CARLOS LOPES
(HP 16, 18 e 23/01/2013)
A celeuma em torno da quinta edição do manual da Associação de Psiquiatria dos EUA (APA – American Psychiatric Association), uma revisão da classificação de doenças mentais usada naquele país, tem pouco a ver com ciência. Aliás, para ser mais exato, até que a polêmica tem a ver com esta. O que não tem a ver com ciência é o manual, o “Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders“, conhecido pelas iniciais DSM (no caso desta edição, DSM-5; como o conteúdo do manual é a classificação, no Brasil é comum usar a sigla no feminino: “a” DSM-5, por exemplo; as edições anteriores – DSM-I até DSM-IV – eram numeradas em algarismos romanos; na que está em preparo, DSM-5, os autores dispensaram os romanos).
Já faz mais de uma década – 12 anos – que abordamos “as” DSM, em trabalho publicado por uma revista médica. O que escrevemos então (e recordaremos, de forma condensada, no final deste artigo) permanece, em nossa opinião, inteiramente válido – e também vale para o projeto apresentado pela APA para a DSM-5. Este último, apenas, expõe abertamente, sob a forma de decomposição (o que jamais é bonito), a ideologia subjacente desde a DSM-III (1980). Portanto, tornou mais claros, mais nítidos – e mais agudos – os problemas que apontamos no trabalho de 2001.
Depois de algumas décadas exercendo a psiquiatria – e alguns anos afastado dela – realmente não esperávamos escrever mais algum artigo “psiquiátrico”, muito menos para o HP. No entanto, considerando que a polêmica, iniciada em 2007 (seu acirramento atual é porque a APA pretende publicar a versão definitiva da DSM-5 no próximo mês de maio), extrapolou para os jornais e a TV, é hora de acabar com nossas férias da psiquiatria.
Portanto, ao trabalho.
LAÇOS
Em artigo publicado pela “Psychiatric Times“, os psiquiatras Lisa Cosgrove, da Universidade de Massachusetts, e Harold J. Bursztajn, da Harvard Medical School, observam que 70% dos médicos encarregados pela American Psychiatric Association (APA) de confeccionar a DSM-5 têm “laços diretos com a indústria [farmacêutica]”, o que, apontam eles, é “um aumento de quase 14% sobre a percentagem de membros do grupo que elaborou a DSM-IV que tinham laços com a indústria” (cf., Cosgrove e Bursztajn, “Toward Credible Conflict of Interest Policies in Clinical Psychiatry“, Psychiatric Times, January 2009, pág. 40).
Estes laços com a indústria farmacêutica, que amarram 70% dos membros da “força-tarefa” da APA para a DSM-5, incluem apenas as “relações financeiras diretas”, sem menção a “apoios recebidos de alguma instituição na forma de fundos de reserva para departamentos acadêmicos, hospitais e escolas médicas” ou “subvenções irrestritas de pesquisa (p. ex., os laços de pesquisadores principais associados em pesquisas conjuntas ou membros da família que receberam apoio da indústria)” (cf. art. cit., nota 2).
Para nós, que conhecemos essas “forças-tarefas” da APA já de algum tempo, o que chamou mais atenção não foram os 70% com relações financeiras diretas com o cartel farmacêutico, mas a observação de que, no grupo da DSM-5, há “um aumento de quase 14% sobre a percentagem de membros do grupo que elaborou a DSM-IV que tinham laços com a indústria”.
A razão é que o grupo da DSM-IV já estava, sob esse aspecto, acima das expectativas. Outro estudo, do qual participou também a doutora Cosgrove, constatou que 56% do grupo que aprovou a DSM-IV, “tinha uma ou mais associações financeiras na indústria farmacêutica”. Nada menos que “100% dos membros do sub-grupo sobre ‘transtornos de humor’ [leia-se: depressão] e do sub-grupo sobre ‘esquizofrenia e outros transtornos psicóticos’ tinham laços financeiros com as companhias de medicamentos” (cf. Lisa Cosgrove, Sheldon Krimsky, Manisha Vijayaraghavan, Lisa Schneider, “Financial Ties between DSM-IV Panel Members and the Pharmaceutical Industry“, Psychotherapy and Psychosomatics, Vol. 75, Nº 3, 2006, pág. 154).
Em sua resposta à doutora Cosgrave e colegas, os coordenadores da “força-tarefa” da APA para a DSM-5, David Kupfer e Darrel A. Regier, declararam que seus críticos “parecem não apreciar ou entender como as relações de colaboração entre o governo, a academia e a indústria são vitais para o atual e futuro desenvolvimento de tratamentos farmacológicos para os transtornos mentais” (Psychiatric Times, ed. cit., pág. 41).
Haja colaboração! Obrigado a revelar suas relações com as grandes corporações, sobretudo às do cartel farmacêutico, mas também as dos planos de saúde, o dr. Kupfer declarou que, desde 2003, recebeu dinheiro, como consultor, das seguintes empresas: Johnson & Johnson, Hoffman LaRoche, Novartis Pharmaceuticals Corp., Eli Lilly and Company, Pfizer Inc., Solvay Wyeth, Forest Pharmaceuticals, Servier Amerique, Innovative Medical Education, Deborah Wood & Assoc., TG Worldwide, JK Associates, Physicians Post Grad Press, Prescott Communications, Current Psychiatry, Corcept, Inc., LUNDBECK, SCS Health Care, Cardinal Associates, Pharmedia Communications e Heinz C. Prechter Fund for Manic Depression (a declaração de Kupfer, com essa lista, está em “APA DSM-V Task Force Member Disclosure Report”, 20/01/2010, pág. 2).
É interessante que Kupfer & colegas (e a APA) tenham demorado quatro anos, desde sua nomeação para a DSM-5, em 2006, para revelar essas relações corporativas, o que só fizeram debaixo de intenso bombardeio por parte de outros psiquiatras.
Na mesma declaração, consta que “o dr. David J Kupfer, MD concordou em que, da aprovação até a publicação da DSM-V, projetada para 2012, sua receita derivada de fontes da indústria não excederá US$ 10.000 em qualquer ano do calendário (excluindo ‘unrestricted research grants’)”.
Além do cinismo dessa limitação, apenas durante a feitura da DSM-5 (como se fosse isso o que importa), note-se que ela não atinge as “unrestricted research grants”, termo que designa (e esconde) os ganhos indiretos vindos da indústria farmacêutica, sob a forma de subvenções a colegas associados em um mesmo projeto ou repasses a pessoas da família.
QUESTÕES
Certamente, é uma infelicidade que tenhamos de discutir classificações norte-americanas, que nem vigência oficial têm no Brasil, como se fossem algum suprassumo do conhecimento. Mas a isso nos obriga o deprimente colonialismo cultural que tomou conta de certos setores. Lembro que quando publiquei o artigo que mencionei, o mais irritante foi fazer o “abstract”, isto é, o sumário em inglês, que, há tempos, é obrigatório na maioria das revistas especializadas. Por que em inglês? Se pelo menos fosse a língua de Shakespeare – e não essa desnaturação burocrática do inglês em que são escritos os “abstracts” – ainda era para se pensar. Mas, imagine o leitor que existem até alguns teóricos do assunto, para os quais “o inglês é a língua científica por excelência”…
O pior foi que poucos colegas pareciam, naquela época, entender a minha irritação. Para eles era natural escrever sumários em inglês, mesmo para uma revista brasileira. Houve até um deles que, além de argumentar com a necessidade de uma “base de dados” internacional, acessível a profissionais do mundo todo (como se fosse esta a fonte da minha irritação), ainda lembrou que existem revistas brasileiras, inclusive médicas, que são totalmente publicadas em inglês…
Mas, paciência, como me recomendou, na época, o professor Luiz Salvador de Miranda Sá, ex-presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), sem o estímulo do qual eu jamais teria finalizado – muito menos publicado – aquele artigo, “Desafios éticos atuais na psiquiatria”, que saiu na revista Bioética, do Conselho Federal de Medicina, vol. 9, nº 1, 2001.
Hoje, o importante é que temos algo a festejar com a DSM-5: a decomposição pública de uma tendência que, desde 1980, a partir dos EUA, tem asfixiado a psiquiatria. Seria interessante estabelecer uma relação – pois o paralelo é evidente – entre o predomínio dessa tendência e a virada ultrarreacionária nos EUA, com Ronald Reagan, Bush et caterva. Da mesma forma, a transformação da World Psychiatric Association (WPA) em braço norte-americano na guerra fria, especialmente da CIA, com a exclusão dos psiquiatras soviéticos em 1982.
No entanto, devido à sua extensão, não vamos abordar, como foco principal, essas questões históricas – talvez o façamos em outra oportunidade. Apenas diremos, e frisaremos mais adiante, que a tendência inaugurada com a DSM-III é o correspondente ao neoliberalismo na psiquiatria – ou seja, a selvagem ditadura e favorecimento dos cartéis e monopólios financeiros no campo específico da psiquiatria.
Agora, com o projeto da DSM-5, nunca foi tão fácil demonstrá-lo.
CONTAS
Vejamos, primeiro, o problema atual. Depois de ler o material publicado pela APA sobre a DSM-5 (sob um modesto título geral: “The Future of Psychiatric Diagnosis”…), não resta dúvida que ela exacerba todos os problemas da classificação norte-americana anterior (a DSM-IV), acrescentando um grau extra de estupidez em alguns (não poucos) pontos.
Entretanto, a APA, até maio passado, gastara US$ 24,5 milhões na feitura dessa classificação, cinco vezes o gasto total da classificação anterior – e somente 15% dessa quantia foram gastos em trabalho de campo, aliás, perfeitamente inútil. A maior parte do gasto (45%) foi com salários (“salary”), mas não se sabe de quem – convenhamos que um gasto de US$ 11 milhões em salários não é um gasto pequeno, sobretudo considerando que, na classificação anterior, mais da metade dos gastos foram com bolsas para pesquisas, o que montou apenas a um pouco mais que US$ 2,5 milhões.
Os dados sobre os gastos da APA com a DSM-5 estão no “Treasure’s Report”, a prestação de contas anual da entidade, publicada em maio de 2012. No mesmo relatório há uma informação ainda mais interessante: o número de associados da APA caiu abaixo dos 35 mil em 2012, tornando seu slogan atual (“Representing 36,000 physician leaders in mental health”), literalmente, uma ficção. O relatório mostra que, desde 1997, quando estavam acima dos 40 mil, o número de membros da APA não para de cair.
O que é espantoso nesses números é que trata-se da associação que tem o monopólio do diagnóstico psiquiátrico nos EUA – e que exerce um tacão, até há pouco considerado como absoluto ou quase isso, sobre os psiquiatras norte-americanos e milhares de mentes servis em outros países (por sinal, o número de sócios estrangeiros da APA – “international members” – desde 2010 também está caindo).
TRANSTORNOS
Entremos nos problemas de diagnóstico.
É verdade que, depois de tentar incluí-la na DSM-5, o grupo que a confecciona desistiu, por enquanto, da “síndrome do risco de psicose” (essa nem Simão Bacamarte ousou pensar!?).
Mas ficou, por exemplo, o “transtorno da regulação do humor e do comportamento”, ainda que sua única função seja a de prescrever medicamentos para pessoas que duvidosamente precisam disso (e haja “pacientes”, nos tempos atuais, com problemas na “regulação do humor e do comportamento”! Resta apenas incluir as fantasias sexuais e chegaremos ao diagnóstico ideal para trancafiar qualquer sujeito naquela casa de Itaguaí, ou, o seu correspondente, ingerir algumas drogas pelo resto da vida – mas, alto lá, as fantasias também estão na DSM-5, e como sintoma ou sinal patológico (?!), porém, misericordiosamente, não neste diagnóstico).
Por falar em Simão Bacamarte, alguns já comentaram que caracterizar um “transtorno de personalidade” pela presença de dificuldades ou danos no funcionamento da personalidade (“impairments in personality functioning”) é algo digno do afamado psiquiatra Pedro Bó. Note o leitor, não estamos, aqui, ainda, examinando o próprio conteúdo do que é chamado “transtorno” ou do que é chamado “funcionamento”…
Da mesma forma, diagnosticar algo como “transtorno psicótico breve” (?) é tão impreciso que deixa de ter qualquer valor nosológico (ou seja, qualquer valor dentro de um sistema classificatório de doenças) – até porque só pode ser diagnosticado depois que deixou de existir (senão, como classificá-lo de “breve”?); portanto, do ponto de vista de um tratamento verdadeiro, principal objetivo do diagnóstico, é perfeitamente inútil.
[NOTA: Para não tornar este texto demasiado complicado, evitaremos a discussão sobre as relações entre psicopatologia e psiquiatria, até porque essa discussão nada tem a ver com as DSMs. Pelo contrário, dizem respeito à escola fenomenológica, iniciada em 1911, com a publicação, por Karl Jaspers, da “Psicopatologia Geral”.]
2
Pode ser que os autores da DSM-5 queiram, com a expressão “breve”, após a expressão “transtorno psicótico”, dizer que não existe tratamento etiológico (ou seja, causal em algum nível) para as psicoses reativas, portanto, o psiquiatra nada tem a fazer, além de esperar. Mas isso não é verdade, exceto se a única forma de tratamento concebida pelo psiquiatra for medicamentosa.
Antes que haja mal entendidos – tão comuns na “selva selvaggia” que invadiu, de uns tempos para cá, o campo do saber no qual estão a psicologia e a psicopatologia – o psiquiatra que assina estas mal traçadas nada tem contra medicamentos. Contanto que sejam prescritos para quem precisa deles.
O que queremos destacar é a tendência a tornar mais imprecisos ainda certos diagnósticos. É o caso, por exemplo, dos “transtornos do espectro autista”, diagnóstico que abole, na DSM-5, uns quatro diagnósticos anteriores, talvez cinco, o que pode servir para aumentar – ainda mais – a epidemia de diagnósticos de autismo, desencadeada depois da DSM-IV (v. adiante as declarações do coordenador desta).
Vamos ficar por aqui, nessa questão dos diagnósticos, pois o leitor não tem obrigação de ser psiquiatra (embora, como também é verdade – parafraseando o famoso dito de Clemenceau sobre a guerra – que a psiquiatria é importante demais para ser deixada apenas por conta dos psiquiatras, voltaremos a alguns aspectos da questão).
[NOTA: Não examinaremos, aqui, alguns problemas, devido à sua natureza demasiado especializada. Mas, somente para que o leitor tenha alguma ideia, a DSM-5 transformou o conceito de espectro (ou seja, algo que é contínuo, mas apresenta um leque de variações quantitativas, tal como o espectro eletromagnético) num fantasma. Com total ausência de vergonha, ele foi copiado da esquizofrenia e colado nos “transtornos obsessivo-compulsivos”, sem mais explicações (até porque a DSM-5, assim como a DSM-IV, se pretende “ateórica”. Logo, supõe-se, não tem de explicar nada a ninguém). Já era, em nossa opinião, difícil conceber o “espectro autista” (pois a questão essencial numa classificação de doenças está em tornar nítido o salto de qualidade que separa a doença do que não é doença). Agora, inventou-se mais um “espectro”: o espectro obsessivo-compulsivo – com a consequência, se fosse levado a sério, de incluir, a la Bacamarte, quase qualquer um vivente dentro dele. E não vale argumentar que se trata de uma construção teórica. Afinal, a DSM é “ateórica”…]
LIÇÕES
Só na aparência é surpreendente que até mesmo os psiquiatras que coordenaram as duas edições anteriores da DSM, Robert Spitzer (coordenador da DSM-III, publicada em 1980) e Allen Frances (DSM-IV, de 1994), tenham denunciado a DSM-5. Pois, se levada a efeito tal como divulgada, significará a desmoralização dos critérios – mais exatamente, da “visão de mundo”, ou seja, da ideologia – instituídos pela DSM-III e piorados pela DSM-IV. Entretanto, é necessário ser justo, as afirmações desses psiquiatras contêm uma dose importante de autocrítica.
Embora, como sublinhou o psiquiatra Nassir Ghaemi, professor da Tufts University School of Medicine, em Massachusetts, é verdade que “os problemas da DSM-5 foram causados pela DSM-III e IV” e tanto Spitzer quanto Frances permanecem inconscientes do problema mais de fundo dessas classificações (cf., Nassir Ghaemi, “DSM-5: If You Don’t Like the Effects, Look at the Causes”, Mood Swings, Psychology Today, 09/01/2013).
No entanto – e talvez por isso mesmo – é muito significativo ver os coordenadores da DSM-III e DSM-IV criticarem a DSM-5.
Robert Spitzer, o coordenador da DSM-III, centrou suas críticas no contrato de sigilo (“non-disclosure agreement”) que a APA assinou com o grupo (“força-tarefa”) encarregado de elaborar a DSM-5. Realmente, é algo que nunca houve, nem nos EUA, nem na APA: um contrato de sigilo até a confecção final de uma classificação oficial, sob o pretexto de que as discussões conceituais e diagnósticas distrairiam os membros do grupo… Evidentemente, o objetivo desse contrato é impedir questionamentos – e a discussão em geral – antes da publicação da DSM-5. Naturalmente, ele teve efeito inverso ao pretendido.
Allen Frances, coordenador da DSM-IV, denunciou, no projeto da DSM-5, especialmente diagnósticos como as “síndromes de risco”. O grupo da DSM-5, nesse projeto, estabelece “síndromes de risco” para psicose e demência, mas não apenas, como se pode perceber pelo texto: “Consideration of a new ‘risk syndromes’ category, (…) such as [tais como] neurocognitive disorder (dementia) and psychosis” (cf. American Psychiatric Association, “Draft Diagnostic Criteria for DSM-5”, 10/02/2010, grifo nosso).
Evidentemente, mesmo se o “risco” de alguém ficar doente for verdadeiro, não se pode dizer que ele constitui uma “síndrome”, isto é, um conjunto de sinais e sintomas. Risco não é doença e não é síndrome, muito menos item para uma classificação de doenças – e menos ainda quando se trata de doenças mentais, onde a noção de “risco” quer dizer muito pouco, se é que quer dizer alguma coisa (por que, submetidos às mesmas condições, alguns enlouquecem, e outros, não? A noção de “risco” somente teria sentido se atribuída a um componente genético, presumido em geral, isto é, sem provas específicas. Mas que utilidade tem isso, considerando que até mesmo herdeiros do mesmo patrimônio genético – isto é, gêmeos idênticos – podem reagir de forma diferente diante das mesmas exigências da realidade?).
Logo, o dr. Frances tem toda razão em denunciar que o grupo da DSM-5 está promovendo a “medicalização imperial por atacado da normalidade” e a “bonança para a indústria farmacêutica”, à custa de fazer os pacientes pagarem “alto preço em efeitos colaterais, dólares e estigma”. Vale a pena transcrever a íntegra desse parágrafo:
“O resultado seria uma medicalização imperial por atacado da normalidade, que trivializará o transtorno mental e levará a um dilúvio de tratamentos medicamentosos desnecessários – uma bonança para a indústria farmacêutica, mas com violento custo para os novos ‘pacientes’ falso-positivos, agarrados pelo leque excessivamente amplo da DSM-V. Eles pagarão um alto preço em efeitos colaterais, dólares e estigma, sem mencionar o imprevisível impacto da insegurança, incapacidade e despesas judiciais.” (cf. Allen Frances, “A Warning Sign on the Road to DSM-V: Beware of Its Unintended Consequences”, Psychiatric Times, Vol. 26, Nº 8, 26/06/2009).
Frances reconheceu, no seu próprio trabalho à frente da força-tarefa da DSM-IV, que “cometemos erros que tiveram terríveis consequências”, citando especificamente o aumento em 40 vezes dos diagnósticos de transtorno bipolar em crianças, desde a DSM-IV. E ainda lembrou que um dos defensores desse diagnóstico, o psiquiatra Joseph Biederman, de Harvard, escondeu que recebia dinheiro da Johnson & Johnson, que fabrica o Risperdal – e que teve imensos ganhos com o aumento desses diagnósticos (cf. a entrevista concedida por Allen Frances a Gary Greenberg, “Inside the Battle to Define Mental Illness”, Wired, January 2011).
São, também, muito interessantes as declarações de Frances no programa de televisão de Judy Woodruff, que realizou um debate entre ele e o presidente da APA, Alan Schatzberg (por sinal, a mediocridade deste foi algo espantosa):
“Nós aprendemos”, disse o dr. Allen Frances, “algumas lições muito, muito dolorosas, ao fazer a DSM-IV. (…) inadvertidamente, penso que nós ajudamos a desencadear três falsas epidemias: uma, a do transtorno autista; outra, a do diagnóstico de transtorno bipolar em crianças; e, a terceira, uma selvagem ‘overdiagnose’ do transtorno do déficit de atenção.
“… minha preocupação é que as ambições expressas por aqueles que trabalham na DSM-5 levem a (…) muitos pacientes sendo criados através de novas categorias [de diagnóstico] ou pelo rebaixamento dos limites de categorias existentes, pessoas que provavelmente não necessitam de tratamento, mas que provavelmente receberiam tratamento se lhes dão um diagnóstico.
“Uma vez que um diagnóstico torna-se oficial, existe uma espécie de efeito selvagem, e ele torna-se mais e mais popular, especialmente se ele é marketado como uma importante indicação da indústria farmacêutica.
“… com o transtorno do déficit de atenção, por exemplo, a prescrição de estimulantes explodiu. E o que aconteceu é que, frequentemente, não por causa de um transtorno mental, mas por causa do desempenho associado a esse transtorno. A obtenção de um diagnóstico de transtorno de déficit de atenção permite que você adquira aquele estimulante com o tratamento (…) 30% dos estudantes universitários usam estimulantes para se sair melhor na escola.
“Isso também cria, secundariamente, um mercado ilegal em que prescrições de drogas são vendidas, o que é um grande problema de saúde pública”.
3
Desde maio do ano passado, Frances publicou alguns artigos bastante pertinentes sobre a DSM-5 em “Psychology Today”. Em dezembro último, elaborou um ranking das 10 piores coisas da DSM-5.
Aqui, citaremos as cinco primeiras:
- Transtorno Disruptivo de Desregulação do Humor (“Disruptive Mood Dysregulation Disorder”) – sob esse esquisito nome, nota o dr. Frances, os autores da DSM-5 querem transformar em portador de “transtorno mental” aquele sujeito a quem, no Brasil, chamamos “temperamental” ou “cabeça quente” ou “pavio curto” (os cearenses têm um nome melhor ainda: “cerveja quente”, alusão à falta de paciência de esperar até a cerveja ficar gelada). Não se trata, bem entendido, de personalidades patológicas explosivas, que continuam catalogadas nos “transtornos de personalidade”, mas do sujeito irritado comum. Diz Frances: “… meu medo é que [esse diagnóstico] exacerbará, não aliviará, o já excessivo e inapropriado uso de medicação em crianças de idade mais precoce”. E ele cita que, nos últimos 20 anos, triplicaram os diagnósticos de transtorno do déficit de atenção, aumentaram em mais de 20 vezes os de transtorno autista e em 40 vezes os de transtorno bipolar em crianças. Sem que houvesse mudança alguma, exceto a dos critérios de diagnóstico – com uma inevitável consequência: o aumento de prescrições e, por consequência, venda de medicamentos.
- “[Com a DSM-5] o pesar normal [normal grief] se tornará um Transtorno Depressivo Maior, medicalizando e trivializando a nossa esperada e necessária reação emocional à perda de um ente querido, e substituindo por pílulas e rituais médicos superficiais a consolação proporcionada pela família, pelos amigos, pela religião, assim como a resiliência que vem com o tempo e com a aceitação dos limites da vida”. Pelo critério da DSM-5, como frisou a psicóloga Joanne Cacciatore, basta que os sinais de luto [“bereavement”] se estendam a duas semanas após a perda de um ente querido para que o sujeito seja considerado um portador de Transtorno Depressivo Maior – o sucedâneo da DSM para a antiga “depressão psicótica”, tratada, obrigatoriamente, com antidepressivos.
- “O esquecimento cotidiano, característico dos mais velhos, será agora mal diagnosticado como um Transtorno Neurocognitivo Menor, criando uma enorme população de pessoas falso-positivas, sem que elas tenham especial risco para a demência.”
- “A DSM-5 desencadeará uma mania de Transtorno Adulto do Déficit de Atenção, levando ao amplo mau uso de drogas estimulantes (…) e contribuindo para o já grande mercado secundário de prescrição de drogas.”
- “Comer excessivamente 12 vezes em 3 meses não é nada além de uma manifestação de glutoneria (…). A DSM-5, ao invés, torna isso uma doença psiquiátrica chamada ‘Binge Eating Disorder’ (transtorno da compulsão alimentar)”. No programa de Judy Woodruff, o presidente da APA, Alan Schatzberg, tentou defender esse diagnóstico com algumas considerações sobre o problema da obesidade – que realmente é grave – nos EUA. Recebeu uma réplica rascante de Allen Frances: “nem por isso a obesidade passou a ser um transtorno mental…”. Diante disso, Schatzberg calou-se. Devido às confusões já escritas sobre esse diagnóstico, somos obrigados a esclarecer que a classificação norte-americana anterior, a DSM-IV, elaborada sob a coordenação de Frances, reconhecia, fora os problemas alimentares da infância, dois diagnósticos específicos de “transtorno alimentar” (“anorexia nervosa” e “bulimia nervosa”), além do “transtorno alimentar sem outra especificação”. Neste último, estava incluído o “transtorno de compulsão periódica”, mas com critérios inteiramente diferentes dos propostos para a DSM-5. Portanto, Frances tem razão ao dizer que a “Binge Eating Disorder” é uma invenção da atual força-tarefa da APA (cf. “Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais: DSM-IV”, trad. Dayse Batista, 4ª ed., Artes Médicas, 1995, págs. 511, 522 e 688).
NEO-PSIQUIATRIA
A constatação de Frances sobre as três epidemias fabricadas pela DSM-IV é perfeita, ainda que não seja completa. Parece evidente que a proliferação de tais diagnósticos ocorreu pari passu com a ladainha do neoliberalismo sobre “eficiência”, “competitividade”, “promoção dos mais capazes” (naturalmente, os mais capazes de roubar, trapacear, trair e puxar o saco), etc., etc. & etc. Em suma, os monopólios financeiros querem escravos “competitivos” e “eficientes”. Quem não consegue acompanhar o ritmo – esse, sim, um ritmo de maluco – imposto pela ganância desvairada, precisa receber algum tratamento para ver se consegue se adaptar. Só pode ser um doente – e se o tratamento não resolver o problema, é porque trata-se de um sujeito tão doente que é irrecuperável. Os diagnósticos, portanto, têm que corresponder a essa infame e desumana sofreguidão espoliativa. Tornar a psiquiatria cúmplice ou auxiliar dessa roda viva significa tirá-la do campo da ciência para colocá-la no ramo dos feitores e capitães-do-mato.
Agora, no projeto da DSM-5 essa tendência reacionária é mais evidente (ou seja, mais grosseira). Por esta razão, é incorreta a afirmação da British Psychological Society, em sua crítica à DSM-5, de que “os supostos diagnósticos apresentados na DSM-V são clara e largamente baseados nas normas sociais” (cf. BPS, “Response to the American Psychiatric Association: DSM-5 Development”, June 2011, pág. 2).
Mais exato é dizer que esses “diagnósticos” estão baseados nas normas antissociais hoje dominantes nos EUA – e, de resto, nos países imperialistas.
Somente para informação: a primeira classificação da APA, a DSM-I (1950), listava 106 diagnósticos; a segunda (DSM-II, de 1968) tinha 182 diagnósticos; mas a badalada DSM-III (1980) já pulara para 265 diagnósticos; o que foi batido inapelavelmente pela DSM-IV (1994), com 297 diagnósticos. Os problemas a que nos referimos neste artigo surgiram, primeiramente, na DSM-III, ou seja, há 33 anos.
[N.A.: estamos aqui omitindo as classificações intermediárias da APA, tanto a DSM-III-R, de 1987, quanto a DSM-IV-TR, publicada em 2000 – e também a RDC (Research Diagnostic Criteria), antecessora direta da DSM-III -, pois, do ponto de vista mais de fundo, do ponto de vista da concepção, não apresentam diferença de qualidade em relação às outras].
[OUTRA NOTA: Até mesmo bajuladores inveterados da psiquiatria norte-americana escreveram artigos criticando a DSM-5, a maioria deles levantando a DSM-III como bandeira. Segundo esses, o problema da DSM-5 é que ela tenta “desmontar” a DSM-III. Não é verdade. O problema – para eles – da DSM-5 é que ela expõe de forma irretorquível o que já estava embutido na DSM-III. Mas, por isso mesmo, temos de reconhecer que a DSM-III era menos descarada em suas pretensões, de resto inteiramente ideológicas. Como mostraram Stuart A. Kirk e Herb Kutchins, em livro já antigo, a DSM-III era apenas um ataque ao chamado “paradigma freudiano”, ou seja, à psicanálise, durante muito tempo predominante entre os psiquiatras norte-americanos. Seu parentesco com ciência era, basicamente, ocasional. Cf. Kirk e Kutchins, “The Selling of DSM: The Rhetoric of Science in Psychiatry”, ed.: Aldine de Gruyter, 1992. Dos mesmos autores, ver também “Making Us Crazy: DSM: The Psychiatric Bible and the Creation of Mental Disorders”, Free Press, 2003).]
EXTRATO
Por último, sobre algumas questões mais gerais das DSMs, remetemos o leitor ao nosso artigo de 2001. Aqui, apenas citaremos alguns trechos:
“Descobriu-se, de uns tempos para cá, uma ‘nova’ maneira de desumanizar os pacientes psiquiátricos: reduzi-los a uma lista de sintomas. A tentativa mais desabrida – e influente – nessa direção foi efetuada pelos manuais da American Psychiatric Association, em especial a última revisão do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, a quarta (DSM-IV). No cotejo da DSM-IV está a tendência a eliminar a anamnese na entrevista psiquiátrica e substituí-la pela resposta a questionários padronizados. Se o diagnóstico não é mais obtido pela compreensão humana mas pela presença ou não de uma série de sintomas catalogados numa lista construída estatisticamente, por que se perderia tempo com a compreensão do fenômeno? Naturalmente, a compreensão implica em elementos subjetivos e, segundo um certo neopositivismo muito em moda, o que é subjetivo não pode ser ‘científico’. O único problema é que não existe relação humana que não seja ‘subjetiva’, uma vez que implica no contato entre, pelo menos, dois sujeitos.
“Em suma, trata-se de uma tentativa aberta de eliminar a subjetividade do campo da Psiquiatria. No entanto, é a abordagem da subjetividade que fornece à Psiquiatria a sua originalidade. Nunca se contestou seriamente a existência de base orgânica nas doenças mentais. Ela foi admitida por todos os autores dignos de algum respeito – inclusive, e reiteradamente, por Freud. Sem isso a Psiquiatria deixaria qualquer pretensão científica e seria relegada ao misticismo. Mas é evidente que as manifestações psíquicas e psicopatológicas não podem ser reduzidas simplesmente à sua base orgânica, sob pena de tornar desnecessária a própria existência da Psiquiatria – a rigor, a própria existência do humano, pois se trata de desprezar o que é mais próprio do ser humano: a sua subjetividade, a sua psicologia, a sua consciência.
(…)
“Muito sintomática é a abolição, nos DSMs, logo imitadas pela CID-10, da palavra doença, substituída por transtorno (em inglês, disorder). Uma disorder ou transtorno somente existe com referência a uma determinada ordem preexistente. Ainda que o sentido em inglês não seja exatamente o mesmo do português, nunca ficou tão claro o conteúdo puramente ideológico de um conceito em Psiquiatria quanto nesse, de disorder.
“Naturalmente, essa tendência a superficializar, fragmentar e desconsiderar o ser humano está em perfeita consonância com o obscurantismo econômico – o predomínio da especulação financeira desarvorada sobre as necessidades humanas –, que, dependendo do autor, é chamado de ‘neoliberalismo’, ‘globalização’ ou outro apelido qualquer, assim como em completa sintonia com os interesses da indústria farmacêutica e das empresas de ‘seguro-saúde’.
(…)
“… Nas palavras de um colega: ‘(…) os sectários tendem sempre a tentar criar uma realidade à parte, delirante, sem pacientes de verdade, mas apenas com as fantasias construídas e trocadas entre eles mesmos. Feliz ou infelizmente para todos nós, os seus pacientes imaginários habitam apenas os papers e livros que não se cansam de escrever em seus respectivos jargões’ (Cláudio Lyra Bastos, Manual do Exame Psíquico, 2ª ed., Rio de Janeiro: Revinter, 2000). Com efeito.
“… os problemas que mencionamos têm a tendência a acabar com a clínica psiquiátrica e substituí-la por uma mitológica ‘neurociência’, onde achados que são válidos e importantes num determinado campo – o da exploração cerebral – são extrapolados, sem mediação, como se fosse possível reduzir, por exemplo, um paciente deprimido aos distúrbios neuronais que são a base orgânica da depressão. Citamos esse exemplo específico porque ele é mais do que esclarecedor: aboliu-se, na prática, a distinção entre depressões ‘reativas’ e depressões ‘endógenas’. Assim, as taxas de incidência de depressão patológica passaram de 5 ou 6% para 18 ou 20% – ou mais. Que benefício isso trouxe aos nossos pacientes? Sem dúvida, o benefício de comprar os ‘novos’ antidepressivos a preços extorsivos, mesmo sem necessidade. Aliás, há não muito tempo, descobriu-se que o laboratório que lançou o primeiro desses antidepressivos milagrosos havia falsificado os resultados de seus testes iniciais, escondendo prudentemente os índices de suicídio ocorridos durante o uso do seu lucrativo fármaco. O outro benefício proporcionado aos pacientes correu por conta de afirmações muito doutas, como a que ouvimos numa conferência em uma das universidades mais prestigiosas do país: ‘Se um paciente fica deprimido depois de ser demitido, não foi a demissão que causou a depressão; ao contrário, foi por ser deprimido que ele não conseguiu manter o emprego’ – e isso numa época em que o desemprego no país é galopante [NOTA: isto foi escrito durante o governo Fernando Henrique]. Naturalmente, afirmações desse tipo estão exatamente na mesma categoria ideológica daquelas outras segundo a qual é a incapacidade genética do cidadão que causa o seu desemprego, pois não existem desempregados, mas sim ‘inimpregáveis’. Do ponto de vista psiquiátrico, faltaria apenas demonstrar que há quem fique muito satisfeito com uma demissão…
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“Problemas como o da distinção entre depressões ‘reativas’ e ‘psicóticas’ foram formulados com base nessa compreensão humana do paciente a que nos referimos – e por isso conservam plena validade ainda no momento atual. De que nos serve jogar pela janela toda essa história, todo o conhecimento acumulado de séculos? É interessante e muito ilustrativo observar como certos interesses – vale dizer, os do chamado ‘mercado’, ou seja, das seguradoras de saúde e da indústria farmacêutica – não conseguem conviver com a história da Psiquiatria.
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“A verdade é que essa maré que descrevemos de forma muito sucinta está perto do esgotamento, até porque é de uma pobreza de pensamento e de ação que chega a ser deprimente. Simplesmente, não corresponde às necessidades humanas – ao contrário, opõe-se a elas – e por isso está destinada à débâcle” (Carlos Batista Lopes, “Desafios éticos atuais na psiquiatria”, Bioética, vol. 9, nº 1, 2001, págs. 29 a 43).
Escrevemos isso há 12 anos. Considerando a polêmica atual em torno da DSM-5, não está mau.