvável”.
O entrevistador, John Berman, disse a Fauci que “alguns de seus críticos dizem que isso mostra que você tem um relacionamento muito íntimo com as pessoas por trás da pesquisa do laboratório de Wuhan”. “O que você acha disso?”
“Isso é um absurdo”, respondeu Fauci. “Eu nem vejo como eles conseguiram isso com aquele e-mail”. Fauci então enfatizou que o e-mail foi enviado a ele, e que observou que as origens do coronavírus ainda são incertas.
“Eu sempre disse, e direi hoje a você, John, que ainda acredito que a origem mais provável é de uma espécie animal para um humano, mas mantenho a mente absolutamente aberta para outras origens possíveis, pode ser outro motivo, pode ter sido um vazamento de laboratório”, disse Fauci a Berman.
“Eu acredito que se você olhar historicamente, o que acontece na interface humano-animal, na verdade é mais provável que você esteja lidando com um ‘salto’ de uma espécie para outra. Mas eu mantenho a mente aberta o tempo todo. E é por isso que tenho tornado público que devemos continuar a procurar a origem”.
Em outro e-mail enviado a Fauci em 16 de abril, o diretor dos Institutos Nacionais da Saúde dos Estados Unidos (NIH, na sigla em inglês), Francis Collins, escreveu “a teoria da conspiração ganha impulso”, referindo-se à hipótese de vazamento em laboratório.
Mas grande parte do e-mail está editado [palavras cobertas com tarjas] e Fauci disse que não se lembrava do conteúdo dele, um entre 10 mil agora divulgados. “Claro que me lembro. Lembro-me de todos os 10 mil. Dá um tempo”, ironizou.
IDEIA TOSCA
“Não me lembro o que está escrito naquele texto, mas acho bastante rebuscada a ideia de que os chineses planejaram algo deliberadamente para que pudessem se matar assim como outras pessoas. Acho que isso é um pouco exagerado, John”, retrucou o cientista, se referindo às frequentes fake news de portais trumpistas sobre a “arma biológica” chinesa.
E-mail de 5 de fevereiro de 2020, que Fauci enviou a Sylvia Burwell, ex-secretária de Saúde norte-americana, em que ele não recomendou o uso da máscara por ela estar viajando para um local de baixo risco, veio à baila. O que se deu antes do coronavírus ser declarado uma pandemia e antes do Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) aconselhar o público a usar máscaras para proteção.
“Muita coisa aconteceu desde então. Se você tivesse que voltar e fazer tudo de novo, você diria a ela algo diferente? Você se arrepende disso?”, Berman perguntou a Fauci.
“Vamos cair na real – se você olhar para as informações científicas conforme elas se acumulam, o que está acontecendo em janeiro e fevereiro, o que você conhece como um fato, como dados, orienta o que você diz às pessoas e suas políticas. No caminhar de março, abril, maio, você acumula muito mais informações, modifica e ajusta sua opinião e sua recomendação com base na ciência atual e nos dados mais recentes”, disse Fauci ao entrevistador.
“Então, é claro, se soubéssemos naquela época que uma quantidade substancial de transmissão ocorreu a partir de pessoas assintomáticas. Se soubéssemos que os dados mostram que máscaras fora de um ambiente hospitalar realmente funcionam, quando não sabíamos então. Se percebermos todas essas coisas naquela época, é claro”, disse ele.
“Você está fazendo uma pergunta: ‘Você faria algo diferente se soubesse o que sabe agora?’ Claro que as pessoas fariam. Isso é tão óbvio”.
NEGACIONISMO ATACA DE NOVO
Outros cientistas norte-americanos, citados nos “e-mails de Fauci”, vieram a público contestar a caça às bruxas contra o Wuhan Lab e a ciência, que no essencial vem sendo usada para retomar o delirante – e racista – discurso das hordas trumpistas de “vírus chinês”.
Aliás, para dificultar a manipulação xenófoba, a OMS acaba de passar a identificar as variantes mais contagiosas que surgiram por letras gregas, e não mais associação com um determinado país.
Em resposta a esta campanha obscurantista, Kristian G. Andersen, que discutiu as origens da doença com Fauci em março, reiterou no Twitter sua oposição à teoria da conspiração “Wuhan lab”, explicando o fato de que a consideração – e possível rejeição – das teorias é fundamental para o funcionamento da ciência:
“Como já disse várias vezes, consideramos seriamente uma possibilidade de vazamento de laboratório. No entanto, novos dados significativos, análises extensas e muitas discussões levaram às conclusões em nosso artigo. O que o e-mail mostra é um exemplo claro do processo científico”.
Andersen citou seu artigo de 17 de março de 2020, revisado por pares na revista científica Nature, onde ele e seus colegas escreveram: “os dados genéticos mostram irrefutavelmente que o SARS-CoV-2 não é derivado de qualquer estrutura viral usada anteriormente … Em vez disso, propomos dois cenários que podem explicar de forma plausível a origem do SARS-CoV-2: (i) seleção natural em um animal hospedeiro antes transferência zoonótica; e (ii) seleção natural em humanos após transferência zoonótica”.
“Isso se chama ciência, pessoal”, postou no Twitter Peter Daszak, da EcoHealth, e um dos investigadores em campo da pandemia na China. “Você olha as evidências, gera hipóteses, discute com outras pessoas, vai mais fundo, refuta algumas hipóteses, encontra evidências para apoiar outras, então você chega a uma conclusão e torna isso público. A revisão por pares é crítica e foi feita inúmeras vezes”.
Daszak retuitou um editorial recente na Nature conclamando os cientistas a “proteger da geopolítica a preciosa colaboração científica”. “Pesquisadores, instituições e governos devem todos fazer sua parte para se proteger contra um resfriamento na colaboração científica.”
MÉTODO CIENTÍFICO
Recente artigo de Dan Samorodnitsky, bioquímico e editor sênior da Massive Science , apresentou uma crítica devastadora da teoria do “Laboratório de Wuhan” em termos leigos:
“Uma hipótese requer um encobrimento colossal e a obediência silenciosa, inabalável e à prova de vazamentos de uma vasta rede de cientistas, civis e funcionários do governo por mais de um ano”.
O outro – enfatizou o cientista – “requer apenas que a biologia se comporte como sempre se comportou, para que uma família de vírus que já fez isso o faça novamente. A hipótese de transbordamento zoonótico é simples e explica tudo”.
“É uma má prática científica fingir que uma ideia é tão meritória quanto a outra. A hipótese do vazamento de laboratório é um deus ex machina científico, um atalho narrativo que aponta o dedo para um conjunto específico de maus atores”.
AGENDA TRUMPISTA
Em paralelo, na Câmara dos deputados, 209 parlamentares republicanos, pediram em carta à presidente da casa, a democrata Nancy Pelosi, que “instrua os presidentes de comitês democratas apropriados a aderirem imediatamente aos apelos republicanos para responsabilizar o Partido Comunista Chinês (PCCh) por seu papel na causa da pandemia global de Covid-19”.
“Há evidências crescentes de que a pandemia começou em um laboratório chinês e o PCCh encobriu isso”, acrescenta a carta, que tenta culpabilizar o PCCh “pela morte de quase 600.000 americanos e milhões em todo o mundo”.
A carta reclama, ainda, da “recusa contínua dos democratas da Câmara em alocar recursos investigativos para obter essas respostas”.
Assim, a manipulação sobre a pandemia, além de estar sendo um elemento chave do esforço de Washington manter o mundo sob o tacão de sua ordem unilateral, é também um fator decisivo doméstico. No caso, as eleições intermediárias que irão definir o controle do Congresso dos EUA no meio do mandato e vistas como trampolim para a tentativa de volta de Trump.
Assim, os trumpistas acrescentaram à mentira de que a eleição “foi roubada” a campanha racista contra a China e a desmoralização da ciência – forma de fugirem da responsabilidade que eles têm nos quase 600 mil norte-americanos mortos pela Covid-19. Além de se vingarem contra cientistas que resistiram ao negacionismo e à cloroquina.
90 DIAS
Em cerca de 90 dias, o mundo vai saber se está diante de outro Colin Powell, com um vidrinho falso de antraz, encenando que ali está a prova das inexistentes “armas de destruição em massa de Sadam”.
Com a diferença que a China não é o Iraque sob bloqueio. É a fábrica do mundo, é o maior parceiro comercial de quase todos os países, está em ascensão na alta tecnologia, é uma voz respeitada no mundo e potência nuclear e demonstrou sua coesão ao conter a pandemia – além de ter uma sólida parceria estratégica com a Rússia por um futuro compartilhado, de soberania e paz, para a Humanidade.
A esse respeito, o Global Times – jornal chinês que funciona como um porta-voz oficioso de Pequim – assinalou que Washington “terá de tomar a decisão política de produzir um relatório calunioso que esteja de acordo com essa campanha anti-China, ou dar um passo para trás diante da oposição dominante de cientistas e fazer o melhor possível para salvar a reputação do encalacrado governo dos EUA”.
“O trabalho de rastrear as origens do coronavírus em si é difícil e complexo, e há muitas possibilidades”, acrescenta a publicação. “A presunção de culpa contra o Instituto de Virologia de Wuhan que os EUA tenta impingir entrou em choque com a cognição convencional e os métodos normais de rastreabilidade da comunidade científica”, sublinhou.